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quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Admirável Mundo Novo - Aldous Huxley [parte 33]

Um ruído súbito de vozes agudas forçou-o a abrir os olhos e, depois de ter apressadamente enxugado as
lágrimas, a voltar-se. O que parecia ser um fluxo contínuo de gêmeos machos, idênticos, de oito anos,
engolfava-se no aposento. Gêmeo após gêmeo, gêmeo após gêmeo, entravam, autêntico pesadelo. O
rosto, este rosto que se repetia, porque só havia um rosto para
todos, arregalava-se, nariz achatado, só narinas, e olhos pálidos e redondos como vidros de óculos. O
uniforme era de caqui. Tinham todos a boca aberta e o lábio caído. Entraram chilreando e palrando. Ao
cabo de um momento parecia que a sala fervia. Amontoavam-se em cachos entre os leitos, subiam para
cima deles, arrastavam-se por baixo, olhavam para os receptores de televisão, faziam caretas aos
doentes.
Ao verem Linda, surpreenderam-se e deram mostras de uma certa inquietação. Um grupo ficou junto
do leito, encarando-a com a curiosidade medrosa e estúpida dos animais que defrontam
inesperadamente o desconhecido.
- Oh! Olhem, olhem! - Falavam em voz baixa e espantada.
- Mas que é que ela tem? Porque será ela assim tão gorda?
Nunca tinham visto um rosto parecido com o de Linda, nunca tinham visto um rosto que não fosse
jovem, que não tivesse a pele lisa, nem corpo que não fosse fino e aprumado. Todas aquelas
sexagenárias moribundas tinham o ar de raparigas quase crianças. Com quarenta e quatro anos, Linda
parecia ser, por contraste, um monstro de senilidade flácida e desengonçada.
- Não é verdade que ela é horrível) - Tais eram os comentários sussurrados. - Olhem para os dentes
dela!
De repente, de sob a cama, um gêmeo de rosto achatado apareceu entre a cadeira de John e a parede e
pôs-se a contemplar o rosto adormecido de Linda.
- Diga-me então... - começou ele. Mas a frase terminou prematuramente num guincho.
O Selvagem tinha-o agarrado pela gola do casaco e com uma bofetada sonora afugentara-o aos berros.
Os gritos chamaram a atenção da enfermeira-chefe, que se precipitou em seu socorro.
- Que foi que lhe fez? - perguntou, enfurecida. - Não admito que bata nas crianças!
- Está bem! Mas então afaste-as desta cama. - A voz do Selvagem tremia de indignação. - E, além
disso, que fazem aqui estes fedelhos repugnantes? É vergonhoso!
- Vergonhoso? Mas que quer dizer? Condicionamo-los para a morte. E deixe-me dizer-lhe - continuou
num tom de advertência feroz - que, se o apanho outra vez a perturbar o seu condicionamento, chamo
os carregadores e mando-o pôr na rua. 

O Selvagem pôs-se de pé e deu dois passos para ela. Os seus movimentos e a expressão do seu rosto
eram tão ameaçadores que a enfermeira recuou aterrorizada. Com um esforço violento, ele conteve-se
e, sem uma palavra, virou-se e sentou-se ao lado da cama.
Tranquilizada, mas com uma dignidade que era bastante vazia e incerta, a enfermeira insistiu:
- já o avisei. Agora já sabe. Apesar de tudo, afastou os gêmeos demasiado curiosos e obrigou-os a
entrar na partida de zipfurão que uma das suas colegas organizara na outra extremidade da sala.
- Pode ir agora tomar a sua chávena de solução de cafeína, minha cara - disse para a outra enfermeira.
O exercício da autoridade restabeleceu-lhe a confiança em si própria e fez-lhe bem. - Vamos, meus
filhos - gritou.
Linda tinha-se agitado, inquieta. Abriu os olhos um instante, lançou um vago olhar à sua volta e
adormeceu de novo. Sentado a seu lado, o Selvagem fez esforços violentos para recuperar o estado de
espírito de há pouco. «A, B, C, vitamina D», repetia para si próprio, como se estas palavras fossem um
sortilégio que chamaria à vida o passado morto. Mas o sortilégio não produziu efeito. Obstinadamente,
as recordações maravilhosas recusaram-se a aparecer; houve apenas uma ressurreição detestável de
ciúmes, de fealdade e de misérias. Popé ensopado no sangue que lhe corria do ombro cortado e Linda
horrendamente adormecida, enquanto as moscas zumbiam em volta do mescal derramado no chão perto
da cama. E os garotos gritando aqueles nomes todos ao passarem... Ah! Não, não! Fechou os olhos,
sacudiu a cabeça para afastar vigorosamente estas recordações. «A, B, C, vitamina D...» Tentou pensar
nos momentos em que estava sentado nos joelhos de Linda, quando ela o abraçava e cantava,
recomeçando continuamente, embalando-o, embalando-o para o adormecer: «A, B, C, vitamina D,
vitamina D, vitamina D...»
