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quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Admirável Mundo Novo - Aldous Huxley [parte 34]


- Ouçam-me, suplico-lhes - gritou o Selvagem com ardor veemente. - Emprestem-me os ouvidos ...
Nunca falara em público e tinha muita dificuldade em exprimir o que queria dizer. - Não tomem essa
nefasta droga. É veneno, é veneno.
- Diga-me, senhor Selvagem - interveio o subecónomo interino, abrindo um sorriso conciliador -, não o
incomodaria deixar-me...
- Veneno para a alma, assim como para o corpo.
- Sim, mas deixe-me continuar a minha distribuição. Seja delicado. - Ternamente, prudentemente,
como quem acaricia um animal que se sabe que é mau, deu palmadinhas no braço do Selvagem. -
Deixe-me lá ...
- Nunca! - bradou o Selvagem.
- Mas então, meu velho ...
- Atire fora tudo isso, esse horrível veneno! As palavras «atire fora» conseguiram furar as camadas
envolventes de incompreensão, penetrando violentamente na consciência dos Deltas. Um murmúrio
irado elevou-se da multidão.
- Venho trazer-lhes a liberdade - disse o Selvagem, dirigindo-se aos gêmeos. - Venho ...
o subecónomo interino não quis ouvir mais; deslizou sem ruído para fora do vestíbulo e procurou um
número na lista telefônica.
- Não está no apartamento dele - resumiu Bernard. - Também não está no meu, e no seu também não.
Não está no Aphroditacum, nem no centro, nem no colégio. Onde diabo se terá metido?

Helmholtz encolheu os ombros. Tinham regressado do trabalho, esperando encontrar o Selvagem, que
os esperava, num ou noutro dos seus habituais pontos de encontro, mas não havia sinais dele em parte
nenhuma. Era uma contrariedade, pois tinham o projeto de irem para Blarritz no desporticóptero de
quatro lugares de Helmholtz. Se ele se demorasse, iam chegar atrasados para o jantar.
- Vamos dar-lhe mais cinco minutos - propos Helmholtz. - Se não aparecer nestes cinco minutos, nós ...
A campainha do telefone interrompeu-o. Pegou no aparelho.
- Alô? Sou eu mesmo. - E, depois de um longo período de escuta, blasfemou: - Ford das Carripanas!
Vou imediatamente.
- Que aconteceu? - perguntou Bernard.
- Era um tipo que eu conheço no Hospital de Park Lane - esclareceu Helmholtz. - É lá que está o
Selvagem. Parece que enlouqueceu. Em todo o caso é urgente. Você vem comigo?
Ambos se precipitaram pelo corredor fora para os elevadores.
- Mas gostam de ser escravos? - perguntava o Selvagem quando penetraram no hospital. Tinha o rosto
inflamado e os olhos flamejavam-lhe de horror e indignação. - Gostam de ser bebês? Sim, bebês,
vagindo e babando-se - acrescentou, exasperado ante aquela estupidez bestial, a ponto de injuriar
aqueles que se tinha proposto salvar. Os insultos ressaltaram contra a carapaça de estupidez espessa;
eles encaravam-no com os olhos cheios de uma expressão vazia de ressentimento embrutecido e
sombrio. - Sim, babões - vociferou impiedosamente. A dor e o
remorso, a compaixão e o dever, tudo isso tinha sido esquecido agora e de qualquer maneira absorvido
por um ódio intenso que dominava tudo o que se referia àqueles monstros menos que humanos. - Vocês
não querem ser livres, ser homens? Nem sequer compreendem o que é ser homem, o que é a liberdade?
- A raiva fazia dele um orador coerente, as palavras ocorriam-lhe facilmente, em fluxo cerrado. - Vocês
não compreendem? repetiu ele. Mas não recebeu resposta. - Pois bem - afirmou em tom feroz -, então
vou ensinar-lhes: vou impor-lhes a liberdade, - quer queiram quer não! - E, entreabrindo uma janela
que dava para o pátio interior do hospital, pôs-se a deitar fora, aos punhados, as caixinhas de
comprimidos de soma.
Por um instante, a multidão caqui ficou silenciosa, petrificada, perante o espetáculo deste sacrilégio
inaudito, plena de assombro e de horror.
- Ele está louco - murmurou Bernard, arregalando os olhos. - Eles vão matá-lo. Eles...
