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terça-feira, 29 de outubro de 2013

Admirável Mundo Novo - Aldous Huxley [ parte 31]

Bernard teve como segundo amigo-vítima Helmholtz. Quando, derrotado, voltou a procurar esta
amizade que, na prosperidade, não tinha considerado útil conservar, Helmholtz tornou a dar-lha. E
restituiu-lha sem uma censura, sem um comentário, como se tivesse esquecido que houvera entre eles
um desentendimento. Comovido, Bernard sentiu-se ao mesmo tempo humilhado por esta
magnanimidade, magnanimidade tanto mais extraordinária e por isso tanto mais humilhante por não ser
devida ao soma, mas sim e inteiramente ao caráter de Helmholtz. Era o Helmholtz da vida quotidiana,
que esquecia e perdoava, não o Helmholtz das fugas proporcionadas por meio grama de soma. Bernard
mostrou-se grato, como devia - era um grande conforto voltar a encontrar o amigo -, mas também
saturado de ressentimento - seria um prazer vingar-se de Helmholtz e da sua generosidade.
Por ocasião do seu primeiro encontro depois da separação, Bernard contou-lhe a história das suas
misérias e aceitou as consolações oferecidas. Só alguns dias depois veio a saber, com espanto e com
vergonha lancinante, que não era o único que estava em dificuldades. Também Helmholtz estava em
conflito com a Autoridade.
- Foi a propósito de alguns versos - explicou Helmholtz. - Estava a fazer o meu curso habitual de
Técnica Emocional, o curso superior para os estudantes do terceiro ano. Doze conferências, das quais a
sétima trata de versos. «Do Emprego dos Versos na Propaganda Moral e na Publicidade», para ser
exacto. Ilustro sempre as minhas conferências com uma grande quantidade de exemplos técnicos. Desta
vez pensei em dar-lhes um que eu mesmo tinha escrito. Era pura loucura, bem entendido, mas não fui
capaz de resistir. - Pôs-se a rir. - Tinha curiosidade de ver quais seriam as reações dos alunos. Além
disso - acrescentou mais gravemente -, queria fazer uma propagandazinha;
tentava levá-los a sentir o que eu tinha sentido ao escrever os versos. Ford! - Riu-se outra vez. -
Que
escândalo! Fui chamado pelo Diretor, que me ameaçou com a expulsão imediata. Sou um homem
marcado!
- Mas como eram os seus versos? -perguntou Bernard.
- Falavam da solidão. Bernard arqueou as sobrancelhas.
- Vou recitar-lhos, se quiser. E Helmholtz começou:
A reunião de ontem, Dúvidas,
um tambor silenciado,
Meia-noite sobre a cidade,
Flutuam no vácuo,
Lábios fechados, faces adormecidas,
Todas as máquinas paradas,
O silêncio e a desordem
Onde esteve a multidão.
Todo o silêncio se alegra,
Lamenta-se (ruidosamente ou débil),
Fala, mas com uma voz
Que não sei donde vem.
Lamenta a ausência de Susan,
A ausência de Egeria,
A falta dos seus braços e dos seus corações,
Dos seus lábios, ah, mas depois,
Lentamente, nota-se a sua presença;
De quem? E, pergunto, de quê
Tão absurdo na essência,
Essa coisa indefinida, sem existência,
Nunca conseguirá povoar
A noite vazia mais solidamente
Que aquela que copulamos.
Porque tem ela um aspecto tão esquálido?
Aqui está: dei-lhes isto como exemplo, e eles denunciaram-me ao Diretor.
- Não me admira - volveu Bernard. - Está em completo desacordo com tudo o que lhes foi ensinado
durante o sono. Lembre-se disto: martelaram-lhes pelo menos um quarto de milhão de vezes a
advertência contra a solidão.
- Bem sei. Mas eu queria ver o efeito que causaria.
- Pois bem! Agora já sabe. Helmholtz limitou-se a rir.
- Parece-me - acrescentou depois de um silêncio - que começo justamente a ter um tema para
desenvolver, que começo a ser capaz de usar este poder que sinto existir em mim, este poder
suplementar, latente. Parece-me que sinto isso.
Apesar de todas as suas dificuldades, ele parecia, pensou Bernard, profundamente feliz.
Helmholtz e o Selvagem foram atraídos desde o primeiro momento por uma simpatia recíproca. Tão
cordial mesmo que Bernard chegou a sentir ardentes ciúmes. Depois de tantas semanas não tinha
alcançado um grau de intimidade tão completa com o Selvagem como o conseguido imediatamente
por Helmholtz. Observando-os, ouvindo as suas conversas, arrependia-se às vezes, cheio de
ressentimento, de os ter apresentado. Tinha vergonha do seu ciúme, e umas vezes fazia esforços de
vontade e noutras tomava soma para o não sentir, Mas os seus esforços não tiveram, porém, muito
êxito. Entre as fugas do soma havia, forçosamente, intervalos. O odioso sentimento persistia em voltar.