A supervoz wurlitzeriana elevara-se num crescendo soluçante, e subitamente a verbena foi substituída
no aparelho de circulação de perfume por um pachuli intenso. Linda agitou-se,
acordou, olhou espantada por uns momentos os semifinalistas, Depois, levantando o rosto, aspirou uma
ou duas vezes o ar novamente perfumado, e então sorriu, com um sorriso de êxtase infantil.
- Popé! - murmurou, fechando os olhos. - Oh! Como gosto disto, como gosto ...
Suspirou e deixou-se cair sobre os travesseiros.
- Que tens, Linda? - O Selvagem empregou um tom implorativo. - Não me reconheces?
Ele esforçara-se tanto, fizera tudo o que lhe era possível, porque não lhe permitia ela esquecer?
Apertou-lhe a mão quase violentamente, como se a quisesse obrigar a abandonar o sonho de prazeres
ignóbeis, as recordações vis e detestáveis para penetrar no presente, na realidade: o presente assustado,
a espantosa realidade, sublimes mas pesados de significação, desesperadamente importantes
precisamente por causa da iminência daquilo que os tornava tão aterradores.
- Não me reconheces, Linda? Como resposta, sentiu uma leve pressão de mão. Vieram-lhe as lágrimas
aos olhos. Inclinou-se para ela e beijou-a.
Ela moveu os lábios: "Popé!", murmurou de novo. E ele teve a sensação de que lhe atiravam à cara um
balde de imundícies.
A cólera ferveu subitamente nele. Contrariada pela segunda vez, a paixão da sua dor tinha encontrado
outra saída, transformando-se em paixão de cólera que atingiu o paroxismo.
- Mas eu sou o John! - gritou. - Sou o John! Na sua dor furiosa, agarrou-a decididamente pelos ombros',
e sacudiu-a.
Os olhos de Linda abriram-se com um bater de pálpebras, ela viu-o e reconheceu-o. «John!» Mas
colocou o rosto real, as mãos reais e violentas num mundo imaginário, entre os correspondentes
interiores e pessoais do pachuli e da supervoz wurlitzeriana, entre as recordações transfiguradas e as
sensações estranhamente transpostas que constituíam o universo do seu sonho. Ela reconhecia-o como
sendo John, seu filho, mas representava-o como um intruso neste Malpaís paradisíaco onde passava a
sua fuga de soma com Popé. Ele estava zangado porque ela amava Popé, abanava-a porque Popé estava
ali, na sua cama, como se houvesse nisso algum mal, como se todas as pessoas civilizadas não agissem
da mesma maneira. «Cada um pertence a...» A voz de Linda esvaiu-se subitamente,'até não ser mais
que um crocitar ofegante, que mal se percebia; abriu a boca e fez um esforço desesperado para encher
os pulmões de ar. Mas era como se já não soubesse respirar. Tentou chamar, mas não se ouviu nenhum
som; só o terror dos olhos arregalados revelava a intensidade do seu sofrimento. Levou as mãos à
garganta, procurou agarrar convulsivamente o ar, o ar que já não podia respirar, o ar que, para ela, tinha
deixado de existir.
O Selvagem estava de pé, debruçado sobre ela.
- Que é que sentes, Linda? Que sentes tu? A sua voz implorava; dir-se-ia que lhe suplicava que o
sossegasse.
O olhar que ela lhe dirigiu estava carregado de um terror indizível, de terror e, pareceu-lhe, de censura.

Ela tentou erguer-se na cama, mas tombou sobre os travesseiros. Tinha o rosto horrorosamente
contorcido, os lábios azuis.
O Selvagem virou-se e correu para a outra extremidade da sala.
- Depressa! - gritou. - Depressa! De pé no meio de uma dança de roda de gêmeos brincando ao
zipfurão, a enfermeira- chefe voltou-se. O primeiro instante de surpresa deu quase instantaneamente
lugar à desaprovação.
