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terça-feira, 29 de outubro de 2013

Admirável Mundo Novo - Aldous Huxley [parte 32]

- Mas nós aqui temos aspiradores - observou Lenina, assombrada -, e isso não é necessário.
Não, já se vê que não é necessário. Mas há algumas coisas vis que se suportam nobremente. Eu quisera
suportar qualquer coisa nobremente. Não me compreende?
- Mas desde que existem aspiradores ...
- Não é essa a questão.
- E Epsilões semiabertos para os fazer funcionar - continuou ela. - Assim, na verdade, porquê? -
- Porquê? Mas por si, por si! Apenas para provar que eu...
- E que relação poderá existir entre os aspiradores e os leões?
- Para lhe provar quanto...
- Ou entre os leões e o fato de estar contente por me ver? Ela exasperava-se cada vez mais.
- Como eu a amo, Lenina - conseguiu ele dizer, quase em desespero de causa.
Como um reflexo da sua fremente alegria interior, o sangue coloriu as faces de Lenina.
É verdade, John? Mas não tinha a intenção de o dizer - gritou o Selvagem, unindo as mãos como num
paroxismo de dor. - Não antes de ... Ouça, Lenina: em Malpaís as pessoas casam-se.
- As pessoas ... quê? - A irritação recomeçou a invadir-lhe a voz. De que estaria ele a falar agora?
- Para sempre. As pessoas prometem viver juntas para sempre.
- Que ideia horrorosa! - Lenina estava sinceramente escandalizada.
- Durando mais que o brilho exterior da beleza, com uma alma que se renova mais depressa que o
sangue se destrói'.

- O quê?
- Também está assim em Shakespeare: «"Mas se quebras o nó virginal antes de todas as cerimônias
sagradas se terem cumprido na plenitude dos seus santos ritos ..."
- Pelo amor de Ford, John, diga coisas sensatas! Não compreendo uma única palavra do que está a
dizer. Primeiro, fala de aspiradores, depois de nós. Você enlouquece-me! - Ela levantou-se de um salto
e, como se receasse que ele pudesse fugir-lhe fisicamente como o fazia em espírito, segurou-lhe o
pulso. Responda a esta pergunta: você gosta realmente de mim, ou não gosta?
Estabeleceu-se um breve silêncio. Depois, em voz muito baixa, ele confessou.
- Amo-a mais que tudo no mundo.
- Mas, então, porque o não dizia? - exclamou ela. Estava exasperada a tal ponto que lhe enterrou as
unhas no pulso. - Em vez de dizer tolices sem fim a propósito de nós, de aspiradores e de leões e de me
fazer sofrer semanas e semanas! - Ela soltou-lhe a mão, repelindo-a com cólera. - Se eu não gostasse
tanto de si, ter-lhe-ia uma raiva louca! E subitamente passou-lhe o braço em volta do pescoço. Ele
sentiu os lábios de Lenina apertados brandamente contra os seus. Tão deliciosamente doces, tão
tépidos, tão elétricos, que inevitavelmente começou a pensar nos beijos das Três Semanas em
Helicóptero. - Uh! Uh! - A loura estereoscópica. - Aah! - O negro mais que real! Horror, horror, horror!
... Tentou desprender-se, mas Lenina apertou-o com mais força - Porque não o disse? - murmurou ela,
afastando o rosto para o contemplar. Tinha os olhos cheios de terna censura.
- O antro mais sombrio, o lugar mais propício - a voz da consciência declamava poeticamente -, tudo o
que o nosso demônio nos possa propor de pior, não fará nunca transformar a minha honra em vis
desejos. Nunca, nunca! - Tal foi a sua resolução.
- Grande tolo! - disse Lenina. - Eu desejava-o tão ardentemente! E, se também me queria, porque é que
não? ...
- Mas, Lenina... - começou ele a protestar. E, como ela afrouxasse imediatamente os braços e recuasse,
acreditou, por um instante, que ela agia de acordo com a muda indicação que lhe fizera. Quando,
porém, ela desafivelou o seu cinto de couro branco envernizado e o pendurou cuidadosamente nas
costas da cadeira, começou a suspeitar de que se tinha enganado.
- Lenina! - repetiu, apreensivo. Ela levou a mão ao pescoço e baixou-a com um longo gesto vertical: a
sua blusa branca à marinheiro abriu-se até à extremidade inferior. A suspeita condensou-se em
realidade sólida, demasiado sólida.
- Lenina! Ah! Que faz você? Zip, zip! A resposta dispensou palavras. Ela desembaraçou-se das calças
de boca de sino. A sua combinação-calça com fecho éclair era de um rosa pálido de concha. O T de
ouro do arquichantre pendia no seu peito.
