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quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Os Bruzundangas - Lima Barreto [pate 7]

De todos os postiços literários, usava, e de todas as mesquinhezas da
profissão, abusava.
Era este de fato um samoieda típico no intelectual, no moral, no
físico. Tinha fama.
Poderia mais esclarecer semelhante escola, os seus processos, as suas
regras, as suas superstições; mas não convém fazer semelhante cousa,
porque bem podia acontecer que alguns dos meus compatriotas a quisessem
seguir.
Já temos muitas bobagens e são bastantes.
Fico nisto.

II
Um grande financeiro

A República dos Estados Unidos da Bruzundanga tinha, como todas
as repúblicas que se prezam, além do presidente e juízes de várias categorias, um Senado e uma Câmara de Deputados, ambos eleitos por sufrágio
direto e temporários ambos, com certa diferença na duração do mandato:
o dos senadores, mais longo; o dos deputados, mais curto.

O país vivia de expedientes, isto é, de cinqüenta em cinqüenta anos, descobria-se nele um produto que ficava sendo a sua riqueza. Os governos taxavam-no a mais não poder, de modo que os países rivais, mais parcimoniosos
na decretação de impostos sobre produtos semelhantes, acabavam, na concorrência, por derrotar a Bruzundanga; e, assim, ela fazia morrer a sua riqueza, mas não sem os estertores de uma valorização duvidosa. Daí vinha que
a grande nação vivia aos solavancos, sem estabilidade financeira e econômica; e, por isso mesmo, dando campo a que surgissem, a toda a hora,
financeiros de todos os seus cantos e, sobretudo, do seu parlamento.
Naquele ano, isto há dez anos atrás, surgiu na sua Câmara um deputado
que falava, muito em assuntos de finanças, orçamentos, impostos diretos e
indiretos e outras cousas cabalísticas da ciência de obter dinheiro para o
Estado.
A sua ciência e saber foram logo muito gabados, pois o Tesouro da
Bruzundanga, andando quase sempre vazio, precisava desses mágicos financeiros, para não se esvaziar de todo.
Chamava-se o deputado -- Felixhimino Ben Karpatoso. Se era advogado, médico, engenheiro ou mesmo dentista, não se sabia bem; mas todos
tratavam-no de doutor.
O doutor Karpatoso tinha uma erudição sólida e própria em matéria
de finanças. Não citava Leroy-Beaulieu absolutamente. Os seus autores
prediletos eram o russo-polaco Ladislau Poniatwsky, o australiano Gordon
O'Neill, o chinês Ma-Fi-Fu, o americano William Farthing e, sobretudo,
o doutor Caracoles y Mientras, da Universidade de Caracas, capital da
Venezuela, que, por ser país sempre em bancarrota, dava grande autoridade
ao financista de sua principal universidade.
O físico do deputado era dos mais simpáticos. Tinha um ar de Gil-Blas de Santillana, em certas ilustrações do romance de Le Sage, com
as suas barbas negras, cerradas, longas e sedosas, muito cuidadas e aparadas à tesoura diariamente. A tez era de um moreno espanhol; os cabelos,
abundantes e de azeviche; os olhos, negros e brilhantes; e não largava a
piteira de âmbar, com guarnições de ouro, onde fumegava sempre um
charuto caro.
O seu saber em matéria de finanças e economia política determinava
a sua constante escolha para relator do orçamento da receita. Era de ver
como ele escrevia um substancial prefácio ao seu relatório. Não me recordo
de todas as passagens importantes de alguns deles; mas, de certas, e é
pena que sejam tão poucas, eu me lembro perfeitamente. Eis aqui algumas.
Para o orçamento de 1908, o doutor Karpatoso escreveu o seguinte trecho
profundo: "Os governos não devem pedir às populações que dirigem, em
matéria de impostos, mais do que elas possam dar, afirma Ladislau Poniatwsky. A nossa população é em geral pobríssima e nós não devemos sobrecarregá-la fiscalmente". Não impediu isto que ele propusesse o aumento
da taxa sobre o bacalhau da noruega, pretextando haver produtos similares nas costas do país.
No orçamento do ano seguinte, ainda como relator da receita, ele
dizia: "É missão dos governos modernos, em países de fraca iniciativa
individual (o nosso o é), fomentar o aparecimento de riquezas novas, no
dizer de Gordon O'Neill. A província das Jazidas, segundo um sábio professor francês, é um coração de ouro sob um peito de ferro. O pico de
Ytabhira, etc.".
E lembrava à Câmara que indicasse medidas práticas para o aproveitamento do ouro e do ferro da província das Jazidas. A Câmara e o
Senado ouviram-no e votaram algumas centenas de contos para uma comissão que estudasse o meio prático de aproveitar o ferro da rica província
central. A comissão foi nomeada, montaram o escritório de pesquisas na
capital, em lugar semelhante ao Largo da Carioca, e o pico de Ytabhira
ficou intacto.
A fama do doutor Karpatoso subia e a sua elegância também. Fez
uma viagem à Europa, para estudar o mecanismo financeiro dos países
do Velho Mundo. Voltou de lá naturalmente mais sábio; o que, porém, ele
trouxe de fato, nas malas, e foi verificado pelos elegantes do país, foram
fatos, botas, chapéus, bengalas, dernier bateau, como dizem os smarts
das colônias francesas da Ásia, da África, da América e da Oceania.
Arreado de novo e inteiramente europeu, o doutor Karpatoso começou
a figurar nas secções mundanas dos jornais, e, vencendo o Senhor Mikel de
Longueville, outro deputado da Bruzundanga, foi tido como o parlamentar
mais chic do Congresso Nacional.
"A elegância do doutor Mikel de la Tour d'Auvergne é um tanto
pesada; tem algo da solidez lusitana quando enrijou os músculos ao machado nos cepos dos açougues; a do doutor Ben Karpatoso é mais leve,
mais ligeira, mais nervosa. Parece ter sido obtida com o exercício do
florete."
Tudo isto foi dito na secção elegante -- "De Cócoras" -- do Diário
Mercantil, jornal da capital, secção redigida por escritor que tinha, em
matéria de compor romances, um grande parentesco com aquela raposa
das uvas, cuja história La Fontaine contou. "Ils sont trop verts, et bons
pour des goujats", disse a raposa quando não pôde atingir as uvas. Lembram-se?

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