- Não grite! Pense nas crianças - disse ela, franzindo os sobrolhos. - Você arrisca-se a descondicioná-las
... Mas que está a fazer? - Ele rompera a roda. Preste atenção!
Uma das crianças berrava.
- Depressa, depressa! - Agarrou a enfermeira pela manga e arrastou-a atrás dele. - Depressa! Aconteceu
qualquer coisa! Matei-a!
Quando chegaram à extremidade da sala, Linda estava morta. O Selvagem ficou um momento de pé,
imobilizado no silêncio, depois caiu de joelhos ao lado da cama e, cobrindo o rosto com as mãos,
soluçou desvairadamente.
A enfermeira estava sem saber que fazer, olhando ora a forma ajoelhada perto da cama (que
escandalosa exibição!), ora (pobres crianças!) os gêmeos que tinham interrompido a sua partida de
zipfurão e olhavam, estarrecidos, os olhos e as narinas
arregaladas, na outra extremidade da sala, a cena escandalosa que se desenrolava junto do leito n.º 20.
Deveria falar-lhe? Procurar conduzi-lo ao sentido das conveniências? Que prejuízo fatal podia causar
àqueles pobres inocentes! Destruir assim todo o seu bom condicionamento para a morte com esta
repugnante explosão de gritos, como se a morte fosse qualquer coisa de terrível, como se houvesse
pessoa que tivesse semelhante importância! Isto podia dar-lhes as ideias mais desastrosas acerca do
assunto, perturbá-los e fazê-los reagir de uma maneira@' totalmente errada, totalmente anti-social.
Ela dirigiu-se a ele e tocou-lhe no ombro.
Não será capaz de se conduzir convenientemente? - disse em voz baixa, zangada.
Mas, virando a cabeça, viu que uma meia dúzia de gêmeos estava já de pé e atravessava a sala. A roda
desagregava-se. Mais um instante e ... Não, o risco era muito de considerar; o' grupo inteiro arriscava-se
a ficar retardado seis ou sete meses no seu condicionamento. Avançou a correr para aqueles cuja
guarda lhe fora confiada e que estavam ameaçados.
- Vamos, quem quer um bolo de chocolate? - perguntou' com voz forte e alegre.
- Eu! - berrou em coro todo o grupo Bokanovsky. A cama n.º 20 estava completamente esquecida.
«Oh! Deus, Deus, Deus!...», continuava a repetir para si próprio o Selvagem. Entre o caos de dor e
de remorso que lhe' enchia o espírito, era a única palavra que articulava. «Deus!», murmurou mais
alto. «Deus...»
- Que é que ele está a dizer? - perguntou uma voz muito próxima, nítida e penetrante, através do
chilrear da supervoz wurlitzeriana.
O Selvagem sobressaltou-se violentamente e, destapando a cara, olhou em volta. Cinco gémeos
vestidos de caqui, cada um com um bocado de um grande bolo na mão direita, o rosto idêntico
diversamente lambuzado de chocolate líquido, mantinham-se em linha, arregalando para ele os olhos
redondos como vidros de óculos.
Cruzaram os olhares e começaram a rir simultaneamente. Um apontou com o bolo.
- Ela está morta? - perguntou.
O Selvagem encarou-os um momento em silêncio. Depois, ainda em silêncio, levantou-se.
Silenciosamente, dirigiu-se com lentidão para a porta.
- Ela está morta? - repetiu o gêmeo curioso que caminhava a seu lado.
O Selvagem baixou o olhar sobre ele e, sempre sem dizer uma palavra, repeliu-o. O gêmeo tombou por
terra e começou imediatamente a berrar. O Selvagem nem sequer se voltou.

CAPÍTULO DÉCIMO QUINTO

O pessoal doméstico do Hospital para Moribundos de Park Lane compunha-se de cento e sessenta e
dois Deltas, divididos em dois grupos Bokanovsky, compreendendo, respectivamente, oitenta e quatro
gêmeas ruivas e setenta e oito gêmeos dolicocéfalos de cabelos pretos. Às seis horas, terminado o seu
dia de trabalho, os dois grupos reuniam-se no vestíbulo do hospital e recebiam das mãos do
subecónomo interino a ração de soma.
Saindo do elevador, o Selvagem irrompeu pelo meio deles. Mas tinha o espírito distante, com a morte,
com a sua dor, com o seu remorso. Maquinalmente, sem ter consciência daquilo que fazia, começou a
abrir, aos empurrões, caminho através da multidão.
- Quem é você para estar a empurrar dessa maneira? Onde pensa que vai?