"Porquê esses seios que, através das grades das janelas, perturbam os olhos dos homens ... " As
palavras cantantes, ribombantes, mágicas, faziam-na parecer duplamente perigosa, duplamente
tentadora. Doces, doces, mas quão penetrantes! Furando e brocando a razão, abrindo um túnel através
da sua resolução. "Quando o sangue está inflamado, os juramentos mais inflamados não são mais que
palha. Pratica mais a abstinência, senão ..."
Zip! O arredondado róseo abriu-se como uma maçã habilmente partida. Agitou os braços, levantando o
pé direito, depois o esquerdo: a combinação-calça de fecho éclair jazia no chão, sem vida, como se
tivesse sido esvaziada.
Ainda com as meias e os sapatos e a boina branca tombada para o lado, ela dirigiu-se para John
estendendo-lhe os braços.
Querido. Querido! Se ao menos tivesse dito isso há mais tempo! Mas, em vez de lhe dizer também «
Querida I » e de lhe estender, por sua vez, os braços, o Selvagem, aterrorizado, fugiu agitando as mãos
para ela como se tentasse afugentar um animal importuno e perigoso. Quatro passos para trás, e
esbarrou na parede.
- Meu querido - disse Lenina, pousando-lhe as mãos nos ombros e apertando-se contra ele. – Envolve-me
nos teus braços - pediu ela -, beija-me, aperta-me, acaricia-me muito, muito. - Ela possuía também
poesia para seu uso, conhecia palavras que cantavam, que enfeitiçavam e produziam um rufar de'
tambores. - Beija-me ... - Fechou os olhos, a sua voz transformou-se num murmúrio ensonado. – Beija-me
até ao paroxismo, aperta-me sem fraqueza, acaricia-me ...
O Selvagem agarrou-lhe rudemente os pulsos, arrancou dos ombros as mãos de Lenina e repeliu-a
brutalmente.
- Ai, estás a magoar-me, tu ... oh! - Ela calou-se de repente. Tomada de pânico, esqueceu a dor.
Abrindo os olhos, vira este rosto, não o rosto de john, mas o de um desconhecido, feroz, torcido,
contraído por um furor insensato, inexplicável. Apavorada, sussurrou: - Mas que aconteceu, John? - Ele
não respondeu, contentando-se em encará-la com um olhar demente. As mãos que seguravam os pulsos
de Lenina tremiam. John respirava com inspirações profundas e irregulares. Fracamente, a ponto de ser
um ruído apenas perceptível, mas assustador, ela ouviu-o de súbito ranger os dentes. - Que aconteceu?
-gritou ela quase num uivo.
E ele, como se tivesse sido acordado por este grito, agarrou-a pelos ombros e abanou-a: - Prostituta! -
berrou. -Prostituta! Impudente prostituta!'
- Oh! Não, não... - protestou ela com uma voz tornada ridiculamente grotesca pelos safanões que ele
lhe dava.
Prostituta! Suplico-te! Maldita meretriz! Com um centicu ... ubo... - começou ela.
O Selvagem repeliu-a com tanta violência que ela tropeçou e caiu.
- Vai-te - vociferou ele, de pé ao lado dela e dominando-a com um olhar ameaçador -, desaparece da
minha vista, ou então mato-te! - E cerrou os punhos.
Lenina ergueu o braço para defender o rosto.
- Não, peço-te, John...
- Despacha-te... Depressa! Com o braço sempre levantado e seguindo com olhar aterrorizado o menor
movimento de John, ela acocorou-se e, sempre com a cabeça tapada, fugiu para o quarto de banho.
O estrondo da prodigiosa palmada que acelerou a saída dela foi semelhante a um tiro de pistola.
- Ai! - Lenina saltou para a frente. Chegada em segurança ao quarto de banho, onde se fechou à chave,
teve então tempo de observar os ferimentos. De pé, de
costas para o espelho, torceu a cabeça para trás. Olhando por cima do ombro esquerdo, viu a marca de
uma mão aberta destacar-se, distinta e vermelha, na carne nacarada. Delicadamente esfregou a região
magoada.
Fora, no outro compartimento, o Selvagem media a passos o soalho, caminhava, caminhava, ouvindo o
acompanhamento dos tambores e a música das palavras mágicas. «A carriça e a pequena mosca
dourada entregam-se à concupiscência sob os meus olhos.»' As palavras rumorejavam-lhe nos ouvidos
até o enlouquecerem. «Nem a fuinha, nem o cavalo impuro se lançavam nela
com um apetite tão desordenado. Do busto para baixo são centauros, ainda que daí para cima sejam
mulheres. Para os deuses a parte de cima. Para baixo tudo pertence aos demônios; aí é o Inferno, as
trevas, o abismo de enxofre, que queima, que ferve, o fedor, a destruição; fi, fi, fi, puah, puah! Dá-me
uma onça de almíscar, bom boticário, para me purificar a imaginação.