Um grande grito estourou de súbito no meio da multidão, uma onda movediça arrastou-se,
ameaçadora, para o Selvagem.
- Que Ford o ajude! -disse Bernard, desviando os olhos.
- Ford ajuda aqueles que se ajudam a si próprios. E com uma gargalhada, uma autêntica gargalhada de
triunfo, Helmholtz Watson abriu caminho através da multidão.
- A liberdade, a liberdade! - clamava o Selvagem. E com uma mão continuava a atirar o soma para o
pátio e com a outra esmurrava o rosto dos assaltantes, que em nada se distinguiam uns dos outros. - A
liberdade! - E eis que subitamente Helmholtz apareceu a seu lado, esmurrando também. - Ah! Este bom
amigo Helmholtz!
- Enfim, homens! - gritava Helmholtz, que também lançava o veneno pela janela, às mancheias. - Sim,
homens, homens!
- já não havia mais veneno. Levantou a caixa e mostrou o interior, negro e vazio. - Vocês têm a
liberdade!
Urrando, os Deltas carregaram com furor redobrado. Hesitante, mantendo-se à margem da batalha,
Bernard pensou: « Eles estão perdidos. » E, arrastado por um súbito impulso, correu para a frente em
seu socorro; depois reconsiderou e parou, mas, envergonhado, voltou a avançar; depois reconsiderou
outra vez. E ali estava, sofrendo o martírio da indecisão humilhada, pensando que ambos se arriscavam
a ser mortos se os não ajudasse e que também ele corria esse perigo se os ajudasse, quando (Ford seja
louvado!), de olhos redondos e com o focinho de porco que lhes davam as máscaras antigás, os polícias
irromperam no local.
Bernard precipitou-se diante deles. Agitou os braços e isso já era ação: fazia qualquer coisa. Bradou
várias vezes:
- Socorro! - Cada vez mais forte, a fim de se dar a ilusão de ser útil em alguma coisa: - Socorro!
Socorro! Socorro!
Os polícias afastaram-no do caminho e continuaram o seu trabalho. Três homens, trazendo
pulverizadores presos aos ombros com correias, espalharam na atmosfera espessas nuvens de vapores
de soma. Dois outros estavam ocupados com a caixa de música sintética. Armados de pistolas de água
carregadas com um poderoso anestésico, outros quatro abriram caminho através da multidão, pondo
metodicamente fora de combate, jacto após jacto, os combatentes mais ferozes.
- Depressa, depressa! - rugiu Bernard. - Eles serão mortos se vocês não se despacharem. Eles ... Oh!
Irritado com aquele falatório, um dos polícias disparou sobre ele a pistola de água. Bernard manteve-se
de pé um ou dois segundos, oscilando como um ébrio sobre as pernas, que pareciam ter perdido os
ossos, os tendões, os músculos, transformando-se em simples bastões de geleia, e, afinal, nem sequer
de geleia, de água, e desabou no chão como uma massa.
De súbito, da caixa de música sintética uma voz começou a falar. A Voz da Razão, a Voz da
Benevolência. O cilindro de impressão sonora girava para proferir o Discurso Sintético n.' 2 (Força
Média) contra os Motins, jorrando de um coração inexistente. «Meus amigos, meus amigos!», dizia a
voz num tom tão tocante, com uma nota de censura tão infinitamente terna, que, por trás das suas
máscaras de gás, os olhos dos próprios polícias se marejaram momentaneamente de lágrimas. «Que
significa tudo isto? Porque não estão aqui todos reunidos, felizes e ajuizados?» «Felizes e ajuizados»,
repetiu a voz, «e em paz, em paz». A voz tremeu, decresceu num murmúrio e expirou
momentaneamente. "Oh! Como desejo que todos sejam felizes", continuou, cheia de ardor sincero.
"Como desejo que todos sejam ajuizados! Peço-lhes, peço-lhes que sejam ajuizados
e ... " Dois minutos depois a voz e os vapores de soma tinham produzido o seu efeito. Em lágrimas, os
Deltas abraçavam-se e acariciavam-se, meia dúzia de gêmeos reunidos num largo amplexo. Até mesmo
Helmholtz e o Selvagem estavam prestes a chorar. Trouxeram do economato uma nova provisão de
caixas de pílulas; fizeram rapidamente uma nova distribuição, e, ao som de bênçãos de adeus cantadas
pela voz num tom carregado de afeição, os gêmeos dispersaram-se, soluçando de modo comovente.
