Total de visualizações de página

terça-feira, 29 de outubro de 2013

Admirável Mundo Novo - Aldous Huxley [parte 30]

Mas para Lenina a borboleta não morreu completamente. Mesmo depois de as luzes se terem acendido,
enquanto caminhavam lentamente com a multidão que se dirigia aos elevadores, o fantasma palpitava
ainda nos seus lábios traçando ainda na sua pele finos arabescos frementes de angústia e de prazer. Ela
tinha as faces coradas, os olhos como que molhados pelo orvalho e ofegava profundamente. Agarrou o
braço do Selvagem e apertou-o, inerte, contra o corpo. Ele baixou os olhos um segundo para ela,
pálido, dolorido, cheio de desejo e envergonhado desse desejo. Ele não era digno, não era... Os seus
olhares cruzaram-se um momento. Que tesouros prometiam os de Lenina! Quanto a temperamento,
eram dignos do resgate de uma rainha! Ele apressou-se a desviar os olhos e soltou o braço que ela
mantinha prisioneiro. Sentia obscuramente o receio de que ela deixasse de ser qualquer coisa de que
pudesse julgar-se indigno.
- Acho que não deveríamos ver semelhantes coisas - disse ele, apressando-se em transferir de Lenina
para as circunstâncias ambientais a censura devida a qualquer imperfeição passada ou possível no
futuro.
- Semelhantes a quê, John?
- A este horrível filme.
- Horrível? - A admiração de Lenina era sincera. - Pois eu achei-o encantador.
- Era vil - retrucou ele, indignado -, era ignóbil. Ela sacudiu a cabeça.
- Não sei que quer dizer... - Porque era ele tão estranho? Porque se empenhava em estragar as coisas?
No taxicóptero, ele mal a olhou. Enredado por votos poderosos que nunca tinha pronunciado,
obedecendo a leis que tinham caído em desuso há muito tempo, ficou sentado, desviando
silenciosamente os olhos. Às vezes, como se um dedo tocasse numa corda tensa, prestes a romper-se,
todo o seu corpo era abalado por um brusco sobressalto nervoso.

O taxicóptero desceu no terraço da casa de apartamentos de Lenina. «Enfim!», pensou ela, triunfante,
quando desceu do aparelho. Enfim, se bem que há pouco tivesse sido esquisito. De pé, sob uma
lâmpada, ela examinou-se vivamente no seu espelho de mão. Enfim ... Sim, estava com o nariz um
tudo-nada luzidio, é verdade. E sacudiu o pó que se soltava da pluma. Enquanto ele pagava o táxi teria
exatamente o tempo necessário. Esfregou a região luzidia, pensando: «Ele é formidavelmente belo. E
não tem nenhum motivo para ser tão tímido como Bernard. E todavia ... Qualquer outro homem já o
teria feito há muito tempo. Mas agora, enfim!» Aquele fragmento de rosto refletido no pequeno
espelho redondo dirigiu-lhe um rápido sorriso.
- Boa noite - disse uma voz estrangulada atrás dela. Lenina voltou-se vivamente. Ele estava junto da
porta aberta do táxi, os olhos fixos, arregalados. Tinha-os mantido manifestamente arregalados durante
todo o tempo que ela levara a empoar o nariz, esperando - mas o quê? -, ou então hesitando,
procurando decidir-se e pensando em qualquer coisa extraordinária que ela era incapaz de imaginar. -
Boa noite, Lenina - repetiu ele, esboçando um arremedo frustrado de sorriso.
Mas, john ... Pensei que você ia ... Quer dizer, você não vai.
Ele fechou a porta e inclinou-se para dizer qualquer coisa ao motorista. O aparelho saltou para o ar.
Olhando para baixo, através da janela do pavimento, o Selvagem viu o rosto de Lenina levantado para
o aparelho, pálido
sob a luz azulada das lâmpadas. Ela tinha a boca aberta e chamava. A sua silhueta, em perspectiva
reduzida, distanciava-se velozmente dele; o quadrado do terraço, afastando-se cada vez mais, parecia
diminuir nas trevas.
Cinco minutos depois tinha entrado no quarto. Tirou de um esconderijo o seu volume roído pelos ratos
e folheou com religioso cuidado as páginas manchadas e amarrotadas. Recomeçou a ler o Othello.
Othello, lembrou-se, assemelhava-se ao herói de Três Semanas de Helicóptero: era um negro.
Limpando os olhos, Lenina atravessou o terraço até ao elevador. Enquanto descia para o vigésimo
sétimo andar, tirou o seu frasco de soma. Um grama, decidiu, não chegaria; o seu desgosto pesava mais
de um grama. Mas se tomasse dois gramas corria o risco de não acordar a horas na manhã seguinte,
Adotou uma solução intermédia e, sacudindo o frasco, fez cair na palma da mão esquerda, ajeitada em
forma de taça, três comprimidos de meio grama.

