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quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Balas de Estalo - Machado de Assis [parte 3]

Os secretas compreenderam que a primeira condição de uma polícia secreta era ser secreta. Para isso era indispensável, não só que ninguém soubesse que eles eram secretas, como até que nem mesmo chegasse remotamente a suspeitá-lo. Como impedir a descoberta ou a desconfiança? De um modo simples: - gritando: Sou secreta! os secretas deixavam de ser secretas, e, sabendo o público que eles Já não eram secretas, agora é que eles ficavam verdadeiramente secretas. Não sei se me entendem. Eu não entendi nada.
Mas, neste assunto, tudo o que se possa dizer não vale a cena, que se deu há cinco ou seis anos, na Rua da Uruguaiana. Está nos jornais do tempo. Um grupo de homens do povo perseguia a um indivíduo, que acusavam de ter praticado um furto. Os perseguidores corriam gritando: Ésecreta! é secreta! Perto da Rua do Ouvidor, conseguem apanhar o fugitivo, e aparece um urbano. Este chega, olha para o perseguido, e, com um tom de repreensão amiga: - Deixa disso, Gaudêncio!
Polícia secreta, que se divulga, ministros de uma república, que matam o presidente, eis aí dois fenômenos que comprovam aquele dito do Cardeal Antonelli: il mondo casca. Que diria o bom cardeal, se visse, como vi há dias, um frade dentro de um tílburi? É verdade que chovia, e que a chuva, quando cai, não poupa ninguém ;pode ser mesmo que a coisa não encontre oposição nos cânones. Mas para mim a questão é de estética. Há em mim um resto de costela romântica, que não permite frade fora do mosteiro. Concedo-lhe que ande a pé, concedo-lhe um cavalo, uma cama, um refeitório; mas homem, tílburi!


[16 dezembro]
VALENTIM MAGALHÃES perdeu uma bela ocasião de não ficar zangado. As suas "Notas à Margem", de ontem, são uma das mais odiosas injustiças deste tempo, aliás tão farto delas.
Não tenho nada com os quatro bacharéis em direito que foram ao enterro de Teixeira de Freitas, nem com os que lá não foram. Entretanto, podia lembrar ao meu amigo Valentim Magalhães, que algum motivo poderoso, embora insignificante, pode ter causado a escassez de colegas no enterro; por exemplo, a falta de calças pretas.
Por mais poeta que seja, Valentim Magalhães tem obrigação (visto que está na imprensa) de compulsar os documentos oficiais e comerciais, os livros dos economistas, as tabelas de importação e exportação. Se o fizesse, saberia que todos os anos, desde fins de novembro até princípios de março, os países quentes exportam para a Groenlândia grande número de calças pretas. Nos países frios, a exportação verifica-se entre abril e agosto. Este fenômeno tem sido objeto de profundas cogitações. Laveleye (Da Vêtement Humain, p. 79) afirma que o consumo imoderado de calças pretas entre os groenlandeses há de produzir imensa alteração nos hábitos europeus. Eis as próprias palavras do economista belga:
Je crois même, avec de bons auteurs, que dans un siècle l'Europe ne portera plus que de pantalons gris, jaunes ou même bleus, car il est averé qu'avec nos moyens chimiques c'est impossible de teindre une telle quantité de pantalons noirs. I1 faudra bien, ou changer nos habitudes, ou supprimer les groelandais.
Leia Valentim Magalhães o ornal dos Alfaiates (tomo XVII, p. 14) e achará que, nos últimos dez anos, a exportação de calças pretas da Europa e dos Estados Unidos para a Groenlândia atingiu a dez milhões de exemplares.
Essa pode ser a causa da escassez dos amigos e colegas. Essa foi também a causa da pouca gente que acompanhou Alencar ao último jazigo. Alencar morreu em dezembro.Também ele era jurisconsulto, e era romancista, orador e político. Não era só isto: era o chefe da nossa literatura. Poderemos crer que a pouca gente no enterro dele era uma expressão de indiferença? De nenhum modo.
Mas, em suma, nada tenho com os mortos. Vivam os vivos!
Os vivos são os que meu amigo Valentim designa pelo nome de medalhões. Em primeiro lugar, há ainda um certo número de espíritos bons, fortes e esclarecidos que não merecem tal designação. Em segundo lugar, se os medalhões são numerosos, pergunto eu ao meu amigo: - Também eles não são filhos de Deus? Então, porque um homem é medíocre, não pode ter ambições e deve ser condenado a passar os seus dias na obscuridade?
Quer me parecer que a ideia do meu amigo é da mesma família da de Platão, Renan e Shopenhauer, uma forma aristocrática de governo, composto de homens superiores, espíritos cultos e elevados, e nós que fôssemos cavar a terra. Não! mil vezes não! A democracia não gastou o seu sangue na destruição de outras aristocracias, para acabar nas mãos de uma oligarquia ferrenha, mais insuportável que todas, porque os fidalgos de nascimento não sabiam fazer epigramas, e nós os medíocres e medalhões padeceríamos nas mãos dos Freitas e Alencares, pare não falar dos vivos
E, depois, onde é que o meu Valentim compra as suas balanças? Ignora ele que a felicidade humana e social depende da repartição eqüitativa dos ônus e das vantagens? Perante qual princípio e aceitável essa teoria, de dar tudo a uns e nada aos outros? Lástima que Teixeira de Freitas não tivesse uma cadeira de legislador. Mas, com todos os diabos! não se pode ao mesmo tempo votar as leis e consolidá-las. Que um as consolide, e tanto melhor, se a obra sair perfeita mas que outros as façam; que o Sr. José Zózimo, que não consolidou nada, levante a voz no areópago da nação. Ele não paga imposto? Não está no gozo dos direitos civis e políticos? Que lhe falta, pois? Não inventa, é verdade; mas o meu amigo esquece que tudo ou quase tudo está inventado:-a pólvora, a imprensa, o telescópio.
Portanto, emende a sua filosofia social, e venha tomar chá comigo.