"Adeus, meus queridos amigos, meus muito queridos amigos. Ford os proteja! Adeus, meus queridos
amigos, meus muito ... "
Quando o último dos Deltas partiu, o polícia cortou a corrente. A voz angélica calou-se.
- Os senhores estão dispostos a ir a bem, ou será preciso anestesiá-los? - perguntou o sargento.
Apontou a sua pistola de água num gesto ameaçador.
- Oh! Iremos a bem - retrucou o Selvagem, estancando o sangue ora numa brecha, ora no pescoço
arranhado, ora na mão esquerda mordida.
Mantendo sempre o lenço no nariz, que sangrava, Helmholtz fez com a cabeça um sinal de
confirmação.
Reanimado e tendo recuperado o uso das pernas, Bernard aproveitara esse momento para se dirigir para
a porta, fazendo-se notar o menos possível.
- Hé! Oiça lá! - gritou o sargento. Um polícia de máscara de porco precipitou-se através do
compartimento e pôs a mão no ombro do rapaz.
Bernard voltou-se com uma expressão de inocência indignada. Fugir? Não lhe tinha passado pela
cabeça semelhante ideia.
- E, todavia, que necessidade tem você de mim - disse ao sargento -, se eu, na verdade, não sei nada?
- Você é um dos amigos dos acusados, não é verdade?
- Meu Ford... - começou Bernard, hesitando. Não, não podia negar a verdade. - E porque não hei de
ser?
- Então venha cá - disse o sargento, caminhando para a porta em direção ao carro da Polícia que os
esperava.

CAPÍTULO DÉCIMO SEXTO
A sala na qual os três foram introduzidos era o gabinete do Administrador.
- Sua Forderia vai descer dentro de um momento. Depois o mordomo Gama deixou-os sós. Helmholtz
começou a rir muito alto.
- Isto parece mais uma reunião de amigos tomando uma solução deíafeína que um julgamento - disse,
deixando-se cair na mais luxuosa das poltronas pneumáticas. - Coração ao alto, Bernard! - acrescentou,
quando o seu olhar pousou na face esverdeada e infeliz do amigo.
Mas Bernard não queria ser tranquilizado. Sem dar resposta, sem mesmo olhar Helmholtz, foi sentar-se
na cadeira mais desconfortável da sala, cuidadosamente escolhida na esperança de conjurar de
qualquer maneira a cólera das potências superiores. Entretanto o Selvagem passeava ao redor da sala,
muito agitado, lançando olhares de uma curiosidade superficial sobre os livros das estantes, sobre os
cilindros de inscrições sonoras e as bobinas das máquinas de leitura nos seus compartimentos
numerados. Em cima da mesa, debaixo da janela, estava um grosso volume encadernado em macio
pseudocouro preto e marcado com grandes TT dourados. Pegou nele e abriu-o. A Minha Vida e a
Minha Obra, por Nosso Ford. O livro tinha sido editado em Detroit pela Sociedade para a Propaganda
do Conhecimento Fordiano. Com um gesto descuidado, folheou as páginas, leu uma frase aqui, um
parágrafo além. Chegara à conclusão de que o livro não lhe interessava, quando a porta se abriu e o
Administrador Mundial Residente da Europa Ocidental entrou com passo rápido na sala.
Mustafá Mond apertou a mão aos três homens. Mas foi ao Selvagem que se dirigiu.
- Assim, ao que parece, não gosta nada da civilização, senhor Selvagem!
O Selvagem olhou-o. Viera disposto a mentir, a fingir-se
fanfarrão, a encerrar-se numa reserva sombria. Mas, tranquilizado pela inteligência benévola do rosto
do Administrador, resolveu dizer a verdade com absoluta franqueza.
- Não. - E abanou a cabeça. Bernard sobressaltou-se e mostrou-se horrorizado. Que pensaria o
Administrador? Ser catalogado como amigo de um homem que afirma não gostar da civilização, que o
diz abertamente, e ainda por cima ao próprio Administrador, era terrível.
- Ora essa, john... - começou a dizer. Um olhar de Mustafá Mond reduziu-o ao mais humilde Silêncio.
- Entenda-se desde já - não pôde deixar de reconhecer o Selvagem - que há coisas que são muito
agradáveis. Toda esta música aérea, por exemplo.
- Às vezes, mil instrumentos melodiosos cantarolam em meus ouvidos, e às vezes vozes.