CAPÍTULO DÉCIMO SEGUNDO

Bernard viu-se forçado a gritar através da porta fechada à chave. O Selvagem não queria abrir.
- Mas está lá toda a gente à sua espera.
- Que esperem - foi a resposta que chegou através da porta, numa voz surda.
- Mas você sabe muito bem, John (como é difícil conseguir um tom persuasivo quando se grita a plenos
pulmões), que os convidei expressamente para o virem ver.
- Você devia ter começado por me perguntar se eu queria vê-los.
- Mas das outras vezes, John, você veio sempre.
- Aí está justamente a razão porque não quero ir mais.
- Vamos, ainda que seja só para me ser agradável - bradou Bernard com voz tonitruante. - Você não
quer então vir, nem sequer para me ser agradável?
- Não.
- Isso é a sério?
É. Mas então que fazer? - gemeu Bernard, desesperado. Vá para o Inferno! - vociferou de dentro a voz
exasperada.
Mas esta noite está cá o arquichantre de Canterbury. - Bernard estava quase a chorar.
- Ai yaa takwa. - Só em zuñi o Selvagem conseguia exprimir com clareza e conveniência o que pensava
a respeito do arquichantre. - Hàni! - acrescentou depois de ter refletido. E em seguida, com sarcástica
ferocidade: - Sons éso tse-na. - E cuspiu no chão, como o teria feito Popé.
Por fim, Bernard foi obrigado a retirar-se de cabeça baixa, diminuído, para o seu apartamento, para
comunicar à assembleia impaciente que o Selvagem não aparecia nessa noite. A notícia foi acolhida
com indignação. Os homens ficaram furiosos por terem sido logrados a ponto de serem arrastados a
tratar delicadamente essa criatura insignificante, de reputação duvidosa e de opiniões heréticas. Quanto
mais elevada era a posição hierárquica, mais profundo era o ressentimento.
- Fazer-me uma partida destas, a mim - repetia continuamente o arquichantre. - A mim!
Quanto às mulheres, estavam indignadas por verificarem que tinham sido possuídas por abuso de
confiança, possuídas por um homenzinho miserável em cuja proveta tinham deitado álcool por engano,
por uma criatura que tinha o físico de um Gama-Menos. Era um ultraje, que elas proclamaram em tom
cada vez mais alto. A diretora de Eton foi particularmente violenta.
Só Lenina não disse nada. Pálida, com os olhos azuis velados por uma melancolia que lhe não era
habitual, sentia-se separada de quantos a rodeavam por uma emoção de que não participava. Fora
àquela reunião inteiramente dominada por uma estranha sensação de triunfo inquieto. «Dentro de
alguns minutos - pensara ao entrar na sala - vê-lo-ei, falar-lhe-ei, dir-lhe-ei (porque viera com a sua
resolução tomada) que gosto dele, mais que de qualquer outro homem que até aqui conheci. E então
talvez ele diga ... » Que diria ele? O sangue tinha-lhe afluído ao rosto. «Porque se teria mostrado tão
estranho naquela noite, depois do cinema perceptível? Era muito esquisito ... E, contudo, estou
absolutamente certa de que, na verdade, lhe agrado alguma coisa. Estou certa ... »
Foi nesse momento que Bernard fez a sua comunicação: o Selvagem não assistiria à reunião.
Lenina experimentou repentinamente todas as sensações que se sentem normalmente no início de um
tratamento de sucedâneo de paixão violenta, uma sensação de vácuo atroz, uma apreensão arquejante,
náuseas. Parecia-lhe que o coração deixava de pulsar.