Por ocasião do seu terceiro encontro com o Selvagem, Helmholtz recitou-lhe os seus versos acerca da
solidão.
- Que lhe parecem? - perguntou ao terminar.
O Selvagem meneou a cabeça.
- Ouça isto - disse à guisa de resposta. E, abrindo com uma volta de chave a gaveta onde guardava o
seu livro roído pelos ratos, tirou-o e leu:
Que o pássaro de mais forte gorjeio
Sobre a única árvore da Arábia,
Seja um melancólico arauto e uma trombeta ...
Helmholtz escutou com uma excitação crescente. Depois de «a única árvore da Arábia» sobressaltou-se;
depois de «tu, mensageiro ruidoso» sorriu com súbito prazer; depois de «todo o pássaro de asa
tirânica» o sangue subiu-lhe à cara; porém, depois de «música fúnebre» empalideceu e tremeu com
uma emoção inteiramente nova. O Selvagem continuou a ler:
O sentido do eu ficou aterrado, Desse eu que não é o mesmo;
Natureza única de duplo nome
Nem dois nem um era chamado. A própria razão confundida
Viu a divisão aumentar nela ...
- Orgia-folia! - disse Bernard, interrompendo a leitura com um riso sonoro e desagradável. - É, nada
mais, nada menos, um cântico da Cerimônia de Solidariedade.
Vingava-se assim dos seus dois amigos por sentirem um pelo outro mais afeição que por ele.
Durante as duas ou três reuniões seguintes repetiu frequentemente este pequenino ato de vingança.
Era simples e extremamente eficaz, pois tanto Helmhotz como o Selvagem ficavam profundamente
penalizados vendo quebrar e macular um cristal poético que lhes era caro. Por fim, Helmholtz ameaçou
pô-lo na rua a pontapés se ousasse interrompê-los outra vez. E contudo, coisa estranha, a interrupção
seguinte, a mais vergonhosa de todas, nasceu do próprio Helmholtz.
O Selvagem lia em voz alta Romeu e Julieta, lia (porque se via sob os traços de Romeu e Lenina sob os
de Julieta) com uma paixão intensa e vibrante. Helmholtz ouvira com um intrigado interesse a cena do
encontro dos dois amantes. A cena do pomar tinha-o encantado pela sua poesia, mas os sentimentos
manifestados fizeram-no sorrir. Reduzir-se a tal estado por causa de uma mulher parecia-lhe
extremamente ridículo. Mas, examinando um por um cada pormenor verbal, que soberbo trabalho de
gênio emotivo!
- Esse bom velho - disse ele - faz parecerem inteiramente tolos os nossos melhores técnicos de
propaganda!
O Selvagem teve um sorriso de triunfo e prosseguiu na leitura. Tudo foi razoavelmente bem até ao
ponto em que, na última cena do terceiro ato, Capuleto e Lady Capuleto começam a persuadir Julieta,
pela coerção, a desposar Paris. Helmholtz mostrara-se agitado durante toda a cena. Mas quando, com a
mímica patética do Selvagem, Julieta exclamou:
Não há nas nuvens nenhuma piedade
Que veja o abismo da minha dor?
Oh, minha doce mãe, não me repudies!
Retarda este consórcio um mês, uma semana;
OU, senão, faz erguer o meu leito nupcial
No sombrio mausoléu onde repousa Tybalt...
quando Julieta acabou de dizer isto, Helmholtz foi incapaz de conter a explosão de uma estrepitosa
gargalhada.
A mãe e o pai (obscenidade grotesca) obrigando a filha a entregar-se a alguém que ela não queria! E
esta estúpida filha que não dizia que se entregaria a um outro, a quem (de momento, pelo menos)
preferia! No seu absurdo repugnante, a situação era irresistivelmente cômica! Ele conseguira, com
heroico esforço,
conter a pressão crescente da sua hilaridade; mas «doce mãe» (no tom trêmulo de angústia com que o
dissera o Selvagem) e a alusão a Tybalt estendido morto, mas manifestamente não incinerado e
desperdiçando o seu fósforo numa capela sombria, isso foi de mais para ele. Começou a rir às
gargalhadas até que as lágrimas lhe começaram a correr pela cara abaixo, gargalhando com um riso
inextinguível enquanto, pálido pela consciência do ultraje, o Selvagem o olhava por cima do livro. E
depois, como o riso continuasse sempre, fechou-o com indignação, levantou-se e, com o gesto de
alguém que retira as suas pérolas da frente dos porcos, guardou-o na gaveta, fechando-a à chave.