- john! - atreveu-se a dizer uma vozinha insinuante, vinda da casa de banho. - John!
«Oh, flor tão gracilmente bela, tão deliciosamente odorífera, que inebrias os sentidos! Esse soberbo
velino, esse admirável livro, foi feito para que se lhe escrevesse por baixo meretriz!, ...» Mas o céu
tapa o nariz
Mas o perfume de Lenina ainda flutuava em volta dele, a sua roupa estava toda branca do pó que
tinha perfumado o corpo aveludado da jovem. «Impudente prostituta, impudente prostituta, impudente
prostituta!» O ritmo inexorável martelava indefinidamente. «Impudente...»
- John, posso ir buscar as minhas roupas? Ele juntou as calças de boca de sino, a blusa, a combinação-calça
de fecho éclair.
Abra! - ordenou, dando um pontapé na porta.
- Não, não. -A voz era medrosa e cheia de desconfiança.
- Então como quer que lhe dê a roupa?
- Atire-a pela bandeira da porta. Ele assim fez, recomeçando a caminhar pelo quarto, de um lado para o
outro, inquieto. «Impudente prostituta, impudente prostituta. O demônio da luxúria, com as suas ancas
arredondadas e o seu dedo em forma de batata...»
- John! Ele não quis responder. «Ancas arredondadas e dedo em forma de batata.»
- John!
- Que há? - perguntou brutalmente.
- Pode dar-me o meu cinto maltusiano? Lenina ficou sentada, escutando os passos no outro
compartimento e perguntando-se, enquanto ouvia, quanto tempo continuaria ele a medir assim o
soalho; se seria preciso esperar que ele saísse do aposento, ou se não seria mais prudente, depois de dar
à loucura de John um prazo razoável para se acalmar, abrir a porta da sala de banho e precipitar-se para
a rua de um salto.
Foi interrompida a meio destas lucubrações inquietas pelo toque da campainha do telefone que retiniu
na outra sala. As idas e vindas sobre o soalho cessaram abruptamente. Ouviu a voz do Selvagem: Alô?
sim.
Sim, se é que me não confundo a mim mesmo com um outro.
Sim, você não mo ouviu dizer? É o senhor Selvagem que está ao telefone.
Quem é que está doente? É claro que isso me interessa.
Mas é coisa séria? Ela está realmente mal? Vou imediatamente...
já não está no seu apartamento? Para onde a levaram?
Oh! Meu Deus! Dê-me o endereço!
Três, Park Lane. É assim? Três? Obrigado. Lenina ouviu o tilintar do telefone ao ser pousado, depois,
passos precipitados. Uma porta fechou-se com estrondo. Depois, o silêncio. Teria de facto saído?
Com infinitas precauções, entreabriu a porta um meio centímetro; arriscou uma espreitadela pela
frincha e animou-se ao ver o aposento vazio; abriu um pouco mais, passou a cabeça pela abertura;
finalmente entrou no aposento na ponta dos pés. Demorou-se alguns segundos, com o coração a pulsar
violentamente, à escuta; depois correu para a porta de entrada, abriu-a, esgueirou-se por ela, fechou-a e
fugiu. Só quando se viu no elevador, no qual se introduziu sofregamente, começou a sentir-se em
segurança.



CAPÍTULO DÉCIMO QUARTO
O Hospital para Moribundos de Park Lane era uma torre de sessenta andares de blocos cerâmicos cor
de primavera. Quando o Selvagem descia do seu taxícóptero, um comboio de carros fúnebres aéreos,
de cores alegres, levantou voo, zumbindo, do terraço, e deslizou sobre o parque, para oeste, com rumo
ao crematório de Slough. À porta do elevador, o chefe dos porteiros deu-lhe as informações necessárias
e ele desceu à sala 81 (uma sala para senilidade galopante, explicou o porteiro), no décimo sétimo
andar. Era um vasto aposento, que o sol e a pintura amarela tornavam claro, contendo vinte leitos,
todos ocupados. Linda morria acompanhada - acompanhada e com todo o conforto moderno.
O ar era constantemente vivificado por alegres melodias sintéticas. junto de cada leito, diante do
ocupante moribundo, havia um receptor de televisão. Deixava-se funcionar a televisão, como se fosse
uma torneira aberta, de manhã à noite. De quarto em quarto de hora, o perfume dominante na sala era
automaticamente mudado.
- Tentamos - explicou a enfermeira que recebera o Selvagem à porta - criar aqui uma atmosfera
completamente agradável, qualquer coisa de intermédio entre um hotel de primeira classe e um palácio
de cinema perceptível. Creio que compreende o que quero dizer.