«Talvez seja por não gostar de mim», pensou. E imediatamente essa hipótese se transformou numa
certeza indiscutível: john tinha recusado aparecer por não gostar dela. Não gostava dela ...
- É, na verdade, um pouco excessivo - dizia a directora de Eton ao director dos Crematórios e da
Recuperação de Fósforo. - Quando penso que eu já ...
- Sim - ouviu-se a voz de Fanny Crowne -, é inteiramente verdadeira essa história do álcool. Sei de
alguém que conhecia a pessoa que trabalhava nessa altura no Depósito dos Embriões. Essa pessoa
contou à minha amiga, e essa minha amiga disse-me ...
É verdadeiramente lamentável - disse Henry Foster, exprimindo a sua simpatia pelo arquichantre. -
Talvez lhe interesse saber que o nosso ex-Director esteve quase a transferi-lo para a Islândia.
Trespassado por cada uma das palavras pronunciadas, o balão bem inchado que era a confiança de
Bernard em si próprio esvaziava-se por mil orifícios. Pálido, puxado para todos os lados, humilhado e
agitado, ia e vinha por entre os seus convidados, gaguejando desculpas incoerentes, garantindo-lhes
que na próxima vez o Selvagem estaria certamente presente, rogando-lhes que se sentassem e
comessem uma sanduíche de carotina, uma fatia de empada de vitamina A, uma taça de
pseudochampanhe. Os convidados comiam polidamente, mas procediam como se ele não estivesse.
Bebiam e, ou mostravam-se francamente grosseiros com ele, ou falavam dele uns com os outros, em
voz alta e de maneira agressiva, como se ele não estivesse ali.
- E agora, meus amigos - pronunciou o arquichantre de Canterbury, com aquela magnífica voz sonora
com que dirigia as operações durante as cerimónias do Dia de Ford -, agora, meus amigos, creio que
chegou talvez o momento ...
Levantou-se, pousou o copo, sacudiu do seu colete de viscose púrpura as migalhas da abundante
refeição e dirigiu-se para a porta.
Bernard precipitou-se para o deter.
- Será realmente necessário, senhor Arquichantre? ... Ainda é muito cedo. Esperava que o senhor...
Sim, o que não tinha ele esperado quando Lenina lhe confidenciara que o arquichantre aceitaria um
convite se lho fizesse! «No fundo, ele é muito amável, sabe?» E ela mostrara a Bernard o pequeno
fecho éclair de ouro, em forma de T, que o arquichantre lhe dera como recordação do fim-de-semana
que ela tinha passado no Instituto Coral Diocesano. «Estarão presentes o arquichantre de Canterbury e
o Sr. Selvagem.» Bernard proclamara o seu triunfo em todos os convites. Mas o Selvagem
tinha escolhido, entre todas, esta tarde para se fechar no quarto, para gritar "Hàni!" e também (que
felicidade Bernard não compreender o zuñi) "Sons éso tse-na!», e o que deveria ter sido a coroa de
glória de toda a carreira de Bernard tornou-se num breve instante na sua maior humilhação.
- Tanto que eu esperava... - balbuciou ele, erguendo uns olhos suplicantes e desvairados para o alto
dignitário.
- Meu jovem amigo - principiou o arquichantre num tom de vigorosa e solene severidade, provocando
um silêncio geral -, deixe-me dar-lhe um conselho. - Sacudiu o dedo na direcção de Bernard. - Antes
que seja muito tarde. Um útil e precioso conselho. - O tom da sua voz tornou-se sepulcral. - Corrija-se,
meu jovem amigo, corrija-se. - Fez-lhe o sinal de T e virou-se: - Lenina, minha pequena - chamou
noutro tom -, venha comigo.
Obediente, mas sem sorrir, completamente indiferente à honra que lhe era concedida, sem alegria,
Lenina abandonou a sala atrás dele. Os outros convidados retiraram-se depois de um respeitoso
intervalo. O último bateu com a porta, Bernard ficou só.
Esmagado, completamente vazio, deixou-se cair numa cadeira e, tapando a cara com as mãos, começou
a chorar. Ao cabo de alguns minutos mudou de parecer e tomou quatro comprimidos de soma.
Lá em cima, no quarto, o Selvagem lia Romeu e julieta. Lenina e o arquichantre desceram do terraço
do Instituto Coral Diocesano.
- Vamos depressa, minha jovem amiga, quero dizer: Lenina - gritou cheio de impaciência o
arquichantre, que esperava junto da grade do elevador.
Lenina, que se atrasara um momento para contemplar a Lua, baixou os olhos e deu-se pressa em
atravessar o terraço para se reunir a ele.
Uma Nova Teoria da Biologia, tal era o título da memória que Mustafá Mond acabava de ler. Ficou
sentado algum tempo, os sobrolhos franzidos meditativamente. Depois pegou na caneta e escreveu
transversalmente na página do título: «A maneira como o autor trata matematicamente a concepção de
