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segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Admirável Mundo Novo - Aldous Huxley [arte 27]

- Até à vista - disse em tom protetor ao conservador, que o acompanhara até à porta do ascensor. - Até
à vista.
Foi a pé até ao hotel, tomou banho, uma vibromassagem por vácuo, barbeou-se com o aparelho
electrolítico, ouviu pela T. S. F. as notícias da manhã, ofereceu-se uma meia hora de televisão,
saboreou longamente o almoço e, às duas e meia, iniciou, com o mestiço, o voo de regresso a Malpaís.
O rapaz estava diante da pousada.
- Bernard - gritou ele. - Bernard! - Mas ninguém lhe respondeu.
Silenciosamente, calçado com os sapatos de camurça, subiu a correr os degraus e tentou abrir a porta.
Estava fechada à chave.
Tinham partido! Partido! Era a coisa mais terrível que lhe acontecera até então. Ela pedira-lhe para os
vir ver, e eis que tinham partido. Sentou-se nos degraus da escada e chorou.
Uma meia hora depois teve a ideia de espreitar pela janela. A primeira coisa que viu foi uma maleta
verde, com as iniciais L. C. pintadas na tampa. A alegria explodiu nele como uma chama que se aviva.
Apanhou uma pedra. O vidro estilhaçado retiniu no chão. Instantes depois estava dentro do quarto.
Abriu a maleta verde, e repentinamente respirou o perfume de Lenina, enchendo os pulmões com o seu
ser essencial. Sentiu o coração bater desordenadamente, quase desmaiou. Depois, inclinando-se para a
preciosa caixa, apalpou-a, ergueu-a contra a luz, examinou-a. Os fechos éclair no calção de veludo de
algodão de viscose que Lenina trouxera de reserva com ela foram inicialmente para ele um enigma.
Depois, resolvido o enigma, um deslumbramento. Zip e ainda zip; zip, e outra vez zip. Estava
encantado. As chinelas verdes da rapariga eram a coisa mais bela que jamais vira. Desdobrou uma
combinação-calça com fecho éclair, corou e repô-la precipitadamente no lugar, mas beijou um lenço de
acetato, perfumado, e pôs uma mantilha no pescoço. Abrindo uma caixa, espalhou uma nuvem de pó
perfumado. E ficou com as mãos brancas, como se as tivesse mergulhado em farinha. Limpou-as no
peito, nos ombros, nos braços nus. Deliciosos perfumes! Fechou os olhos e esfregou a cara contra o
braço empoado. Contacto de uma pele macia contra a sua face, poeira de perfume almiscarado nas suas
narinas - a sua presença real! « Lenina - murmurou -, Lenina. »
Um ruído sobressaltou-o, obrigando-o a voltar-se com uma sensação de culpa. Enfiou rapidamente o
produto do seu roubo na maleta e fechou a tampa. Depois voltou a escutar, olhou. Nenhum sinal de
vida, nenhum rumor. E tinha, todavia, a certeza de ter ouvido qualquer coisa, qualquer coisa que se
assemelhava a um suspiro, qualquer coisa que se assemelhava a um estalar do soalho. Pôs-se na ponta
dos pés para ir até à porta, que abriu com precaução, para se encontrar diante de um largo patamar. No
lado oposto havia outra porta, entreaberta. Saiu, empurrou-a e espreitou. 