- Onde está ela? - perguntou o Selvagem, sem dar a menor atenção às corteses explicações.
A enfermeira sentiu-se chocada.
- Como está apressado!
- Há alguma esperança? - perguntou ele.
- Você quer dizer se ela não morrerá? - Ele acenou afirmativamente com a cabeça. - Não, não duvido
de que não há esperança nenhuma. Quando mandam alguém para aqui, já não há... -
Impressionadíssima com a expressão angustiada do rosto pálido de John, calou-se de repente. « Que
terá ele?», perguntou
a si própria. Não estava habituada a manifestações deste gênero nos visitantes e, além disso, nunca
havia muitos visitantes; nem nenhuma razão para que houvesse muitos. - O senhor não se sente doente,
pois não?
Ele abanou a cabeça.
- É minha mãe - disse com voz que mal se percebia. A enfermeira lançou-lhe um olhar cheio de horror
e em seguida virou-se bruscamente. Do pescoço à raiz dos cabelos o seu rosto não era mais que um
rubor ardente.
- Leve-me junto dela - pediu o Selvagem, esforçando-se por falar em tom natural.
Sempre ruborizada, ela conduziu-o através da sala. Fisionomias ainda jovens e sem rugas (pois a
senilidade galopava tão depressa que não dava ao rosto o tempo de envelhecer, atacando apenas o
coração e o cérebro) voltaram-se à sua passagem. A sua marcha era seguida por olhos vagos, sem
curiosidade, de segunda infância. O Selvagem sentiu um frêmito ao encará-los.
Linda estava deitada no último leito da segunda fila, encostado à parede. Amparada por travesseiros,
olhava as meias-finais do Campeonato Sul-Americano de Tênis em Estrado Riemann, que se
desenrolavam em reprodução silenciosa e reduzida no écran do receptor de televisão junto do leito. As
pequenas silhuetas precipitavam-se aqui e além no quadrado de vidro iluminado, semelhantes a peixes
num aquário, habitantes silenciosos mas agitados de um outro mundo.
Linda contemplava o espetáculo sorrindo vagamente e sem compreender. No seu rosto pálido e
inchado havia uma expressão de felicidade imbecil. A cada instante as suas pálpebras fechavam-se e
durante alguns segundos ela parecia dormitar. Depois, com um pequeno sobressalto, acordava,
acordava para os jogos de aquário dos campeonatos de tênis, para a audição por supervoz wurlitzeriana
de Beija-me, Aperta-me, Acaricia-me sem Descanso, para a rajada tépida de verbena soprada pela
bandeira acima da sua cabeça, despertava para todas estas coisas, ou, antes, para um sonho, onde estas
coisas, transformadas e embelezadas pelo soma que tinha no sangue, eram os elementos maravilhosos,
e sorria novamente, com um sorriso desfeito, descorado, de contentamento infantil.
- E agora tenho de ir - disse a enfermeira. - Tenho o meu grupo de crianças que estão para chegar. E há
também o n.o 3. - Estendeu o dedo para o outro lado da sala. - Está quase a ir-se de um momento para o
outro, agora ... Mas instale-se à sua vontade. - E afastou-se a passos largos.
O Selvagem sentou-se ao lado do leito.
- Linda - murmurou, tomando-lhe a mão. Ouvindo o seu nome, ela voltou-se. Os seus olhos vagos
tiveram um lampejo de consciência. Ela apertou-lhe a mão, sorriu-lhe, moveu os lábios. Mas
subitamente a sua cabeça tombou para trás. Tinha adormecido. Ele ficou ali a contemplá-la, procurando
entre a carne fanada, procurando e reencontrando aquele rosto jovem e vivaz que se inclinara sobre a
sua infância em Malpaís, evocando (fechou os olhos) a sua voz, os seus gestos, todos os
acontecimentos da sua vida comum. «No meu estreptococo alado, voai para Banbury-T...» Como eram
estranhas as suas canções! E estes versos infantis, como eram magicamente estranhos e misteriosos!
A, B, C, vitamina D.
O óleo está no fígado, o bacalhau nadou.
Sentiu as lágrimas que o queimavam romper através das pálpebras, enquanto se lembrava das palavras
e da voz de Linda repetindo-as. E depois as lições de leitura: o gato está no prato, o assado está na
panela. E as Instruções Elementares para Uso dos Trabalhadores Beta-Menos do Depósito de
Embriões. E os longos serões ao canto da lareira, ou, no Verão, no terraço da casinha, enquanto ela lhe
contava aquelas histórias de Além, algo que ficava fora da Reserva: o Além maravilhoso, maravilhoso,
de que se lembrava ainda como de um paraíso de bondade e de beleza, total e intacto, não poluído pelo
contacto com a realidade desta Londres real, destes homens e destas mulheres efetivamente
civilizados.

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