fim é nova e altamente engenhosa, mas herética, e, no que respeita à presente ordem social,
potencialmente perigosa e subversiva. Não publicar.» Sublinhou estas palavras. «O autor será sujeito a
uma vigilância especial. Poderá tornar-se necessária a sua transferência para a Estação de Biologia
Marítima de Santa Helena.» «É pena», pensou, enquanto assinava. Era um trabalho magistral. Mas
desde que se começam a admitir explicações de ordem finalística, hum, não se sabe até onde isso pode
levar. É este género de ideias que poderia facilmente descondicionar os espíritos menos solidamente
fixados entre as classes superiores, que poderia fazê-los perder a fé na felicidade como supremo bem e
fazê-los acreditar, ao invés disso, que o fim está em qualquer parte para além, em qualquer parte fora
da esfera humana presente, que o objectivo da vida não é a manutenção do bem-estar, mas sim um
certo reforço, um certo refinamento da consciencia, algum aumento do saber... « Coisa que -pensou o
Administrador - pode muito bem ser verdade, mas é inadmissível nas circunstâncias actuais.» Pegou de
novo na caneta e sob as palavras Não publicar riscou um segundo traço, mais grosso, mais negro que o
primeiro. Depois suspirou: «Como isto seria divertido se não fosse obrigado a pensar na felicidade!»
Com os olhos fechados, a fisionomia radiante e feliz, john declamava docemente no vazio:
Oh, ela ensina as luzes a arderem com esplendor!
Ela parece pender contra a face da noite
Como uma jóia preciosa na orelha de um etíope;
Beleza preciosa de mais para ser usada, tão querida para o mundo ... (*)
O T de ouro brilhava no pescoço de Lenina. Resolutamente, o arquichantre agarrou-o com os dedos e
de súbito puxou, puxou.
(*) Romeu e julieta, 1, S.
- Parece-me - disse Lenina, quebrando um longo silêncio - que o melhor que tenho a fazer é tomar dois
gramas de soma.
A essa hora Bernard dormia e sorria no paraíso pessoal dos seus sonhos. Sorria, sorria. Mas
inexoravelmente, de trinta em trinta segundos, o ponteiro dos minutos do relógio eléctrico pendurado
acima da sua cabeça avançava com um pequeno ruído quase imperceptível: «Clique, clique, clique,
clique ... » E amanheceu. Bernard voltou a encontrar-se no meio das misérias do espaço e do tempo.
Foi num estado de desencorajamento total que tomou o táxi, dirigindo-se ao seu trabalho no Centro de
Condicionamento. Tinha-se evaporado a embriaguez do sucesso; voltara a ter, em jejum, o seu eu
antigo. E, em contraste com o balão temporário das últimas poucas semanas, o eu antigo parecia ser,
como nunca o fora, mais pesado que a atmosfera ambiente.
A esse esvaziado Bernard testemunhou o Selvagem uma simpatia inesperada.
- Você voltou agora a parecer-se com o que era no tempo da sua estada em Malpaís - disse ele depois
de Bernard lhe ter contado a lamentável história. - Lembra-se de quando começámos a conversar? Em
frente da casinha? Você está parecido com a criatura que era então.
- Porque sou outra vez infeliz, é essa a razão.
- Pois bem! Eu preferiria ser infeliz a conhecer essa espécie de felicidade falsa e mentirosa que você
gozava aqui!
- Você tem cada uma! - comentou Bernard com amargura. - E então sendo você a causa de tudo! Você
recusou-se a vir à minha reunião e pô-los todos contra mim!
Ele sabia que o que estava a dizer era absurdamente injusto; reconheceu no seu foro íntimo, e por fim
declarou-o em palavras, a verdade do que lhe dizia agora o Selvagem acerca do valor nulo desses
amigos que podiam transformar-se em inimigos perseguidores por causa de uma tão pequena afronta.
Mas, ainda que o soubesse e o reconhecesse, ainda que o apoio e a simpatia do seu amigo fossem agora
o seu único conforto, Bernard nem por isso deixou de alimentar perversamente, coexistindo com a sua
afeição inteiramente sincera, um secreto ressentimento contra o Selvagem, pondo-se a meditar numa
campanha de vingançazinhas contra ele. Manter um ressentimento contra o arquichantre era coisa inútil
e não tinha nenhuma possibilidade de se vingar do chefe dos enfrascadores ou do predestinador
adjunto. Como vítima, o Selvagem possuía, para Bernard, esta superioridade enorme sobre os outros:
era acessível. Uma das principais funções de um amigo consiste em suportar (sob uma forma mais
suave e mais simbólica) os castigos que desejaríamos, mas não podemos, infligir aos nossos inimigos.

Nenhum comentário: