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quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Admirável Mundo Novo - Aldous Huxley [parte 22]

Foi uma heroica descrição a que ele fez, nessa noite, da sua entrevista com o D. I. C. - E então -
terminou ele - mandei-o muito simplesmente para ... o Passado sem Fundo. E saí de cabeça erguida. E
pronto.
Dirigiu a Helmholtz Watson um olhar de quem espera qualquer resposta, simpatia, encorajamento,
admiração, como lhe era devido. Mas não teve nenhuma resposta. Helmholtz ficou sentado e
silencioso, os olhos no chão.
Gostava muito de Bernard e estava-lhe reconhecido por ser o único homem do seu conhecimento com
quem podia conversar sobre assuntos que lhe pareciam importantes. No entanto, havia em Bernard
coisas detestáveis. Essa gabarolice, por exemplo, alternada com as explosões de uma piedade por si
próprio que eram uma verdadeira falta de dignidade, assim como esse deplorável costume que tinha de
ser ousado, depois do sarilho passado, e cheio, a distância, da mais extraordinária presença de espírito.
Detestava todas essas coisas, precisamente porque gostava de Bernard. Os segundos passavam.
Helmholtz continuou de olhos fixos no chão. E subitamente Bernard corou e afastou o olhar.


III
A viagem efetuou-se sem qualquer incidente. O Foguete Azul do Pacífico chegou a Nova Orleães com
dois minutos e meio de atraso, perdeu quatro minutos num tornado sobre o Texas, mas, encontrando
uma corrente aérea favorável a noventa e cinco graus de longitude oeste, aterrou em Santa Fé com
menos de quarenta segundos de atraso sobre o horário.
- Quarenta segundos, num voo de seis horas e meia. Não é mau - concedeu Lenina.
Dormiram essa noite em Santa Fé. O hotel era excelente, infinitamente superior, por exemplo, a esse
ignóbil Aurora Boreal Palace, onde Lenina tanto tinha sofrido no Verão anterior.
O ar líquido, a televisão, a vibromassagem por vácuo, a T. S. F., a cafeína líquida quente, os
preservativos mornos e os perfumes
de oito espécies diferentes estavam instalados em todos os quartos. O aparelho de música sintética que
funcionava no balcão quando entraram, nada deixava a desejar. Um aviso colocado no elevador
anunciava a existência no hotel de sessenta campos de bola escalator e de um parque onde se podia
jogar golf de obstáculos e golf electromagnético.
- Isto parece-me absolutamente delicioso! - disse Lenina. Quase desejo que fiquemos aqui. Sessenta
campos de bola escalator...
- Que não haverá na Reserva - retorquiu Bernard, à maneira de aviso. - Nem tão-pouco perfumes, nem
televisão, nem mesmo água quente. Se pensa que não pode suportar tais faltas, fique aqui até eu
regressar.
Lenina ficou magoada.
- Claro que posso suportar. Se disse que isto aqui é delicioso, foi apenas ... meu Ford, porque o
progresso é, com efeito, uma coisa deliciosa, não é verdade?
- Quinhentas repetições, uma vez por semana, dos treze aos dezessete anos - disse Bernard
com desânimo, como se falasse consigo próprio.
- Que disse?
- Disse que o progresso é uma coisa deliciosa. E por isso, não deve ir à Reserva, a não ser que tenha
realmente Vontade.
- Mas eu tenho realmente vontade.
- Então está bem - disse Bernard em tom quase ameaçador.
A autorização devia ser verificada pelo conservador da Reserva, no gabinete do qual se apresentaram,
como era devido, na manhã seguinte. Um porteiro negro Epsilão-Mais recebeu o cartão de Bernard e
fê-los entrar quase de seguida.
O conservador era um Alfa-Menos braquicéfalo e louro, pequeno, avermelhado, de rosto redondo,
largo de ombros, com uma voz forte e atroadora, muitíssimo bem adaptada à emissão da
sabedoria hipnopédica. Era uma mina das mais variadas informações e de bons conselhos
gratuitos. Uma vez lançado, continuava, continuava sempre, trovejando sem interrupção:
