Total de visualizações de página

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Admirável Mundo Novo - Aldous Huxley [parte 20]

Completamente inofensivo, talvez. Mas igualmente muito inquietante. Em primeiro lugar, essa mania
de fazer as coisas na intimidade. O que equivalia, na prática, a nada fazer. Que se pode fazer na
intimidade? (à parte, bem entendido, ir para a cama; mas não se pode fazer isso continuamente.) Sim,
que se pode fazer? Muito poucas coisas. Na primeira tarde que saíram juntos estava um tempo
excepcional. Lenina tinha proposto irem nadar ao Torquay Country Club e depois irem jantar a Oxford
Union. Mas Bernard pensava que haveria, com certeza, gente a mais. Bem, então se fizessem um jogo
de golf eletromagnético em Saint Andrews? Mas ele tinha recusado de novo.
Bernard considerava o golf electromagnético uma perda de tempo.
- Mas então, para que serve o tempo? - perguntou Lenina admirada.
Aparentemente, para dar passeios na Região dos Lagos, pois era isso que ele propunha. Aterrar no
cume do Skiddaw e fazer uma caminhada de duas horas entre as urzes.
- Sozinho consigo, Lenina.
- Mas, Bernard, nós ficaremos sós toda a noite. Bernard corou e desviou o olhar.
- Eu queria dizer ... sós para conversar - murmurou.
- Para conversar? Mas a respeito de quê? - Andar e conversar parecia-lhe uma estranha maneira de
passar uma tarde.