Num tom agudo e baixo, saídas de uma multidão de gargantas diferentes, só duas vozes pipilaram ou
rosnaram. Multiplicadas até ao infinito, como numa sucessão de espelhos, dois rostos, um em lua cheia
manchada de sardas e cercada por uma auréola alaranjada, o outro em forma de máscara de pássaro,
fina e adunca, hirsuta, com barba de dois dias, voltaram-se para ele com raiva. As suas palavras e
cotoveladas vigorosas nas costas quebraram-lhe a concha de inconsciência. Ele acordou de novo para a
realidade exterior, olhou em volta de si, reconheceu o que viu com uma horrível e repugnante sensação
de queda no vácuo, de delírio incessantemente renovado dos seus dias e das suas noites, do pesadelo
deste enxame de identidades que nada permitia distinguir. Gêmeos, gêmeos ... Como larvas, tinham
vindo, em bando, macular o mistério da morte de Linda. Larvas ainda, mas maiores, inteiramente
adultas, rastejavam agora sobre a sua dor e sobre o seu arrependimento. Deteve-se, e com os olhos
fixos e horrorizados lançou um olhar circular sobre a multidão vestida de caqui. No meio e mais alto
que ela, a sua cabeça sobressaía, dominando-a. «Como há aqui seres encantadores!» As palavras
cantantes vergastaram-no com o seu sarcasmo. «Como a humanidade é bela! "Oh, admirável mundo
novo ..."
- Distribuição de soma - gritou uma voz forte. - Em ordem fazem favor. Vocês, aí, andem um pouco
mais depressa.
Abrira-se uma porta e tinham trazido uma mesa e uma cadeira para o vestíbulo. A voz era a de um
jovem Alfa jovial, que entrara trazendo uma pequena caixa preta de metal. Um murmúrio de satisfação
elevou-se entre os gêmeos fartos de esperar. Esqueceram completamente o Selvagem. A sua atenção
concentrava-se agora na caixa preta, que o jovem colocara em cima da mesa e a que tentava abrir a
fechadura. Levantou a tampa.
- U-uh! - gritaram simultaneamente os cento e sessenta e dois, como se estivessem a admirar um fogo
de artifício.
O rapaz tirou da caixa um punhado de minúsculas caixas de pílulas.
- Agora- disse em tom peremptório -avancem, façam favor. Um a um, e nada de empurrões.
Um a um e sem atropelos, os gémeos adiantaram-se. Primeiro dois homens, depois uma mulher, logo
depois um outro homem, a seguir três mulheres, depois ...
O Selvagem estava ali , contemplando a cena. "Oh, admirável mundo novo, oh, admirável mundo novo
... " No seu espírito as palavras cantantes pareceram mudar de tom. Elas tinham-no escarnecido através
da sua miséria e dos seus remorsos, escarnecido com aquele horroroso acento de zombaria cínica!
Rindo como os demónios, elas tinham insistido sobre a sua imundície vil, a fealdade nauseabunda deste
pesadelo. Agora e repentinamente, elas trombeteavam um apelo às armas. "Oh, admirável mundo
novo!" Miranda proclamava a possibilidade do esplendor, a possibilidade de transformar até esse
pesadelo em qualquer coisa de belo e nobre. "Oh, admirável mundo novo!" Era um desafio, uma
ordem.
- Não empurrem, vejam lá! - vociferou o subecónomo interino, furioso. Fechou com estrondo a tampa
da caixa. - Suspendo a distribuição se vocês não se portam convenientemente!
Os Deltas murmuraram, empurraram-se levemente uns aos outros e calaram-se. A ameaça fora eficaz.
Privarem-nos de soma - que coisa horrível!
- Agora está bem- disse o jovem, voltando a abrir a caixa. Linda fora uma escrava, Linda estava morta;
outros, pelo menos, viveriam livres, e uma beleza nova brilharia sobre o mundo. Era uma reparação,
um dever. E subitamente surgiu ao Selvagem, com uma claridade luminosa, o que tinha a fazer. Foi
como se abrissem uma janela ou corressem uma cortina.
- Vamos adiante - disse o subecónomo. Uma outra mulher de caqui adiantou-se.
Parem! - gritou o Selvagem, com voz forte e retumbante. - Parem!
Abriu caminho até à mesa; os Deltas encararam-no, assombrados.
- Ford! - exclamou o subecónomo interino, em voz mais baixa que um sopro. - É o Selvagem. - Sentiuse
atemorizado.

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