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quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Admirável Mundo Novo - Aldous Huxley [parte 19]

E a expectativa, que, por momentos, se atenuara, de novo ficou tensa, semelhante a uma corda que se
estica, mais, cada vez mais, quase ao ponto de rebentar. Os pés do Grande Ser. Ah, eles ouviam-nos,
ouviam-nos descendo docemente os degraus, aproximando-se cada vez mais a medida que desciam a
escada invisível. Os pés do Grande Ser. E, subitamente, o limite de ruptura foi atingido. Com os olhos
arregalados e os lábios entreabertos, Morgana Rothschild levantou-se de um salto.
- Estou a ouvi-lo, estou a ouvi-lo! - exclamou.
- Ele chega! - gritou Sarojini Engels.
- Sim, ele chega, estou a ouvi-lo! - Fifi Bradlaugh e Tom Kawaguchi ergueram-se simultaneamente.
- Oh! Oh! Oh! - disse Joana, numa inarticulada exclamação.
- Ele chega! - uivou jim Bokanovsky.
O Presidente inclinou-se para a frente e, com um leve movimento da mão, desencadeou um delírio de
címbalos e de metais, um acesso febril de marteladas em tantãs.
- Oh, ele chega! - vociferou Clara Deterding. - Ai! - gritou, como se lhe tivessem cortado a garganta.
Sentindo que era a altura de fazer qualquer coisa, Bernard pôs-se de pé num salto e, Como os outros,
berrou:
- Estou a ouvi-lo! Ele chega! Mas não era verdade. Não ouvia nada, e para ele ninguém tinha chegado.
Ninguém, apesar da música, apesar da crescente superexcitação. Mas agitou os braços, gritou como os
outros. E quando os outros se puseram a bambolear, a bater com os pés e a caminhar arrastando-os, ele,
como os outros, também se bamboleou e arrastou os pés.

Deram a volta à sala, procissão circular de dançarinos, cada um com as mãos nas ancas do que lhe
estava à frente - deram-na e tornaram a dá-la, gritando em conjunto, batendo com os pés ao ritmo da
música, marcando, batendo vigorosamente esse ritmo com as mãos nas nádegas que estavam à frente;
doze pares de mãos batendo como uma só, doze nádegas ressoando viscosamente. Doze-em-um, doze-em-
um. "Estou a ouvi-lo, ouço-o chegar!" A música acelerou-se; os pés bateram com mais rapidez;
mais rápido, mais rapidamente ainda bateram as mãos rítmicas. E de repente uma poderosa voz
sintética de baixo roncou as palavras que anunciavam a consumação da fusão e a realização final da
solidariedade, a vinda do doze-em-um, a encarnação do Grande Ser.
"Orgia-folia ", cantou ela, enquanto os tantãs continuavam a martelar o seu rufo febril:
Orgia-folia, Ford e alegria, Beija aqueles que amas e faz deles um só. Rapazes e raparigas em paz se
unirão! Orgia-folia dá-nos a libertação.
"Orgia-folia." Os dançarinos retomaram o estribilho litúrgico: Orgia-folia, Ford e alegria, beija aqueles
que amas ... Enquanto cantavam, as luzes começaram a baixar lentamente e, simultaneamente, a
tornarem-se mais quentes, mais ardentes, mais vermelhas, de tal forma que depressa eles se
encontraram a dançar na penumbra carmesim do Depósito de Embriões. «Orgia-folia ... » Depois o círculo
estremeceu, rompeu-se, desagregando-se parcialmente sobre os canapés dispostos em volta da mesa e
das suas cadeiras satélites - um círculo envolvendo outro círculo. «Orgia-folia...» Ternamente, a voz
profunda murmurava e cantarolava; na penumbra vermelha, dir-se-ia que uma enorme pomba negra
planava, benfazeja, sobre os dançarinos, agora deitados de costas ou de barriga para baixo.
Estavam de pé no terraço. Big Henry acabava de cantar onze horas. A noite estava calma e suave.
- Estava ótimo, não estava? - disse Fifi Bradlaugh. - Estava simplesmente ótimo, hem? - Olhou para
Bernard com uma expressão de enlevo, mas de enlevo no qual não havia um único traço de agitação ou
de excitação, pois estar excitado é estar insatisfeito. O seu êxtase era aquele calmo êxtase da perfeição
atingida, a paz, não da simples saciedade e do nada, mas da vida,O equilibrada, das energias em
repouso e bem contrabalançadas. Uma paz rica e viva, pois a Cerimônia da Solidariedade tinha dado
tanto quanto tinha tomado, e apenas parcialmente tinha vazado para tornar a encher. Ela estava cheia,
tinha-se tornado perfeita, sentia-se ainda mais que simplesmente ela mesma.
- Não achou que estava ótimo? - insistiu, dirigindo ao rosto de Bernard um olhar brilhante, de um
fulgor sobrenatural.
- Sim, estava ótimo - respondeu ele, mentindo e desviando os olhos. A vista dessa fisionomia
transfigurada era uma espécie de acusação e uma irônica lembrança daquilo que o separava dos outros.
Sentia-se agora tão miseravelmente isolado como estivera no início da cerimônia, mais isolado ainda
devido ao vazio que nele não tinha sido cheio, devido à sua saciedade não satisfeita. Isolado,
insatisfeito, enquanto os outros se integravam no Grande Ser; só, até mesmo nos braços de Morgana,
muito mais só, na verdade, mais desesperadamente ele mesmo do que jamais tinha sido. Saíra dessa
penumbra vermelha para voltar ao brilho vulgar da eletricidade com um sentimento do eu
intensificado ao ponto de o fazer sofrer um martírio. Sentia-se miserável, totalmente infeliz e talvez (os
olhos de Fifi eram o seu acusador), talvez fosse por sua própria culpa. - Magnífico repetiu. Mas a única
coisa em que pôde pensar foi na sobrancelha de Morgana.

