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quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Admirável Mundo Novo - Aldous Huxley [parte 21]

- Não deixes para amanhã o prazer que puderes gozar hoje - disse ela gravemente.
- Duzentas repetições, duas vezes por semana, dos catorze aos dezesseis anos e meio - disse Bernard
como único comentário. E continuou a divagar, a falar das suas ideias insensatas e perniciosas. - Quero
saber o que é a paixão - ouviu-o ela dizer. - Quero sentir qualquer coisa com violência.
- Quando o indivíduo sente, a comunidade ressente-se, declarou Lenina.
- E então! Por que não há de ela ressentir-se?
- Bernard! Mas Bernard não se desconcertou absolutamente nada.
- Adultos intelectualmente durante as horas de trabalho, continuou. - Bebês no que diz respeito ao
sentimento e ao desejo.
- Nosso Ford gostava de bebês. Sem reparar na interrupção, Bernard prosseguiu:
- A ideia veio-me subitamente, há dias: talvez fosse possível ser-se sempre adulto.
- Não percebo. Lenina falara num tom firme.
- já sei. E eis a razão porque nos fomos deitar juntos ontem, como garotos, em vez de sermos adultos e
esperarmos.
- Mas foi divertido - insistiu Lenina. - Não foi?
- Oh! O mais divertido possível - respondeu, mas com voz desolada, com uma expressão tão
profundamente miserável que Lenina sentiu evaporar-se subitamente todo o seu triunfo.
Talvez ele a
tivesse achado demasiado gorda, afinal.
- Eu já te tinha dito - contentou-se em responder Fanny quando Lenina lhe foi fazer confidências. - É o
álcool que lhe puseram no pseudo-sangue.
- Não importa - insistiu Lenina -, ele interessa-me verdadeiramente. Tem umas mãos tão bonitas! E
aquela maneira de encolher os ombros, como me atrai! - Suspirou. - Mas gostaria que fosse menos
esquisito.
II
Parando um instante diante da porta do gabinete do Diretor, Bernard respirou profundamente e
endireitou-se, preparando-se para enfrentar a animosidade e a reprovação que estava certo de encontrar
lá dentro. Bateu e entrou.
- Uma autorização que lhe peço para visar, Senhor Diretor - disse, no tom mais indiferente que lhe foi
possível, colocando o papel sobre a secretária.
O diretor lançou-lhe um olhar amargo. Mas o papel traz'ia o timbre do gabinete do Administrador, e a
assinatura de Mustafá Mond, nítida e negra, desenhava-se no fim da página. Tudo estava perfeitamente
em regra. O Diretor não tinha nada objetar. Escreveu a lápis a sua rubrica, duas pequeninas letras
humildemente deitadas ao lado da assinatura de Mustafá Mond, e ia devolver o papel sem uma palavra
de comentário ou uma despedida benevolente, quando o seu olhar foi atraído por qualquer coisa escrita
no texto da autorização.
- Para a Reserva do Novo México? - perguntou.
O tom da sua voz e o rosto que ergueu para Bernard exprimiam uma espécie de agitada expectativa.
Surpreendido, Bernard respondeu afirmativamente com a cabeça. Houve um silêncio.
O Diretor encostou-se para trás na cadeira, de sobrolho franzido.
- Há quanto tempo foi isto? - disse, falando mais para si que para Bernard. - Vinte anos, calculo. Talvez
vinte e cinco. Devia ter a sua idade... - suspirou, meneando a cabeça.
Bernard sentiu-se extremamente embaraçado. Um homem tão respeitável, tão respeitador das
convenções, tão escrupulosamente correto como era o Diretor, cometendo uma tão grosseira falta de
etiqueta! Sentia-se com vontade de tapar a cara e sair da sala a correr. Não que, pessoalmente,
encontrasse qualquer coisa de intrinsecamente reprovável no fato de se falar de um passado distante;
isso era um dos tais preconceitos hipnopédicos de que - imaginava - se tinha completamente
desembaraçado. O que o intimidava era saber que o Diretor desaprovava isso e que apesar de o
desaprovar, fora levado a fazer essa coisa proibida. Por que força interior? Bernard ouvIu-o com uma
ávida curiosidade, que se notava através do seu embaraço.
