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quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Os Bruzundangas - Lima Barreto [parte 6]

Estes, porém, crentes na eficácia da vestimenta para a criação artística,
morrem de fome, mas vestem-se à moda da Sibéria.
Estavam assim vestidos, naquela tarde, quente, ali naquele café da
capital da Bruzundanga, três dos seus novos e soberbos vates; estavam ali:
Kotelniji, Wolpuk e Korspikt, o primeiro que tinha aplicado o vernier
para "medir" versos.
Abanquei-me e pude perceber que acabavam de ouvir uma poesia do
poeta Worspikt. Tratava de lua, de iceberg, -- descobri eu por uma e outra
consideração que fizeram.
Nenhum deles tinha visto um iceberg, mas gabavam os ouvintes a
moção com que o outro traduzira em verso o espetáculo desse fenômeno
das circunvizinhanças dos pólos.
Num dado momento Kotelniji disse para Worspikt:
-- Gostei muito desse teu verso: -- "há luna loura linda leve, luna
bela!"
O autor cumprimentado retrucou:
-- Não fiz mais do que imitar Tuque-Tuque, quando encontrou aquela
soberba harmonia imitativa para dar idéia do luar -- "Loga Kule Kulela
logalam", no seu poema "Kulelau". 

Wolpuk, porém, objetou:
-- Julgo a tua excelente, mas teria escolhido a vogal forte "u", para
basear a minha sugestão imitativa do luar.
-- Como? perguntou Worspikt.
Eu teria dito: Ui! "lua uma pula, tu moo! sulla nuit!"
-- Há muitas línguas nela, objetou Kotelniji.
-- Quantas mais melhor, para dar um caráter universal à poesia que
deve sempre tê-lo, como ensina o mestre, defendeu-se Wolpuk.
-- Eu, porém, aduziu Kotelniji, conquanto permita nos outros certas
licenças poéticas, tenho por princípio obedecer às mais duras e rígidas
regras, não me afastar delas, encarcerar bem o meu pensamento. No meu
caso, eu empregaria a vogal "a" para a harmonia em vista.
-- Mas Tuque-Tuque... fez Worspikt.
-- Ele empregou o "e" no tal verso que você citou, devido à pronunciação que essa letra lá tem. É um "e" molhado que evoca bem o luar
deles, mas...
-- E com "a", como é? indagou Wolpuk.
-- O "a" é o espanto; seria ai o espanto do homem dos. trópicos,
diante da estranheza do fenômeno ártico que ele não conhece e o assombra.
-- Mas Kotelniji, eu visava o luar.
-- Que tem isso? Na harmonia em "a" também entra esse fenômeno
que é o provocador do teu espanto, causado pela sua singularidade local, e
pela hirta presença do iceberg, branco, fantástico, que, a lua ilumina.
-- Bem, perguntou o autor da poesia; como você faria, Kotelniji?
-- Eu diria: "A lua acaba de calar a caraça parva".
-- Mas não teria nada que ver com o tema da poesia, objetou Wolpuk;
-- Como? O iceberg toma as formas mais variadas... Demais, há sempre onde encaixar, seja qual for a poesia, uma feliz "imitativa".
-- Você tem razão, aplaudiu Wolpuk.
Worspikt concordou também e prometeu aproveitar a maravilhosa
trouvailhe do amigo de letras.
Kotelniji era considerado como um grande poeta "samoieda" e tinha
mesmo estabelecido com assentimento de todos eles, as leis científicas da
escola perfeita, "a samoieda", que ele definia como tendo por escopo não
exprimir cousa alguma com relação ao assunto visado, ou dizer sobre ele,
pomposamente, as mais vulgares banalidades.
Dentre as leia que estatuía, eu me lembro de algumas. Ei-las:
1.' -- Sendo a poesia o meio de transportar o nosso espírito do real
para o ideal, deve ela ter como principal função provocar o sono, estado
sempre profícuo ao sonho.
2.' -- A monotonia deve ser sempre procurada nas obras poéticas; no
mundo, tudo é monótono (Tuque-Tuque).
3.' -- A beleza de um trabalho, poético não deve ressaltar desse próprio trabalho, independente de qualquer explicação; ela deve ser encontrada com as explicações ou comentários fornecidos pelo autor ou por seus
íntimos.
4.' -- A composição de um poema deve sempre ser regulada pela
harmonia imitativa em geral e seus derivados.
E muitas outras de que me esqueci, mas julgo que só estas ilustram
perfeitamente o absurdo da qualificação de leis científicas da arte. Alhos
com bugalhos!
Denuncia tal denominação, de modo cabal, a sua incapacidade para
grupar idéias, noções e imagens. Que pensaria ele de ciência? Qual era
a sua concepção de arte? Será possível decifrar essa história de "leis científicas da arte"? Qual!
Era assim o grande poeta samoieda.
Além de uma gramaticazinha que nós aqui chamamos de tico-tico e
da arte poética de Chalat aumentada e explicada com uma lógica de gafanhotos, não possuía ele um acervo de noções gerais, de idéias, de observações, de emoções próprias e diretas do mundo, de julgamentos sobre as
cousas, tudo isso que forma o fundo do artista e que, sob a ação de uma
concepção geral, lhe permite fazer grupamentos ideais, originalmente, criar
enfim.
A importância do vate lhe vinha de redigir A Kananga, órgão das
casas de perfumarias, leques, luvas e receitas para doces, onde alguns rapazes, sob o seu olhar cioso, escreviam, para ganhar os cigarros, algumas
coisas ligeiras.
O bardo samoieda tomava, entretanto, a cousa a sério, como se estivesse escrevendo para a Revue de Deux Mondes uma fórmula de mãe-benta; e evitava o mais possível que alguém tomasse pé na pueril A
Kananga. Era essa a sua máxima preocupação de artista.

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