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quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Os Bruzundangas - Lima Barreto [parte 17]

A isto, eles batizam, por conta própria, de aristocracia da arte, arte superior, arte das delicadezas impalpáveis.
Publicam esses catálogos de ourivesaria, quando não são de modistas e alfaiates, em edições luxuosas; e, imediatamente, apresentam-se candidatos à Academia de Letras da Bruzundanga.
Houve tempo em que ela os aceitava sem detença; mas, ultimamente devido à sua senilidade precoce, desprezou-os e só vai aceitando os taumaturgos da cidade.
Não há médico milagreiro e afreguesado que não entre para ela e pretira os diplomatas.
Nem sempre foi assim a diplomacia da Bruzundanga. Mesmo depois de lá se ter proclamado a República, os seus diplomatas não tinham o recheio de ridículo que atualmente têm.
Eram simples homens como quaisquer, sem pretensões do que não  eram, sem fumaças de aristocracia, nada casquilhos, nem arrogantes.
Apareceu, porém, um embaixador gordo e autoritário, megalômano e inteligente, o Visconde de Pancome, que fizeram ministro dos Estrangeiros,e ele transformou tudo.
Empossado no ministério, a primeira cousa que fez foi acabar com as leis e regulamentos que governavam o seu departamento. A lei era ele.

O novo ministro era muito popular na Bruzundanga; e vinha a sua popularidade do fato de ter obtido do Rei da Inglaterra a comenda de Jarreteira para o Mandachuva e seus ministros, assim como o Tosão de Ouro da Espanha para os generais e almirantes.
Todos os senhores hão de se admirar que tal cousa tenha feito o homem popular. É que os bruzundanguenses babam-se inteiramente por esse negócio de condecorações e comendas; e, embora cada qual não tivesse recebido uma, eles se julgavam honrados pelo fato do Mandachuva, do  ministro, dos generais e almirantes terem recebido condecorações tão famosas no mundo inteiro.
São assim como nós que temos grande admiração pelo Barão do Rio Branco por ter adjudicado ao Brasil não sei quantos milhares de quilômetros quadrados de terras, embora, em geral, nenhum de nós tenha de seu nem os sete palmos de terra para deitarmos o cadáver.
O visconde, exaltado no ministério, tendo por lei a sua vontade, baseado na popularidade, fez o que entendeu e a sua preocupação máxima foi dar à representação externa da Bruzundanga um brilho de beleza masculina, cujo cânon ele guardava secretamente para si. Daí veio essa total
modificação no espírito da representação exterior do país e não houve bonequinho mais ou menos vazio e empomadado que ele não nomeasse para esta ou aquela legação.
O seu sucessor seguiu-lhe logo as pegadas, não só neste ponto como em outros mais.
O Visconde de Pancome era de fato um escritor; o novo ministro não o era absolutamente, mas como substituiu aquele, julgou-se no direito de o ser também e também membro da Academia de Letras, como tinha sido o seu predecessor.
Publicou em papelão um discurso, impresso em letras garrafais, conseguindo assim organizar um volume e foi daí em diante igual ao antecessor em tudo.
Não há mal algum que seja assim a diplomacia daquelas paragens.
A Bruzundanga é um país de terceira ordem e a sua diplomacia é meramente decorativa. Não faz mal, nem bem: enfeita.
E, se os maridos e pais da Bruzundanga têm que andar cheios de cuidados, é melhor que tais zelos fiquem ao cargo dos estrangeiros. A diplomacia do país tem a sua utilidade...

VIII
A Constituição
QUANDO se reuniu a Constituinte da República da Bruzundanga, houve no país uma grande esperança. O país tinha, até aí, sido governado por uma lei básica que datava de cerca de um século e todos os jovens julgavam-na avelhentada e já caduca. Os militares do Exército, iniciados
nas sete ciências do Pitágoras de Montpellier, -- criticavam-na da seguinte forma: "Qual! Esta constituição não presta! Os que a fizeram não sabiam nem aritmética; como podiam decidir em sociologia?" 