- E, no entanto - disse Helmholtz quando conseguiu tomar o fôlego necessário para poder desculpar-se,
acalmando o Selvagem a ponto de o fazer ouvir as suas explicações -, sei muito bem que são
necessárias situações ridículas e loucas como essas; não se pode verdadeiramente escrever bem sobre
quaisquer outros assuntos. Porque é que esse bom velho era um tão maravilhoso técnico de
propaganda? Porque dispunha de bastantes coisas insensatas, loucamente dolorosas, pelas quais se
podia exaltar. É preciso estar-se ferido, perturbado, pois sem isso não se encontram as expressões
verdadeiramente boas, penetrantes, as frases de raios X. Mas os pais e as mães!... - Abanou a cabeça. -
Você não me pode exigir que me mantenha sério a propósito de pais e mães. E quem vai exaltar-se com
a questão de saber se um homem vai ou não possuir uma mulher? - O Selvagem teve um frêmito de
dor; mas Helmholtz, com os olhos pensativamente presos no soalho, não deu por isso. - Não - concluiu
com um suspiro -, - isto assim não vai. Precisamos de outra espécie de demência e de violência. Mas
qual? Ah! Qual? Onde a poderemos encontrar? - Deteve-se. Depois abanou a cabeça. - Não sei nada -
concluiu por fim -, não sei nada.

CAPÍTULO DÉCIMO TERCEIRO
A silhueta de Henry Foster apareceu na penumbra do Depósito de Embriões.
- Quer ir esta noite ao cinema perceptível? Lenina recusou com um movimento de cabeça, sem
pronunciar uma palavra.
- Você vai sair com alguém? - Interessava saber quais dos seus amigos, homens e mulheres,
andavam presentemente juntos - É com Benito? - perguntou. Ela abanou de novo a cabeça. Henry
percebeu a fadiga naqueles olhos avermelhados, a palidez sob aquele olhar sombrio, a tristeza nas
comissuras da boca carminada e sem sorriso.
- Você não se sente doente, pois não? - perguntou, já um Pouco inquieto, temendo que ela estivesse
afetada por uma das poucas doenças contagiosas que ainda subsistiam.
Lenina de novo acenou negativamente com a cabeça.
- Em todo o caso, devia ir ao médico - disse Henry. - Um médico por dia, a doença fugia - acrescentou
com íntima convicção, dando-lhe uma palmada no ombro para fazer penetrar bem profundamente o seu
adágio hipnopédico. - Talvez você esteja a precisar de um sucedâneo de gravidez - arriscou ele -, ou,
então de um tratamento de sucedâneo de paixão violenta extraforte. Às vezes, como sabe, o sucedâneo
da paixão normal não é, realmente...
- Oh! Pelo amor de Ford! - exclamou Lenina, rompendo o seu obstinado silêncio. - Cale-se!
E virou-se para os embriões que abandonara. Um tratamento de sucedâneo de paixão violenta, com
efeito...! Ela teria rido se não estivesse prestes a chorar. Como se, para desgraça sua, não tivesse
bastante paixão violenta! Suspirou profundamente enquanto enchia a seringa. "John - murmurou para si
própria - John ..." E depois: «Meu Ford, teria dado a este a sua injeção de doença do sono, ou não? »
Não foi
capaz de se lembrar. Por fim, resolveu não correr o risco de lhe dar segunda dose-e avançou ao longo
da fileira para a proveta seguinte.
Vinte e dois anos, oito meses e quatro dias depois, um jovem Alfa-Menos, muito prometedor,
administrador em Muanza-Muanza, morria de tripanossomíase - o primeiro caso em meio século.
Suspirando, Lenina recomeçou o seu trabalho.
Uma hora mais tarde, no vestiário, Fanny protestava energicamente:
- Mas é absurdo uma pessoa deixar-se chegar a esse estado. Simplesmente absurdo - repetiu. - E a
propósito de quê? De um homem, de um homem!
- Mas é o homem que eu quero.
- Como se não houvesse milhões de outros homens pelo mundo.
- Mas eu não quero esses.
- Como podes tu sabê-lo antes de teres experimentado?
- já experimentei.
- Mas quantos? - perguntou Fanny, encolhendo os ombros desdenhosamente. - Um, dois?
- Dúzias. Mas - acrescentou, meneando a cabeça - isso não me serviu de nada.