- Tive a mesma ideia que o senhor - dizia o Diretor. Queria ver os selvagens. Obtive uma autorização
para o Novo México e nas minhas férias de Verão fui lá com a rapariga que tinha na altura. Era uma
Beta-Menos e parece-me (fechou os olhos), parece-me que tinha cabelos loiros. Em todo o caso, era
pneumática, notavelmente pneumática. Disso lembro-Me bem. Fomos, portanto, lá, observamos os
selvagens, passeamos a cavalo e tudo o mais. E depois -era, parece-me, o último dia de férias -, depois
... bem, ela perdeu-se. Tínhamos escalado a cavalo uma daquelas idiotas montanhas, estava um calor
pesado e, depois do almoço, adormecemos. OU, pelo menos, eu adormeci. Ela deve ter ido dar uma
volta. Fosse como fosse, quando acordei não a vi. E então desencadeou-se a mais espantosa tempestade
que tenho visto. Chovia a potes, trovejava, coriscavam relâmpagos; os cavalos rebentaram as rédeas e
fugiram; caí quando tentava apanhá-los e feri-me num joelho a ponto de não poder andar senão com
grande dificuldade. Apesar disso, procurei-a por todos os lados, gritei, rebusquei nos arredores. Mas
não havia o menor vestígio dela. Então pensei que talvez tivesse voltado sozinha para a pousada.
Assim, arrastei-me até ao vale, pelo caminho por onde tínhamos vindo. O joelho doía-me atrozmente e
tinha perdido o meu soma. Levei várias horas. Só cheguei à pousada depois da meia-noite. Ela não
estava lá ... ela não estava lá - repetiu o Diretor. Houve um silêncio. - Bem - continuou por fim -, no
dia seguinte fizeram-se buscas. Mas não conseguimos encontrá-la. Devia ter caído em qualquer ravina
ou sido devorada por um leão da montanha. Só Ford o sabe. Fosse como fosse, foi horrível! Na altura
fiquei desnorteado. Mais do que deveria ter ficado. Porque, afinal, foi um acidente como poderia ter
acontecido a qualquer outra pessoa, e, bem entendido, o corpo social persiste, ainda que as células
componentes possam mudar. Mas esse consolo proporcionado durante o sono não foi muito eficaz. -
Meneou a cabeça. - Às vezes ainda sonho com isso - continuou o Diretor com uma voz mais fraca ,
sonho que sou acordado pelo barulho do trovão e que me apercebo de que ela não está já ali, sonho que
me ponho à sua procura por entre as árvores, que procuro por toda a parte ...
Mergulhou no silêncio da recordação.
- Deve ter sido um choque terrível para si - disse Bernard, quase com inveja.
Ao som da sua voz, o Diretor tomou bruscamente consciência do lugar onde se encontrava; lançou um
olhar a Bernard e, desviando os olhos, corou, mal-humorado. Olhou-o de novo, subitamente suspeitoso,
e, irritado, disse do alto da sua dignidade-
- Não pense que eu mantinha com essa rapariga relações inconfessáveis. Era tudo perfeitamente são e
normal. - Estende a Bernard a autorização. - Não sei por que razão o macei com esta história banal. -
Cheio de ressentimento contra si próprio i por ter desvendado um segredo desonroso, descarregou a
cólera sobre Bernard. O seu olhar era agora francamente rancoroso. E desejo aproveitar esta ocasião,
senhor Marx - continuou - para lhe dizer que não estou de forma alguma satisfeito com as informações
que recebo acerca da sua conduta fora do trabalho, Vai dizer-me, sem dúvida, que não tenho nada com
isso. Mas fato é que tenho, e muito. Devo preocupar-me com a boa reputação do centro. É necessário
que os meus colaboradores estejam acima de toda a suspeita, particularmente aqueles das castas
superiores. Os Alfas estão condicionados de tal forma que não são obrigatoriamente infantis na sua
conduta emotiva. Mas essa é mais uma razão para que eles façam todos os esforços necessários para se
adaptarem à normalidade. É seu dever serem infantis, mesmo contra as suas tendências. Portanto,
senhor Marx, lealmente o aviso... - A voz do Diretor vibrava de uma indignação que se tinha tornado
inteiramente virtuosa e impessoal, que era a expressão da desaprovação da própria sociedade. - Se sei
novamente que faltou às regras normais de conduta no que diz respeito ao decoro infantil, pedirei a sua
transferência para um subcentro, de preferência na Islândia. Boa tarde.
Virando-se na cadeira giratória, pegou uma caneta e começou a escrever.
«Isto o ensinará», pensou. Mas enganava-se, pois Bernard saiu do gabinete de cabeça erguida, cheio de
triunfante orgulho, batendo com a porta atrás de si e pensando que fazia frente, sozinho, à ordem das
coisas, exaltado pela embriagadora consciência do seu valor e da sua importância pessoal. A própria
ideia da perseguição deixava-o impávido, agia mais como um tônico, que como um motivo de
depressão. Sentia-se suficientemente forte para fazer frente às calamidades e delas triunfar,
suficientemente forte para enfrentar a própria Islândia. E essa confiança era tanto mais vigorosa quanto,
na verdade, ele não acreditava nem por um momento em ter de enfrentar fosse o que fosse. Em suma:
não se transferem assim as pessoas por motivos de tal ordem. A Islândia era uma simples ameaça. Uma
ameaça muito estimulante e vivificante. Caminhando ao longo do corredor, entusiasmou-se ao ponto de
assobiar.

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