1884

[10 janeiro]
Hão de ter paciência; mas, se cuidam que a bala hoje é de quem a assina, enganam-se. A bala é de um finado, e um velho finado, que é pior; é de Drummond, o diplomata. Se o leitor pode desviar os olhos das graves preocupações de momento, para algumas coisas do passado, venha ler dois ou três pedaços da memória inédita que a Gazeta Literária está publicando. A memória, realmente, trata de coisas antediluvianas, coisas de 1822, mas, em suma, 1822 existiu como este ano de 1884 há de um dia ter existido; e se qualquer de nós fala de seu avó, que os outros não conheceram, falemos um pouco de Drummond, José Bonifácio, D. João VI e D. Pedro.
Diabo! Mas, pelos modos, não é uma bala de estalo, é uma bala de artilharia! Não, não; tudo o que há mais bala de estalo. Eu só extraio de Memória aquilo que o velho Drurmmond escreveu prevendo a Gazeta de Notícias e os autores desta nossa confeitaria diária. Não é que a Memória não seja toda curtíssima de anedotas do tempo; mas os que se interessam por essas coisas, são naturalmente em pequeno número, e eu só amolarei a maioria dos meus semelhantes, quando não der por isso; de propósito, nunca.
Assim, por exemplo, credo que ao leitor de hoje importa pouco saber, se em 1817, dadas as denúncias contra os maçons, houve grandes patrulhas e tropas nos quartéis, só pare prender o maçon Luís Prates, que morava na Rua da Alfândega. Creio mesmo que não lhe interessa este juízo de Drummond acerca do oficial encarregado de prender aquele indivíduo: "era o Coronel Gordilho(diz o velho diplomata) que depois foi pelo merecimento da sua ignorância Marquês de Jacarepaguá e senador pelo império." Entretanto, esta expressão-merecimento da sua ignorância é de bala de estalo. Vamos, porém, a uma anedota desse mesmo ano de 1817, galantissíma, uma verdadeira bala de estalo, feita pelo rei D. João VI, que também tinha momentos de bom humor:
Entre os maçons que se denunciaram a si mesmos, refiro os nomes de dois pelas cenas bufas que essas denúncias causaram. Foram o Marquês de Angeja e o Conde de Parati. O rei caiu estupefato das nuvens, e ainda lhe parecia impossível que dois camaristas seus, ambos estimados e um valido, fossem maçons! O Marquês de Angeja ajuntou aos protestos do seu arrependimento a oferta, que foi aceita, de toda a sua prata pare as urgências do Estado. Foi logo expedido em comissão para Portugal, a fim de tomar o comando e conduzir ao Rio de Janeiro a divisão auxiliadora, que se mandava vir extraída do exército de Portugal. Quanto ao Conde de Parati, o negócio era mais sério. O rei era muito afeiçoado a este conde, que foi no Rio de Janeiro o seu primeiro valido e morava no paço. Nem os protestos de arrependimento, nem a oferta de sua prata, que a não tinha, porque se servia da que era da casa real, podiam inspirar inteira confiança a respeito de quem, em razão do seu ofício e das relações de amizade, devia continuar no serviço e no valimento de Sua Majestade. Em tão apuradas circunstâncias, o rei saiu pela tangente de um expediente assaz curioso. Disse ao conde, que, pare lhe não ficar nada do passado, de que se arrependia, era necessário que tomasse o hábito de irmão da Ordem Terceira de S. Francisco da Penitência. Foi um dia de festa no paço aquele em que o conde prestou juramento e foi recebido irmão da Ordem Terceira. O contentamento do rei não podia ser maior. O Conde de Parati, para fazer a vontade à Sua Majestade, andou no paço todo aquele dia com o hábito da Ordem; destinado a lavá-lo dos seus erros.
Na verdade, a cena é engraçada, e força é dizer que o absolutismo tinha coisas boas. O marquês, dando a prata para salvar a pele, está indicando ao nosso governo constitucional um recurso útil nas urgências do Estado. Mas o caso do conde é melhor. Esse maçon, obrigado a passear vestido de hábito de São Francisco, foi um belo achado do rei. De certo modo, foi uma antecipação do conflito que mais tarde levou dois bispos aos tribunais, com a diferença que aquilo que o Conde de Parati só pôde fazer obrigado, foi justamente o que a maçonaria queria fazer por vontade própria: -andar de hábito. Não penso nisto que me não lembre do nome que em geral teve esse famoso conflito, um nome inventado para castigo dos meus pecados. Lembra-se o leitor? Questão epíscopo-maçônica. Recite isto com certa ênfase: -questão epíscopo-maçônica. Não lhe parece que vai andando aos solavancos numa caleça de molas velhas? Epíscopo-maçônica.
Já transcrevi outros trechos, mas recuei. São interessantes, muito interessantes. mas não são alegres. São anedotas relativas todas à independência, e nelas é que entram D. Pedro e José Bonifácio. Por conseqüência; o dito por não dito; não dou mais nada.
Contudo, sempre lhes direi, aqui, que ninguém nos ouve: o conselho de ministros no paço, as palavras de José Bonifácio ao Bregaro; a volta de D. Pedro depois de declarar a independência; a gente que correu a São Cristóvão; a imperatriz, que, não tendo mais fitas verdes para fazer laços, fê-los com as do próprio travesseiro; D. Pedro, um rapaz de 24 anos, impetuoso e ardente; José Bonifácio grave e forte, e, quando preciso, alegre; a gente que encheu à noite o teatro; as senhoras de laço verde ao peito; toda essa nossa aurora dá-me uma certa sensação profunda e saudosa, que não encontro... Onde? no nariz do leitor, por exemplo.