CAPÍTULO SEXTO
«Estranho, estranho, muito estranho», tal era a opinião de Lenina acerca de Bernard Marx. De tal
maneira estranho que durante as semanas que se sucederam ela perguntou a si mesma, mais de uma
vez, se não faria melhor em mudar de ideia a respeito das férias no Novo México e ir antes ao Pólo
Norte com Benito Hoover. O que a contrariava era já conhecer o Polo Norte, pois fora lá no último
Verão com George Edzel, e, pior ainda, achara a estada muito desagradável. Nada para fazer, e o hotel,
inconcebível, verdadeiramente fora de moda; sem televisão nos quartos, sem órgão de perfumes, nada
mais que a mais infecta música sintética e apenas vinte e cinco campos de bola escalator para mais de
duzentos hóspedes. Não, era impossível suportar de novo o Polo Norte. E, por outro lado, apenas fora
uma vez à América. E, mesmo isso, muito à pressa! Um fim de semana econômico em Nova Iorque -
com Jean-Jacques Habibullah ou com Bokanovsky Jones? já não se lembrava e, além disso, também
não tinha nenhuma importância. A ideia de voar de novo para o oeste, durante uma semana inteira,
era deveras sedutora. E, depois, passariam pelo menos três dias, dos sete da viagem, na Reserva de
Selvagens. Em todo o centro não havia mais de meia dúzia de pessoas que já tivessem penetrado no
interior de uma Reserva de Selvagens. Na sua qualidade de psicólogo Alfa-Mais, Bernard era um dos
raros homens, ante os seus conhecimentos, que tinham direito a uma autorização. Para Lenina a ocasião
era única. E, no entanto, as bizarrias de Bernard eram também de tal maneira únicas que hesitava em
aproveitá-la e por mais de uma vez tinha pensado em arriscar uma outra ida ao Polo com esse bravo e
divertido Benito. Pelo menos Benito era normal, ao passo que Bernard ...
«Foi o álcool no seu pseudo-sangue», tal era a explicação que Fanny dava de cada uma dessas
excentricidades. Mas
Henry, com quem, numa noite em que estavam deitados juntos, Lenina tinha falado, não sem uma certa
inquietação, do seu novo amante, Henry tinha comparado o pobre Bernard a um rinoceronte.
- Não se pode ensinar um rinoceronte a fazer habilidades - tinha ele explicado, no seu estilo breve e
vigoroso. - Há indivíduos que são quase rinocerontes; não reagem convenientemente ao
condicionamento. Pobres diabos! Bernard é um deles, Felizmente para ele, é bastante competente na
sua especialidade. Sem isso, o Diretor já o teria posto na rua. No entanto - acrescentou num tom
consolador -, creio que é completamente inofensivo.

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