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segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Admirável Mundo Novo - Aldous Huxley [parte 26]

Um dia em que entrou em casa depois de ter brincado, a porta do quarto estava aberta e viu-os deitados
na cama, adormecidos, Linda muito branca e Popé quase negro, ao lado dela, um braço sob os seus
ombros, a outra mão bronzeada repousando sobre o seu peito e uma trança dos compridos cabelos do
homem atravessada na garganta de Linda, como uma serpente negra que a tentasse estrangular. A
cabeça de Popé pendia para o chão, onde estava uma chávena ao lado da cama. Linda ressonava.
Pareceu-lhe que o coração tinha desaparecido, deixando um buraco no seu lugar. Estava vazio. Sentia
uma sensação de vácuo, de frio, um pouco de náusea, vertigens. Encostou-se à parede para se aguentar
nas pernas. Traidor, devasso, sem remorsos ... Semelhantes aos tambores, semelhantes aos homens
cantando o encantamento do perigo, semelhantes às fórmulas mágicas, as palavras repetiam-se e
voltavam a repetir-se no seu espírito.
Depois da sensação de frio, sentiu subitamente um grande calor. Sentia o rosto em fogo com o afluxo
do sangue, o quarto girava e escurecia diante dos seus olhos. Rangeu os dentes: «Hei-de matá-lo, hei de
matá-lo, hei-de matá-lo», repetia sem cessar. E bruscamente surgiram-lhe outras palavras ainda:
Quando estiver ébrio e adormecido, ou encolerizado Ou nos prazeres incestuosos do leito ...
As fórmulas mágicas estavam a seu favor, a magia explicava e dava ordens. Saiu e voltou para o
primeiro compartimento. « Quando estiver ébrio ou adormecido ... adormecido ... » A faca de cortar a
carne estava no chão, perto da lareira. Apanhou-a e voltou para a porta na ponta dos pés. Atravessou o
quarto a correr e golpeou - Ah! O sangue! -, golpeou de novo, enquanto Popé se libertava com um
estremeção do amplexo do sono.

Golpeou ainda outra vez, mas sentiu o pulso aprisionado, dominado e - oh! oh! - torcido. Não podia
mexer-se, tinha caído numa ratoeira. E eis que os olhinhos pretos de Popé, muito próximos,
mergulhavam nos seus. Virou-se. Viu dois golpes no ombro esquerdo de Popé. - Oh! Vejam o sangue!
- gritou Linda. - Vejam o sangue! - Ela nunca pudera suportar a vista do sangue. Popé levantou a outra
mão, para lhe bater, pensou ele. Encolheu-se para receber o golpe. Mas a mão contentou-se em segurar-lhe
o queixo e voltar-lhe a cara, de modo a obrigá-lo a cruzar novamente o olhar com o seu. Isso durou
muito tempo, horas e horas. E de súbito não conseguiu dominar-se e começou a chorar. Popé rebentou
a rir. - Vai - disse ele, empregando as outras palavras, as índias - vai, meu bravo Ahaiyuta. - Saiu a
correr para o outro aposento a fim de esconder as lágrimas. 
- Ten's quinze anos - disse o velho Mitsima em língua índia. - Agora já te posso ensinar a trabalhar o
barro.
Acocorados na beira do rio, trabalhavam juntos.
- Primeiro - começou Mitsima, amassando com as mãos uma bola de barro úmida - fazemos uma
pequena lua. O ancião amassou a bola para lhe dar a forma de um disco, depois recurvou os bordos,
alua transformou-se numa tigela côncava.
Lenta e desajeitadamente, ele imitou os gestos delicados do velho.
Uma lua, uma tigela e agora uma serpente. - Mitsima amassou um outro pedaço de barro para fazer um
longo cilindro flexível, curvou-o em círculo e apoiou-o no bordo da tigela. - Mais outra serpente. Mais
outra. Mais outra. - Círculo sobre círculo, Mitsima decorou o bojo da tigela, a principio estreito, depois
largo, voltando a estreitar no gargalo. Mitsima amassou, bateu, alisou e raspou. E eis que o objecto se
ergueu por fim, jarro de água, vulgar em Malpaís quanto à forma, mas de um branco leitoso em vez de
ser negro, e ainda mole quando se lhe tocava. Paródia do de Mitsima, o seu erguia-se a par do outro.
Comparando os dois potes, viu-se obrigado a rir.
- Mas o próximo será melhor - disse ele. E começou a amassar um outro pedaço de barro.