[26 abril]
ENFIM! Os lobos dormem com os cordeiros, e as lingüiças andam atrás dos cães. São as notícias mais frescas do dia.
Que os lobos dormem com os cordeiros, basta ver o anúncio que anda nas folhas, um anúncio extraordinário, pasmoso, um anúncio da Rua do Hospício. Vende-se ali, está ali à espera de algum amador que o queira comprar, não um chapéu ou um gato, não um jogo de cortinas, um armário, um livro, uma comenda que seja, mas um (custa dizê-lo!) mais um (ânimo!) mas um (palavra, só escrever o nome dá um arrepio pela espinha abaixo), mas um (vamos!) mas um tigre.
Sim, senhores, vende-se ali um tigre. O tigre, essa fera que os poetas arcádicos nunca deixaram de dizer que era da Hircânia, e ao qual comparavam os namorados, quando elas olhavam para outros; o tigre já não é um simples desenho dos livros infantis ou uma criatura empalhada do museu; o tigre vende-se na Rua do Hospício como o chá preto e as cadeiras americanas.
Um pouco mais, e vamos ouvir discursar um camelo ou um jumento, ou damos a calçada a verdadeiros cavalos. Se isto não é a terra da promissão, façam-me o favor de dizer o que é.
Quanto aos cães perseguidos por lingüiças, vão ver se minto.
Morreu um homem, deixando em testamento alguns legados. Noutro tempo, os legatários nunca mais perdiam de olho o inventário tinham procurador para lhes cuidar do negócio, farejavam o cartório, e passavam algumas noites em claro. Tudo mudou depois que os tigres se vendem na Rua do Hospício. Agora são os testamenteiros que andam atrás dos legatários. Um daqueles, desesperado de esperar por estes, fez um anúncio repleto de legítima impaciência, em que declara, decorrido algum tempo da publicação do testamento do Comendador Pacheco, que, estando o inventário a encerrar-se, pede aos interessados vão requerer o que for a bem do seu direito "sob pena de, julgadas as partilhas, irem haver do herdeiro da terça os seus legados."
Ubinam gentium sumus? Os legados atrás dos legatários as lingüiças farejando os cães! Deus meu, bateu finalmente a hora da harmonia e do desinteresse? Vamos ver as comendas atrás das casacas, e elas a fugirem-lhes vexadas e desdenhosas? Os vencimentos em vez de os irmos nós buscar, irão ter com a gente? Os bens passarão a correr atrás dos frades?