- Quinhentos e sessenta mil quilômetros quadrados, divididos em quatro sub-reservas distintas, cada
uma das quais está
cercada de rede metálica de alta tensão ...
Nesse momento, sem razão aparente, Bernard lembrou-se subitamente de que tinha deixado aberta e
correndo a jorros a torneira de água-de-colônia do seu quarto de banho.
- ... percorrida por uma corrente proveniente da central hidroeléctrica do Grand Canyon...
«Vai custar-me uma fortuna até que volte a casa.» Bernard via em espírito a agulha do contador de
perfume avançar, volta após volta, no quadrante, como uma formiga, infatigavelmente. «Telefonar
urgentemente para Helmholtz Watson.»
- ... mais de cinco mil quilômetros de rede metálica a sessenta mil volts.
Sério? - disse polidamente Lenina, que não percebera nada do que o conservador estava a dizer, mas
modulando o tom da sua réplica pela pausa dramática do seu interlocutor.
Quando o conservador começara a dissertar na sua voz atroadora Lenina engolira discretamente meio
grama de soma, o que lhe permitia estar ali sentada com toda a serenidade, não ouvindo nem pensando
absolutamente em nada, mas fixando, com uma expressão de profunda atenção, os seus grandes olhos
azuis no conservador.
- Tocar a rede é a morte instantânea - declarou solenemente o conservador. - Não há forma alguma de
evasão de uma Reserva de Selvagens.
A palavra «evasão» era evocadora. -Talvez - disse Bernard, soerguendo-se da cadeira - seja a altura de
partirmos.
A pequena agulha negra caminhava como um inseto, engolindo o tempo, abrindo à dentada uma
estrada através do seu dinheiro.
- Forma alguma de evasão - repetiu o conservador, fazendo-o sentar novamente com um gesto. Como a
autorização ainda não estava visada, Bernard nada mais pôde fazer senão obedecer. - Aqueles que
nascem na Reserva, e não esqueça, minha senhora - acrescentou, dirigindo a Lenina uma olhadela
obscena e falando num murmúrio assaz inconveniente -, não esqueça que na Reserva as crianças ainda
nascem, sim, nascem efetivamente, por muito revoltante que isso pareça ... (Esperava que esta alusão
a um assunto escabroso fizesse corar Lenina. Mas
ela limitou-se a esboçar um sorriso onde a inteligência era simulada e a exclamar: «Quem diria!?»)
Desiludido, o conservador continuou:
- Aqueles que nascem na Reserva, repito, estão destinados a lá morrer.
«Destinados a morrer ... Um decilitro de água-de-colônia por minuto. Seis litros por hora.»
- Talvez fosse melhor... - arriscou de novo Bernard. Inclinando-se para a frente, o conservador bateu na
mesa com o dedo indicador.
- Perguntam-me quantas pessoas vivem na Reserva. Respondo - continuou triunfalmente -,
respondo que não sei. Apenas podemos fazer um cálculo.
- Sério?
- Sim, a sério, minha querida senhora. Seis vezes vinte e quatro. Não. Seis vezes trinta e seis, seria
mais verdadeiro. Bernard estava pálido e trêmulo de impaciência. Mas a atroadora exposição
continuava. - Perto de sessenta mil índios e mestiços... absolutamente selvagens ... Os nossos
inspetores visitam-nos de vez em quando ... Fora disso, nenhuma comunicação, seja de que espécie
for, com o mundo civilizado ... Conservam os seus hábitos e os seus costumes repugnantes: o
casamento, se é que sabe o que isso quer dizer, minha querida senhora; a família... nenhum
condicionalismo ... superstições monstruosas ... o cristianismo e o totemismo, o culto dos antepassados
... línguas extintas, o zuiñi, o espanhol, o athapascan... pumas, porcos-espinhos e outros animais
ferozes... doenças contagiosas... padres ... lagartos venenosos...
- Sério? Finalmente acabaram por se safar. Bernard precipitou-se para o telefone. Depressa, depressa.
Mas foram precisos mais de três minutos para obter comunicação com Helmholtz Watson.
- Parece que já estamos entre os selvagens - lamentou-se ele. - Que tremenda desordem!

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