Modelar, dar uma forma, sentir os dedos adquirirem mais destreza e poder, tudo lhe dava um prazer
extraordinário. A, B, C, Vitamina D», cantava para si mesmo enquanto trabalhava. «O óleo está no
fígado, o bacalhau nadou. E Mitsima também cantava uma canção que falava da caçada e morte de um
urso. Trabalharam assim todo o dia, e durante todo o dia sentiu uma felicidade intensa, absorvente.
- Este Inverno - prometeu o velho Mitsima - hei-de ensinar-te a fazer um arco.
Ele ficou muito tempo de pé diante da casa. Finalmente, as cerimônias que se realizavam no interior
acabaram e eles saíram. Kothlu vinha à frente; trazia o braço direito rígido e a mão bem fechada, como
para guardar qualquer jóia preciosa. Com a mão estendida da mesma forma, ela, Kiakimé, caminhava
atrás dele. Caminhavam em silêncio, e era em silêncio que vinham atrás deles os irmãos, as irmãs, os
primos e o grupo completo dos velhos.
Saíram do pueblo e atravessaram a mesa. Detiveram-se junto da falésia, de face para o Sol nascente.
Kothlu abriu a mão.
Tinha na palma da mão um punhado de farinha de trigo candial. Soprou-a, murmurou algumas
palavras, depois atirou-a, punhado de poeira branca, na direcção do Sol. Klakimé fez o mesmo. Então o
pai de Klakimé adiantou-se e, brandindo um bastão de orações guarnecido de plumas, fez uma longa
prece e atirou depois o bastão atrás da farinha. 
- Acabou-se - disse o velho Mitsima com voz forte. - Estão casados.
- Está bem - disse Linda enquanto eles se afastavam. - Só posso dizer que esta gente faz muitos
trejeitos para nada. Nos países civilizados, quando um rapaz deseja uma rapariga contenta-se com ...
Mas, onde vais tu, john?
Ele não deu nenhuma atenção aos seus apelos e fugiu a correr, para longe, para longe, não importava
para onde, para poder ficar só.
Tinha acabado. As palavras do velho Mitsima repetiram-se no seu espírito. Acabado, acabado ...
Silenciosamente e de muito longe, mas violentamente, desesperadamente, sem a menor esperança, ele
tinha amado Klakimé. E agora tinha acabado. Ele tinha dezasseis anos.
Quando fosse lua cheia, na Kiva dos Antílopes, iam ser ditos segredos, e segredos iam ser realizados e
sofridos. Eles iam descer para a kiva garotos. Quando saíssem, seriam homens. Todos os garotos
tinham medo e estavam ao mesmo tempo impacientes. E por fim chegou o dia. Deitou-se o Sol,
levantou-se a Lua. Ele foi com os outros. Os homens estavam de pé, sombrios, à entrada da kiva; a
escada mergulhava nas profundezas iluminadas por clarões vermelhos. já os garotos da frente tinham
começado a descer. De repente um dos homens avançou, agarrou-o por um braço e tirou-o da fila. Ele
escapou-se e voltou ao seu lugar no meio dos outros. Desta vez o homem castigou-o
e puxou-lhe os cabelos: "Não para ti, cabelo branco! Não para ti, filho de uma cadela" gritou outro
homem. Os garotos riram. «Vai-te!» E, como ele se demorasse perto do grupo, os homens gritaram-lhe
outra vez: "Vai-te." Um deles baixou-se para apanhar uma pedra, que lhe atirou. "Vai-te, vai-te, vai-te!"
Choveram pedras. Sangrando, ele meteu-se pela noite dentro. Da kiva iluminada por clarões
vermelhos vinha um rumor de cantos. O último dos garotos tinha chegado ao fundo da escada. Estava
sozinho.
Sozinho, fora do pueblo, na planície nua da mesa. O rochedo assemelhava-se a ossos esbranquiçados
pelo luar. Em baixo, no vale, os chacais uivavam à Lua. Ainda lhe doíam as contusões e os golpes
ainda sangravam. Mas não era a dor que o fazia soluçar; chorava por estar sozinho, por ter sido
escorraçado, sozinho, para o mundo sepulcral dos rochedos e do luar. Sentou-se à beira do precipício.
A Lua estava atrás dele; mergulhou os olhos na sombra negra da mesa, na sombra negra da morte.