[15 maio]
CHEGANDO anteontem, à noite, de Macacu, onde fui estudar as febres de 1845, fiquei surpreendido com a notícia de ter o meu nome figurado em uma comissão que foi pedir a Lulu Sênior a reentrada do colega Décio. Jurei a todas as pessoas que era falso; mas mostraram-me o número da Gazeta em que Lulu Sênior narrava tudo, e com efeito vi o meu nome, e até palavras que me são atribuídas.
Parecendo-me a graça um tanto pesada, entendi que era caso de um desforço pelas armas, e incumbi dois amigos, o Dr. F. C., distinto médico, e um membro do parlamento, lhe irem pedir satisfação ou testemunhas.
Eram oito horas da manhã, quando os meus dois amigos treparam ao morro, e onze quando voltaram ambos com a alma aos pés. Imaginei a princípio que ele recusara o duelo; mas o Dr. F. C. tirou-me logo esta idéia, dizendo:
- Coisa pior, coisa pior.
- Que é então?
-Tenha ânimo; seja homem. O seu amigo...
- Que tem?
- Não se irrite contra ele. Tudo aquilo é um puro caso patológico. Estivemos seguramente duas horas juntos, e reconheci que ele está louco.
- Não me diga isto!
- Não digo louco varrido, formalmente louco; mas padece de alucinações, idéias delirantes; não está bom, não; e se não tiverem cuidado, pode acabar mal, muito mal. A história da comissão foi verdadeira, quero dizer, ele imaginou que tinha a comissão diante de si, conversou com as pessoas, ouviu as palavras e escreveu-as. Quando chegamos, ele supôs logo que éramos outra comissão, e que éramos cinco. Dirigiu-se a uma cadeira vazia pare lhe dizer: - "Mas, V. S.a como relator da comissão. . . " Em suma, padece do que chamamos em medicina comissiomania ou mania das comissões. A prova é que o sondei logo, segundo nos ensinam os patologistas, e perguntei-lhe se iria hoje à igreja de S. Francisco, à Rua Municipal, e ao paquete Amazone. Respondeu-me alegre que sim, que tenha que falar em São Francisco com o comissário da Ordem Terceira, na Rua Municipal com dois comissários de café, e no paquete com o respectivo comissário. - Vê Sempre a mesma mania.
- Mas, então, perdido?...
Não, ainda pode salvar. Essas alucinações e delírios, quando não tratados, podem chegar à demência total, e mesmo à idiotice e à imbecilidade, para a qual noto-lhe uma certa tendência. Urge não perder tempo.
- Mas, doutor, é impossível, ele raciocina perfeitamente.
Que tem isso? Há mil, há cem mil pessoas no universo, que raciocinam perfeitamente. e. entretanto, padecem de uma dessas alucinações ou delírios. Conheço um alferes que está persuadido de ser major. Um deputado da legislatura de 1864 imaginava que o imperador lhe oferecia todas as manhãs a pasta dos negócios estrangeiros. Contou-me mais de uma vez como se passavam as coisas. O imperador entrava (era na casa de D. Maria, Rua da Ajuda), ia ao quarto dele, com a pasta na mão, e dizia-lhe: "Romualdo, tu por que é que não hás de ser ministro?" Pois bem; este deputado proferiu muitos dos melhores discursos parlamentares de 1864 e 1865. Você não tem lido nos jornais notícias de comissões que vão oferecer isto ou aquilo, um retrato, uma venera, etc., a pessoas completamente obscuras ou insignificantes?
-Tenho; leio muitas vezes.
- Pois saiba que não há tal. São casos de comissiomania. Essas pessoas vêem, sinceramente, por alucinação, uma comissão diante de si, oferecendo-lhes alguma coisa - venera ou retrato, ouvem os discursos, agradecem, convidam para um copo d'água, e crêem que dançam, e que as danças se prolongam até à madrugada. São casos puramente patológicos. Não há neles a menor sombra de comissão ao menos no estado agudo da moléstia, porque é observação feita que, quando a cura começa a operar-se, o doente ilude-se a si mesmo arranjando uma comissão de verdade, que vai deveras à casa dele com a venera, que ele mesmo comprou, e lhe fazem discursos, comem realmente, e as danças prolongam-se até de manhã...


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