Escusado é dizer que isto não era verdade, mas o critério histórico deles e o seu orgulho escolar pediam fosse.
Os outros doutores também achavam a Constituição monárquica absolutamente tola, porque, desde que ela fora promulgada, havia surgido um certo jurista alemão ou aparecido um novo remédio para erisipelas. A nova devia ser uma perfeição e trazer a felicidade de todos.
Reuniu-se, pois, a Constituinte com toda a solenidade. Vieram para ela, jovens poetas, ainda tresandando à grossa boêmia; vieram para ela, imponentes tenentes de artilharia, ainda cheirando aos "cadernos" da escola; vieram para ela, velhos possuidores de escravos, cheios de ódio ao
antigo regímen por haver libertado os que tinham; vieram para ela, bisonhos jornalistas da roça recheados de uma erudição à flor da pele, e também alguns dos seus colegas da capital, eivados do Lamartine, História dos girondinos, e entusiastas dos caudilhos das repúblicas espanholas da
América. Era mais ou menos esse o pessoal de que se compunha a nova Constituinte.
Tinham entrado no ritual da nova República os banquetes pantagruélicos; e, nas vésperas da reunião, houve um de estrondo.
À sessão inaugural, prestou guarda de honra uma brigada; mas, bem contando, era unicamente um batalhão. 
Quando saíram os constituintes, Z., um deles, perguntava de si para si:
-- Que vou propor eu?
H. excogitava:
-- Devo ser pelo divórcio? Esses padrões...
B. meditava:
-- Antes não me metesse nisto. O imperador pode voltar e é o
diabo...
Quase todos, porém, consideravam com toda a convicção, com todo
o acendramento, com um recolhimento religioso:
-- Qual a Constituição que devemos imitar?
Em geral, eles esperavam ser escolhidos para a comissão dos vinte e  um que tinha de redigir o projeto da futura lei básica, e era justo que  tivessem semelhante preocupação absorvente:
-- Qual a Constituição que devemos imitar?
Votado o regimento interno da grande assembleia e tomadas todas as  outras disposições secundárias, a comissão dos vinte e um membros, encarregada de redigir o projeto, foi escolhida; e, em reunião, houve entre os seus membros caloroso debate a respeito de quem deveria ser o relator
ou os relatores.
Escolheram, afinal, três sumidades: Felício, Gracindo e Pelino, todos eles -- ben -- qualquer cousa.
O resto pôs-se a descansar e os três, em sala separada, no dia seguinte, juntaram-se e trataram dos moldes em que devia ser elaborada a nova Maga Carta.
Pelino foi de parecer que a Constituição futura devia ser vazada no  cadinho em que fora a do país dos Huyhnms.
-- É um país de cavalos! exclamou Gracindo.
-- Que tem isto? retrucou Pelino. Nós somos bastante parecidos  com eles.
- Não, não queremos, objetaram os dous outros.
-- Então, como vai ser? perguntou Pelino. Se não querem à moda dos cavalos, não podemos achar outro modelo, pois o país dos camelos não tem Constituição.
- Façamos a Constituição aos modos da de Lilliput, fez Felício.
-- Não me serve! exclamou Pelino. Semelhante gente não pesa, é  muito pequena!
-- Então ao jeito da de Brobdingnag, o país dos gigantes.
Todos acharam justa a proposta e começaram a redigir o projeto de  Constituição da Bruzundanga republicana, conforme o paradigma da do país dos gigantes.
Quando Gulliver lá esteve (creio que os senhores se lembram disso),  figurou como um verdadeiro brinquedo. Ninguém o levava a sério como homem; era antes um boneco que dormia com as moças e tinha outras:
intimidades que, se não foram contadas, podem ser adivinhadas.
A população da Bruzundanga, tirante um atributo ou outro, não era  composta de pessoas diferentes do doutor Gulliver; eram minúsculos bonecos, portanto, que queriam possuir uma Constituição de gigantes.  Felizmente, porém, já na grande comissão, já no plenário a imitação
foi modificada; e, em muitos pontos, a Carta da Bruzundanga veio a afastar-se da de Brobdingnag.
Houve mesmo disposições originais que merecem ser citadas. Assim,
por exemplo, a exigência principal para ser ministro era a de que o candidato não entendesse nada das cousas da pasta que ia gerir.
Por exemplo, um ministro da Agricultura não devia entender cousa  alguma de agronomia. O que se exigia dele é que fosse um bom especulador, um agiota, um judeu, sabendo organizar trusts, monopólios, estancos, etc.
Os deputados não deviam ter opinião alguma, senão aquelas dos governadores das províncias que os elegiam. As províncias não poderiam escolher livremente os seus governantes; as populações tinham que os escolher entre certas e determinadas famílias, aparentadas pelo sangue ou por
afinidade.
Havia artigos muito bons, como por exemplo o que determinava a não acumulação de cargos remunerados e aquele que estabelecia a liberdade de profissão; mas, logo, surgiu um deputado prudente que estabeleceu o seguinte artigo nas disposições gerais: "Toda a vez que um artigo desta
Constituição ferir os interesses de parentes de pessoas da 'situação' ou desmembros dela, fica subentendido que ele não tem aplicação no caso".
Na constituinte, todos esperavam ficar na "situação", de modo que o artigo acima foi aprovado unanimemente.
Com este artigo a Lei Suprema da Bruzundanga tomou uma elasticidade extraordinária. Os presidentes de província, desde que estivessem de acordo com o presidente da República, -- na Bruzundanga chama-se Mandachuva -- faziam o que queriam.
Se algum recalcitrante, à vista de qualquer violação da Constituição, apelava para a Justiça (lá se chama Chicana), logo a Corte Suprema indagava se feria interesses de parentes de pessoas da situação e decidia conforme o famoso artigo.
Um certo governador de uma das províncias da Bruzundanga, grande plantador de café, verificando a baixa de preço que o produto ia tendo, de modo a não lhe dar lucros fabulosos, proibiu o plantio de mais um pé que fosse da "preciosa rubiácea".
Era uma lei colonial, uma verdadeira disposição da carta régia. Houve então um cidadão que pediu habeas corpus para plantar café. A Suprema Corte, à vista do tal artigo citado, não o concedeu, visto ferir os interesses do presidente da província, que pertencia à "situação".
Como todo o mundo não podia pertencer à "situação", os que ficavam fora dela, vendo os seus direitos postergados, começavam a berrar, a pedir justiça, a falar em princípios, e organizavam, desta ou daquela maneira, masorcas.
Se eram vitoriosos, formavam a sua "situação" e começavam a fazer o mesmo que os outros.
Havia apelo para a "Chicana", mas a Suprema Corte, considerando bem o tal artigo já citado, decidia de acordo com a 'situação". Era tudo a "situação".
Todos os partidos que não pertenciam a ela, pregavam a reforma da Constituição; mas, logo que a ela aderiam, repeliam a reforma como um sacrilégio.
A Constituição afirmava que ninguém podia ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma cousa, senão em virtude de lei. Não havia lei que permitisse as províncias deportar indivíduos de uma para outra, mas o Estado do Kaphet, graças ao tal artigo, deportava quem queria e ainda
encomendava aos jornais que o chamassem de província modelo.

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