Numa cama baixa, a coberta atirada para os pés, vestida com um pijama inteiriço com fecho éclalr,
Lenina estava deitada, dormindo um sono profundo. Tão bela no meio dos anéis do seu cabelo, tão
infantilmente tocante com os seus pezinhos rosados e o seu rosto grave e adormecido, tão confiante no
abandono das suas mãos brancas e dos seus membros distendidos que as lágrimas lhe vieram aos olhos.
Com infinitas e absolutamente supérfluas precauções - porque teria sido necessário o estrondo de um
tiro de pistola, pelo menos, para que Lenina acordasse, antes do momento fixado, do sono produzido
pelo soma -, ele entrou no quarto e ajoelhou-se ao lado da cama. Contemplou-a, juntou as mãos em
prece e os seus lábios moveram-se.
- Os seus olhos - murmurou.
Os seus olhos, os seus cabelos, a sua face, o seu porte, a sua voz, Falas deles em teu discurso. Oh! A
sua mão, Em comparação com a qual toda a pureza é tinta Descrevendo o seu próprio opróbrio; ante o
seu suave contacto A penugem do cisne é áspera ...
Uma mosca zumbiu em volta dela. Espantou-a com a mão. As moscas. E a recordação ergueu-se no seu
espírito: Na maravilhosa alvura da mão da querida julieta, podem pousar E roubar uma bênção eterna
dos seus lábios,
Que no seu pudor virginal e puro Ainda se ruboriza, como se pensasse no pecado dos
próprios beijos.
Muito lentamente, com o gesto hesitante de alguém que se inclina para a frente para acariciar um
pássaro tímído e talvez levemente perigoso, estendeu a mão. Mão que ficou ali, trémula, a dois
centímetros daqueles dedos molemente caídos, quase a tocá-los. "Ousaria? Ousaria profanar com a
minha mão, a mais indigna que existia, esta ... " Não, não ousava. O pássaro era demasiadamente
perigoso. A mão recaiu para trás... Como ela era bela! A que ponto era bela!
Começou de repente a pensar que bastaria pegar no fecho éclair que lhe aparecia no pescoço e puxá-lo
com um único golpe, longo, vigoroso ... Fechou os olhos, agitou rapidamente a cabeça, como um cão
que sai da água e sacode as orelhas. Pensamento detestável! Teve vergonha de si próprio. Pudor
virgíneo e puro...
Ouviu um zumbido no ar. Ainda uma mosca tentando furtar graças imortais? Uma abelha? Olhou e não
viu nada. O zumbido foi-se tornando mais e mais forte, localizou-se justamente fora da janela
guarnecida de persianas. O helicóptero!
Tomado de pânico, levantou-se rapidamente e correu para o outro compartimento. Com um salto,
atravessou a janela aberta e, esgueirando-se ao longo do atalho entre as altas filas de agaVeS, chegou a
tempo de receber Bernard Marx quando este descia do helicóptero.

CAPÍTULO DÉCIMO
Os ponteiros de cada um dos quatro mil relógios eléctricos que havia nos quatro mil compartimentos
do Centro de Bloom bury marcavam duas horas e vinte e sete minutos. «Esta industriosa colmeia»,
como gostava de a designar o Director, estava em pleno zumbido de trabalho. Todos estavam
ocupados, tudo estava em movimento ordenado. Sob os microscópios, agitando furiosamente a cauda,
os espermatozóides insinuavam-se, primeiro a cabeça, nos óvulos, e, fecundados, os ovos dilatavam-se,
segmentavam-se, ou, se tinham sido bokanovskizados, germinavam-se e fragmentavam-se em
populações inteiras de embriões de características diferentes. Partindo da Sala de Predestinação Social,
os escalators desciam ruidosamente para o subsolo, onde, na obscuridade vermelha, aquecendo-se no
seu colchão de peritónio e fartos de pseudo-sangue e de hormonas, os fetos cresciam, cresciam, ou
então, envenenados, estiolavam-se no estado definhado dos Epsilões. Com um ligeiro zumbido, um
pequeno rumor, os porta-garrafas móveis percorriam com um movimento imperceptível as semanas e
todas as idades do passado, abreviadamente, até ao lugar onde, na Sala de Decantação, os bebés recém saídos
da sua proveta soltavam um primeiro vagido de horror e de espanto.
Os dínamos roncavam no andar inferior do subsolo, os ascensores subiam e desciam a toda a
velocidade. Em cada um dos doze andares dos infantários era a hora da refeição. Em mil e oitocentos
biberões, mil e oitocentos bebés, cuidadosamente etiquetados, m'amavam simultaneamente o seu meio
litro de secreção externa pasteurizada.
Acima deles, em dez andares sucessivos destinados a dormitórios, os meninos e as meninas ainda na
idade de precisarem de uma sesta estavam tão ocupados como os outros, embora o não suspeitassem,
ouvindo inconscientemente as lições hipnopédicas tratando de higiene e sociabilidade, do sentimento
das classes sociais e da vida amorosa dos pequeninos que ainda mal sabem andar. Ainda acima deles,
havia as salas de recreio, onde, quando chovia, novecentas crianças se divertiam com exercícios de
construção e modelação, de zipfurão e jogos eróticos.
Bzz, bzz! A colmeia zumbia ativamente, alegremente. O cantarolar das raparigas curvadas sobre os
seus tubos de ensaio subia alacremente, os predestinadores assobiavam enquanto trabalhavam, e na
Sala de Decantação que boas piadas se cruzavam por cima das provetas vazias. Mas a fisionomia do
Diretor, quando entrou na Sala de Fecundação com Henry Foster, era grave, mergulhada na sua
severidade como se fosse talhada em madeira.

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