Tinha só que dar um passo, um pequeno salto... Estendeu a mão direita ao luar. Do golpe do pulso
ainda corria sangue. Com intervalos de alguns segundos, caía uma gota, sombria, quase incolor na luz
morta. Uma gota, uma gota, uma gota... «Amanhã, e amanhã, e ainda amanhã ...

Tinha descoberto o Tempo, a Morte e Deus.
- Só, sempre só - dizia o rapaz. Estas palavras acordaram um eco doloroso no espírito de Bernard. Só,
só...
Eu também - disse ele num sopro de confidência. - Terrivelmente só.
- Você também? - John espantou-se. - Pensei que Além ... Quer dizer, Linda,dizia sempre que nunca
ninguém estava só.Bernard corou, contrafeito.
- É preciso esclarecer - continuou, gaguejando e desviando os Olhos - que devo ser um pouco diferente
da maioria das pessoas. Se acontece às pessoas serem diferentes desde a decantação ...
- Sim, é isso, precisamente. - O rapaz aprovou com um sinal de cabeça. - Ser diferente condena a uma
fatal solidão. E a um tratamento abominável. Acredita que eles me mantiveram absolutamente afastado
de tudo? Quando os outros garotos iam passar a noite nas montanhas - sabe quando é, quando se deve
ver em sonho qual é o nosso animal sagrado -, não consentiram que eu fosse com os outros. Não
quiseram confiar-me nenhum dos segredos. O que não impediu que eu o fizesse sozinho - acrescentou.
- Estive sem comer cinco dias, e depois fui uma noite sozinho para as montanhas, além. - E designou-as
com o dedo.
Bernard teve um sorriso protetor.
- E você conseguiu ver qualquer coisa em sonho? - perguntou.
O outro fez um sinal afirmativo com a cabeça.
- Mas não posso dizer-lho. - Calou-se uns momentos, para acrescentar em voz baixa: - Um dia fiz uma
coisa que os outros nunca tinham feito: fiquei de pé contra um rochedo, num meio-dia de Verão, com
os braços estendidos, como Jesus crucificado.
- Mas porquê?
- Porque queria saber o que representa ser crucificado. Suspenso ali, em pleno sol ...
- Mas porquê?
- Porquê? Meu Deus... - Hesitou. - Porque sentia que o devia fazer. Se Jesus o pôde suportar ... E se,
além disso, praticou qualquer mal ... Por outro lado, sentia-me infeliz. E essa era uma outra razão.
- Parece-me uma maneira esquisita de se curar a infelicidade - comentou Bernard. Mas, refletindo no
caso, pareceu-lhe que o ato talvez fosse bastante sensato. Mais sensato que tomar soma ...
- Desmaiei passado algum tempo - disse o rapaz. - Caí de bruços. Está a ver a cicatriz do golpe que fiz?
- E afastou da testa
a espessa madeixa de cabelos louros. A cicatriz era visível, pálida e enrugada, na têmpora direita.
Bernard analisou-a e depois, vivamente e com um pequeno arrepio, desviou os olhos. O seu
condicionamento tinha-o tornado mais apto a desmaiar que a encher-se de piedade com qualquer
bagatela. A simples referência a doenças ou a ferimentos era para ele não apenas uma coisa apavorante,
mas, sobretudo, repulsiva, e até repugnante. Como a imundície, a deformidade ou a velhice. Mudou
rapidamente o rumo da conversa. 
- Não lhe agradaria voltar connosco a Londres? - perguntou ele, iniciando o primeiro movimento de
uma campanha de que tinha secretamente começado a elaborar o plano estratégico desde o momento
em que, na casinha, compreendera quem devia ser o «pai» deste jovem selvagem. - Seria coisa que lhe
agradasse?
- Está a falar a sério?
- Sem dúvida, desde que consiga obter autorização, bem entendido.
- E Linda também?
- Acontece que... - Hesitou, enredado por uma dúvida. Aquela criatura repugnante! Não, era
impossível. A não ser que, a não ser que ... E subitamente ocorreu a Bernard que o facto de ela ser
assim tão repugnante constituía em si mesmo um trunfo formidável. - Mas sem dúvida - exclamou,
compensando as hesitações iniciais com um excesso de ruidosa cordialidade.
O rapaz suspirou profundamente.
- Pensar que aquilo com que sonhei toda a minha vida se realiza ... Lembra-se do que disse Miranda?
- Quem é Miranda? Mas o rapaz não ouviu, evidentemente, a pergunta.
- Oh, maravilha! - exclamava ele. Tinha os olhos brilhantes e o rosto purpureado de luz. - Quantos
seres encantadores há aqui! Como a humanidade é bela!O - O seu rubor acentuou-se subitamente;
pensava em Lenina, num anjo vestido de viscose verde-garrafa, resplandecente de mocidade e de
cremes de beleza, rechonchudo, sorrindo com meiguice. A sua voz estremeceu. - Oh, admirável mundo
novo... - recomeçou ele. Depois interrompeu-se subitamente; o sangue fugira-lhe do rosto e estava
branco como papel. - E você está casado com ela? - perguntou.
- Estou... quê?
- Casado. Você sabe como é, para sempre. Diz-se «para sempre» na linguagem índia. E não se pode
desfazer.
- Ford, não! - Bernard não pôde deixar de rir. John também se riu, mas por outro motivo. Riu com
franca alegria.
- Oh, admirável mundo novo! - voltou a repetir. - Oh, admirável mundo novo, onde existem tais
criaturas!...O Partamos imediatamente.
- Você tem às vezes uma maneira muito esquisita de falar - disse Bernard, contemplando, espantado e
perplexo, o rapaz.
- E, de qualquer maneira, não faria melhor esperar até o ter visto, a esse mundo novo?

CAPÍTULO NONO
Lenina sentia-se com direito, depois desse dia de coisas estranhas e de horrores, a um descanso
completo e absoluto. Logo que chegaram à pousada, tomou seis comprimidos de meio grama de soma e
estendeu-se na cama. Dez minutos depois tinha embarcado para uma eternidade lunar. E decorreriam
pelo menos dezoito horas antes que ela voltasse ao Tempo.
Bernard, entretanto, ficou deitado, pensativo e com os olhos abertos na escuridão. Foi só depois da
meia-noite que conseguiu adormecer. Muito depois da meia-noite. Mas a insônia não fora estéril;
estabelecera um plano.
Na manhã seguinte, às dez horas, pontualmente, o mestiço de uniforme verde desceu do seu
helicóptero. Bernard esperou-o entre as agaves.
- Miss Crowne tomou soma para ter algum descanso - explicou ele. - Não poderá, portanto, voltar antes
das cinc horas, o que nos deixa livres sete horas.
Ele teria tempo de voar até Santa Fé, fazer na cidade tudo que tinha a fazer e voltar para Malpaís muito
antes de ela acordar.
- Ela estará em segurança aqui, sozinha?
- Como se estivesse no helicóptero - garantiu-lhe o mestiço.
Subiram os dois para o aparelho e puseram-se imediatamente a caminho. Às dez horas e trinta e quatro
aterraram no terraço da Administração dos Correios de Santa Fé; às dez horas e trinta e sete Bernard
estava em comunicação com o Gabinete
do Administrador Mundial, em White Hall; às dez horas e trinta e nove falava com o quarto secretário
particular de Sua Forderia, às dez horas e quarenta e quatro repetia a sua história ao primeiro
secretário e às dez horas e quarenta e sete e meio foi a voz profunda e sonora do próprio Mustafá Mond
que ressoou nos seus ouvidos.
- Tomei a liberdade de pensar - gaguejou Bernard - que vossa Forderia talvez encontrasse neste
assunto um interesse científico bastante ...
- Sim, acho-lhe efetivamente um interesse científico suficiente - respondeu a voz profunda. - Traga
esses dois indivíduos consigo para Londres.
- Vossa Forderia não ignora que vou precisar de uma autorização especial ...
- As ordens necessárias - interrompeu Mustafá Mond - estão já a ser enviadas ao conservador da
Reserva. Deve dirigir-se imediatamente ao gabinete do conservador. Até à vista, senhor Marx.
Fez-se silêncio. Bernard pousou o auscultador e apressou-se a subir para o terraço.
- Gabinete do conservador - ordenou ao mestiço de verde. Às dez horas e cinquenta e quatro Bernard
apertava a mão do conservador.
- Encantado, senhor Marx, encantado. - A sua voz trovejante denotava deferência. - Acabamos de
receber ordens especiais ...
- já sei - interrompeu Bernard. - Estive há pouco a falar pelo telefone com Sua Forderia. - A nota de
indiferença que pusera na voz dava a entender que tinha o costume de conversar com Sua Forderia
todos os dias. Deixou-se cair numa cadeira. - Se me pudesse tratar das coisas necessárias o mais
depressa possível ... O mais depressa possível - repetiu para acentuar. Estava a gozar como um rei.
Às onze horas e três tinha no bolso todos os papéis necessários.

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