A fisionomia do Selvagem inundou-se de uma súbita alegria.
- O senhor também o leu? Julgava que nunca ninguém tinha ouvido falar deste livro aqui na Inglaterra.
- Quase ninguém. Eu sou uma das raríssimas exceções. Sabe, está proibido. Mas como sou eu que
faço as leis, posso igualmente transgredi-las. Impunemente, senhor Marx - acrescentou, virando-se para
Bernard. - Coisa que, ao que me parece, o senhor não poderá fazer.
Bernard sentiu-se mergulhado num estado de miséria ainda mais desesperada.
- Mas porque está ele proibido? - perguntou o Selvagem. Emocionado por se encontrar em frente de um
homem que tinha lido Shakespeare, esquecera-se momentaneamente de todas as outras coisas.
O Administrador encolheu os ombros.
- Porque é velho, eis a razão principal. Aqui não temos o culto das coisas velhas.
- Mesmo quando são belas?
- Sobretudo quando são belas. A beleza atrai, e nós não queremos que as pessoas sejam atraídas pelas
coisas velhas. Queremos que amem as coisas novas.
- Mas as novas são tão estúpidas tão horrorosas! Estes espetáculos onde só há helicópteros a voar
por todos os lados e onde se sentem as pessoas que se beijam! - Fez uma careta. - Bodes e macacos! -
Só repetindo as palavras de Othello pôde manifestar convenientemente o seu desprezo e o seu ódio.
- Animais bem gentis e nada desagradáveis, no entanto - murmurou o Administrador, como num
parêntesis.
- Porque não lhes dá para apreciação o Othello?
- já lhe disse: é velho. E, por outro lado, eles não compreenderiam.
Sim, era verdade. Lembrou-se de como Helmholtz tinha rido de Romeu e Julieta.
- Pois bem! Então - continuou depois de um silêncio - qualquer coisa nova semelhante ao Othello e que
eles sejam capazes de compreender. - Aí está o que todos nós há muito desejamos escrever - disse
Helmholtz, rompendo um silêncio prolongado.
- E é o que você nunca escreverá - disse o Administrador - porque, se a obra se parecesse realmente
com o Othello ninguém estaria em condições de a compreender. E, se fosse coisa nova, não se podia
parecer em nada com o Othello.
- Porque não?
- Sim, porque não? - repetiu Helmholtz. Esquecia também as realidades desagradáveis da situação.
Verde de terror e de apreensão, Bernard era o único que se lembrava. Mas os outros não reparavam
nele. - Porque não?
- Porque o nosso mundo não é o mesmo que o de Othello. Não se podem fazer calhambeques sem aço e
não se podem fazer tragédias sem instabilidade social. O mundo é estável, agora. As pessoas são
felizes, conseguem o que querem e nunca querem aquilo que não podem obter. Sentem-se bem, estão
em segurança, nunca estão doentes, não receiam a morte, vivem numa serena ignorância da paixão e da
velhice, não são sobrecarregadas
com pais e mães, não têm mulheres, nem filhos, nem amantes, pelos quais poderiam sofrer emoções
violentas, estão de tal modo condicionadas que, praticamente, não podem deixar de se portar como
devem. E se por acaso alguma coisa correr mal, há o soma, que o senhor atira friamente pela janela em
nome da liberdade, senhor Selvagem. A liberdade! - Pôs-se a rir. - O senhor espera que os Deltas
saibam o que é a liberdade!
E agora espera que os Deltas sejam capazes de compreender Othello! Meu caro amigo!
- Apesar de tudo - insistiu obstinadamente o Selvagem, que se mantivera calado -, é belo, é melhor que
os filmes perceptíveis.
- Não há dúvida - assentiu o Administrador. - Mas esse é o preço que temos de pagar pela estabilidade.
É preciso escolher entre a felicidade e o que outrora se chamava a grande arte. Nós sacrificamos a
grande arte. Temos em seu lugar os filmes perceptíveis e os órgãos de perfumes.
- Mas são coisas sem sentido nenhum.
- Têm o seu sentido próprio. Representam para os espectadores uma porção de sensações agradáveis.
- Mas, contudo... são narrados por um idiota.
O Administrador pôs-se a rir.
- Você não está a ser muito delicado para o seu amigo senhor Watson. Um dos nossos mais distintos
engenheiros de emoção ...


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