- Ora! É preciso insistir - sentenciou Fanny. Mas era evidente que a sua confiança na receita dada
estava abalada. - Nada se pode alcançar sem perseverança.
- Mas enquanto espero...
- Não penses nisso.
- Não posso deixar de pensar.
- Então toma soma.
É o que eu faço. Pois bem, continua! Mas nos intervalos continuo a gostar dele. Gostarei sempre dele. -
Pois então, se a coisa é assim - disse Fanny com decisão -, porque não o agarras, muito simplesmente,
quer ele queira quer não.
- Ah! Se soubesses como ele é terrivelmente estranho!
- Mais uma razão para escolher uma linha de conduta firme.
- Isso é muito fácil de dizer.
- Não toleres asneiras. Age. - A voz de Fanny soava como um trompete. Parecia uma conferencista da
Y. W. F. A. fazendo uma palestra noturna às Betas-Menos adolescentes. - Sim, age imediatamente.
Fá-lo desde já.
- Tenho muito medo - respondeu Lenina.
- Ora! Não tens de ingerir mais de meio grama de soma. E agora vou tomar o meu banho.
E partiu com passo decidido, arrastando a toalha.
A campainha retiniu. O Selvagem, que esperava impacientemente que Helmholtz o visitasse essa tarde
(porque, tendo-se decidido a falar de Lenina a Helmholtz, não podia suportar um atraso para as suas
confidências), pôs-se de pé de um salto e correu para a porta.
- Pressenti que era você, Helmholtz - gritou ao abrir. Na soleira, vestindo um fato à marinheiro de
cetim de acetato, uma boina branca descaindo audazmente sobre a orelha esquerda, estava Lenina.
- Oh! - exclamou o Selvagem, como se alguém lhe tivesse aplicado um soco vigoroso.
Meio grama de soma bastara a Lenina para a fazer esquecer os seus receios e constrangimentos.
- Então, John - disse, sorrindo e passando diante dele para entrar no compartimento.
Ele fechou automaticamente a porta e seguiu-a. Lenina sentou-se. Houve um longo silêncio.
- Você parece não estar muito contente por me ver, John - disse ela finalmente.
- Não estou contente? - O Selvagem olhou-a com ar de censura. Caiu inesperadamente de joelhos
diante dela e, pegando-lhe na mão, beijou-a com reverência. - Não estou contente? Ah! Se soubesse! -
murmurou. E, reunindo toda a sua coragem para erguer os olhos para ela, continuou: - Lenina, como eu
a admiro, verdadeiro píncaro da admiração, digna de tudo o que de mais precioso há no mundo... - Ela
sorriu-lhe com ternura deliciosa. - Oh, tão perfeita (ela inclinou-se para ele, os lábios entreabertos),
criada tão perfeita e incomparável (cada vez mais próxima), criada com tudo o que há de melhor em
todos os seres ...
Lenina estava ainda mais próxima. O Selvagem pôs-se subitamente de pé. - É por isso - disse ele,
desviando os olhos - que eu queria primeiro realizar alguma coisa ... Quer dizer: provar que era digno
de si. Não que eu julgue vir alguma vez a consegui-lo. Mas queria, pelo menos provar que não sou
absolutamente indigno. Queria realizar alguma coisa.
- Porque acha que isso é necessário? ... Lenina começou a frase, mas não a acabou. Havia uma nota de
irritação na sua voz. Quando nos inclinamos para diante, cada vez mais perto, os lábios entreabertos,
para nos vermos de repente e sem mais nem menos, enquanto um pateta imbecil se levanta, inclinados
para um lugar vazio, meu Ford, tem-se razão, mesmo com meio grama de soma circulando no sangue,
tem-se razão para estar seriamente contrariado.
- Em Malpaís - gaguejou o Selvagem em tom incoerente era preciso trazer a pele de um leão das
montanhas, quero dizer, quando se queria casar com alguém. Ou então um lobo.
- Mas não há leões na Inglaterra - objetou Lenina com voz quase cortante.
- Mesmo que os houvesse - acrescentou o Selvagem, com um ressentimento brusco e desdenhoso -,
seriam destruídos com gases tóxicos ou qualquer coisa do gênero lançada de helicópteros. Mas eu não
farei isso, Lenina! - Atirou o peito para a frente, animou-se a olhá-la e cruzou-se com o seu olhar de
incompreensão contrariada. - Farei tudo - continuou com crescente incoerência -, tudo o que me
ordenar. Existem jogos dolorosos, como sabe. Mas a dificuldade realça-lhes as delícias. Eis o que
sinto. Quero dizer que, se me ordenasse, varreria o chão.

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