Por fim ela persuadiu-o, embora contra vontade, a voarem até Amesterdão para verem os quartos de
final do Campeonato Feminino de Luta (pesos-pesados). - Entre uma multidão- resmungou-, como de
costume. Conservou-se obstinadamente amuado toda a tarde; recusou-se a falar aos amigos de Lenina
(que encontraram às dúzias no bar onde se bebiam gelados de soma nos intervalos das lutas), e, apesar
do seu miserável estado de espírito, recusou-se terminantemente a tomar a dose de meio grama de
sundae de framboesas que ela insistia que tomasse.
- Prefiro ser eu mesmo - disse -, eu mesmo e desagradável. E não qualquer outro, por mais alegre que
seja.
- Um grama é suficiente para o tornar alegre - disse Lenina, servindo-lhe uma brilhante pérola da
sabedoria ensinada durante o sono.
Bernard repeliu impacientemente o copo que ela lhe oferecia.
- Não se zangue, vamos - disse -, e lembre-se: « Com um centicubo, curados dez sentimentos.»
- Oh, por amor de Ford, cale-se! - gritou ele. Lenina encolheu os ombros.
- Um grama vale mais que o "bolas" que se chama - disse Com dignidade, concluindo. E bebeu o
sundae.
À volta, na travessia da Mancha, Bernard teimou em parar a hélice propulsora e ficar suspenso no
helicóptero a menos de trinta metros das vagas. O tempo piorara, soprava um vento áspero, o céu
estava nublado.
- Olhe - disse ele.
- Mas é detestável - disse Lenina, afastando-se com horror da janela. Estava apavorada com o vácuo
envolvente da noite, com as vagas negras e espumantes que se erguiam sob eles, com o disco pálido da
Lua, assustado e atormentado entre as nuvens que voavam. - Liguemos a T. S. F. Depressa! - Estendeu
a mão para o botão do quadrante no painel de instrumentos de bordo, ligando-a ao acaso.
O céu é puro, a luz velada - cantavam em trémulo dezasseis vozes de falsete - e o tempo é doçura e
beleza ...
Depois um estalido e o silêncio. Bernard tinha desligado a corrente.
- Quero contemplar o mar em paz - disse. - Não se pode ver nada quando se tem continuamente esse
insuportável ruído nos ouvidos.
Mas é delicioso. E, além disso, eu não quero olhar.
Mas quero eu - insistiu Bernard. - Isto dá-me a sensação... - Hesitou, procurando as palavras para se
exprimir. -
sensação de ser mais eu, se é que percebe o que quero dizer. De agir por mim mesmo e não apenas
como uma parte de outra coisa. De não ser simplesmente uma célula do corpo social. Isto não lhe dá
essa sensação, Lenina?
Mas Lenina chorava.
- É horrível, é horrível - repetia constantemente. - E como pode falar dessa maneira do seu desejo de
não fazer parte do corpo social? Não podemos prescindir de ninguém. Os próprios Epsilões ...
Sim, já sei - disse Bernard, trocista. - Os próprios Epsilões são úteis! Eu também. E bem gostaria de
não servir para nada!
Lenina ficou escandalizada com tal blasfêmia.
- Bernard! - protestou, com voz espantada e aflita.
Como pode dizer essas coisas?
- Como posso? - respondeu ele, meditativamente, noutro tom. - Não, o verdadeiro problema é outro:
porque não posso eu ou melhor - pois, afinal, sei perfeitamente porque não posso -, que sentiria se
pudesse, se fosse livre, se não estivesse escravizado pelo meu condicionamento.
- Então, Bernard, não diga coisas tão assustadoras!
- Não sente o desejo de ser livre, Lenina?
- Não percebo o que quer dizer. Eu sou livre. Livre para gozar à vontade, para gozar o mais possível.
«Agora todos são felizes!»
Ele riu-se.
- Sim. "Agora todos são felizes?" Começamos a impingir isso às crianças de cinco anos. Mas não sente
o desejo de ser livre de outra forma, Lenina? De uma maneira pessoal, Por exemplo, e não à maneira
de todos.
- Não percebo o que quer dizer - repetiu ela. E depois, voltando-se para ele: - Oh! Vamos embora -
suplicou. - Como detesto estar aqui!
Não gosta de estar ao pé de mim? Certamente, Bernard! É este maldito lugar. Parece-me que estaremos
mais... mais juntos aqui, sem
mais nada além do mar e da Lua. Mais juntos que entre a multidão ou mesmo em minha casa. Não
compreende isto?
- Não compreendo nada - respondeu ela com decisão, determinada a conservar intacta a sua
incompreensão. - Nada. E ainda percebo menos - continuou, noutro tom - por que razão não toma você
soma quando lhe aparecem essas tenebrosas ideias. Em vez de se sentir miserável, sentir-se-ia cheio de
alegria. Sim, tão cheio de alegria! ... - repetiu ela. E sorriu, apesar de toda a intrigada inquietação que
lhe brilhava nos olhos, com um ar que procurava ser provocante e voluptuoso.
Ele contemplou-a em silêncio, a fisionomia muito grave, recusando adaptar-se às suas intenções, e
fixou nela um olhar intenso. Ao fim de alguns momentos, os olhos de Lenina não puderam sustentar
mais aquele olhar. Soltou uma risadinha nervosa, esforçou-se por encontrar qualquer coisa para dizer,
mas não o conseguiu. O silêncio prolongou-se.
Quando Bernard, enfim, falou, foi com um fio de voz cheio de lassidão.
- Está bem, seja - disse. - Vamos embora. Carregando vigorosamente no acelerador, fez o aparelho dar
um pulo para cima. A trezentos metros, pôs a hélice em movimento. Voaram em silêncio durante um
minuto ou dois. Depois, de repente, Bernard começou a rir. De uma maneira um pouco esquisita,
pensou Lenina, mas, enfim, sempre era rir.
- Está melhor? - arriscou-se ela a perguntar. Como única resposta, ele tirou uma das mãos da alavanca
de comando e, passando-lhe um braço à volta do corpo, começou a acariciar-lhe os seios.
«Ford seja louvado- pensou ela- já está como deve ser.» Meia hora mais tarde estavam de volta a casa
de Bernard. Ele engoliu de uma vez quatro comprimidos de soma, pôs a funcionar a T. S. F. e a
televisão e começou a despir-se.
Então? - perguntou-lhe Lenina, num tom de significativa brejeirice, quando, na tarde seguinte, se
encontraram no terraço. - Não acha que ontem nos divertimos bastante?
Bernard concordou com um aceno de cabeça. Subiram para o helicóptero. Um pequeno solavanco, e ei-los
no ar.
- Todos me dizem que sou extremamente pneumática -
disse Lenina com ar pensativo, dando palmadas nas coxas.
- Extremamente. Mas havia uma expressão dolorosa nos olhos de Bernard. «Como carne», pensou.
Ela ergueu os olhos com uma certa inquietação.
- Mas, diga lá, não me acha gorda em demasia? Ele abanou a cabeça negativamente. «Tal como uma
quantidade igual de carne.»
- Acha-me bem? - Novo sinal afirmativo de cabeça. - Sob todos os pontos de vista?
- Perfeita - disse ele em voz alta. E interiormente: « É assim que ela se considera a si própria. Pouco lhe
importa ser apenas carne. »
Lenina sorriu triunfalmente. Mas a sua satisfação era prematura.
- Apesar de tudo - continuou, após uma pequena pausa, teria gostado de que aquilo tivesse terminado
de outra maneira.
- De outra maneira? Então havia outras maneiras de terminar?
- Teria desejado que aquilo não acabasse na cama - esclareceu Bernard.
Lenina ficou espantada.
- Pelo menos, logo no primeiro dia.
- Mas então, como? ... Ele começou a dizer-lhe uma porção de coisas incompreensivelmente absurdas e
perigosas. Lenina fez o melhor que pôde para as não ouvir, espiritualmente falando. Mas a cada
instante um fragmento de frase conseguia, à força de insistência, tornar-se perceptível: « ... para
experimentar o efeito produzido pela repressão das minhas impulsões», ouviu-o dizer. Essas palavras
pareceram soltar uma mola no seu espírito.

Nenhum comentário: