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segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Os Bruzundangas - Lima Barreto [parte 9]


Houve uma crise no ministério e logo ele foi nomeado ministro da  Fazenda, com o orçamento que fizera votar. Foram tais os processos de  contrabando que teve de estudar, tanto meditou sobre eles, que um dia,
telegrafou a um seu subalterno que apreendera um grande, um imenso  contrabando e prendera os infratores, desta forma: "Fuzile todos". 
O homem estava louco e morreu pouco depois. A secção elegante de um jornal de lá, o Diário Mercantil -- "De Cócoras" -- fez-lhe o necrológio; o novo ministro, entretanto, não pagou, ao redator dela, nada pelo serviço assombroso que prestar às letras do país.

II
A nobreza de Bruzundanga 

UM leitor curioso e simpático, por ser curioso, escreveu-me uma amável cartinha, pedindo-me esclarecimentos sobre os usos, os costumes, as instituições civis sociais e políticas da República dos Estados Unidos da
Bruzundanga.  Diz-me ele que procurou informações de tal país em compêndios de
geografia, em dicionários da mesma disciplina e várias obras, nada encontrando a respeito.
O meu simpático leitor não me disse que obras consultou, mas certamente ele não procurou informações nos livros que o governo da Bruzundanga manda imprimir, dando fabulosos lucros aos impressores e edito-
res, livros escritos em várias línguas e destinados a fazer a propaganda do país no estrangeiro.
É estranho; pois que, por meio de tais livros, muita gente tem feito fortuna e adquirido notoriedade nos corredores das Secretarias e nos desvãos do Tesouro da República da Bruzundanga.
Pode ter acontecido, entretanto, que o meu leitor amigo os tivesse procurado nas livrarias principais; mas não é aí que eles podem ser encontrados.
As obras que a república manda editar para a propaganda de suas riquezas e excelências, logo que são impressas completamente, distribuem-se a mancheias por quem as queira. Todos as aceitam e logo passam adiante, por meio de venda. Não julgue o meu correspondente que os "sebos" as aceitem. São tão mofinas, tão escandalosamente mentirosas, tão infladas de um otimismo de encomenda que ninguém as compra, por sabê-las falsas e destituídas de toda e qualquer honestidade informativa, de forma a não oferecer nenhum lucro aos revendedores de livros, por falta de compradores.

Onde o meu leitor poderá encontrá-las, se quer ter informações mais ou menos transbordantes de entusiasmo pago, é nas lojas de merceeiros, nos açougues, nas quitandas, assim mesmo em fragmentos, pois todos as
pedem nas repartições públicas para vendê-las a peso aos retalhistas de carne verde, aos vendeiros e aos vendedores de couves.  Contudo, a fim de que o meu delicado missivista não fique fazendo
mau juízo a meu respeito, vou dar-lhe algumas informações sobre o poderoso e rico país da Bruzundanga.
Hoje lhe falarei das nobrezas da grande Nação; proximamente, em  artigos sucessivos, tratarei de outras instituições e costumes.  A nobreza da Bruzundanga se divide em dois grandes ramos. Tal qual mente como na França de outros tempos, em que havia a nobreza de Toga e a de Espada, na Bruzundanga existe a nobreza doutoral e uma outra que, por falta de nome mais adequado, eu chamarei de palpite. A aristocracia doutoral é constituída pelos cidadãos formados nas escolas, chamadas superiores, que são as de medicina, as de direito e as de engenharia. Há de parecer que não existe aí nenhuma nobreza; que os cidadãos que obtêm títulos em tais escolas vão exercer uma profissão como outra qualquer. É um engano. Em outro qualquer país, isto pode se dar; na Bruzundanga, não.
Lá, o cidadão que se asma de um título em uma das escolas citadas,  obtém privilégios especiais, alguns constantes das leis e outros consignados nos costumes. O povo mesmo aceita esse estado de cousas e tem
um respeito religioso pela sua nobreza de doutores. Uma pessoa da plebe  nunca dirá que essa espécie de brâmane tem carta, diploma; dirá: tem pergaminho. Entretanto, o tal pergaminho é de um medíocre papel de
Holanda.
As moças ricas não podem compreender o casamento senão com o doutor; e as pobres, quando alcançam um matrimônio dessa natureza, enchem de orgulho a família toda, os colaterais, e os afins. Não é raro ouvir
alguém dizer com todo o orgulho:
-- Minha prima está casada com o doutor Bacabau.
Ele se julga também um pouco doutor. Joana d'Arc não enobreceu os parentes?
A formatura é dispendiosa e demorada, de modo que os pobres, inteiramente pobres, isto é, sem fortuna e relações, poucas vezes podem alcança-la.
Cousa curiosa! O que mete medo aos candidatos à nobreza doutoral, não são os exames da escola superior; são os exames preliminares, aqueles das matrículas que constituem o nosso curso secundário...
Em geral, apesar de serem lentos e demorados, os cursos são medíocres e não constituem para os aspirantes senão uma vigília de armas para serem armados cavaleiros.
O título -- doutor -- anteposto ao nome, tem na Bruzundanga o efeito do -- dom -- em terra de Espanha. Mesmo no Exército, ele soa em todo o seu prestígio nobiliárquico. Quando se está em face de um coronel
com o curso de engenharia, o modo de tratá-lo é matéria para atrapalhações protocolares. Se só se o chama tout court -- doutor Kamisão --, ele ficará zangado porque é coronel; se se o designa unicamente por coronel,
ele julgará que o seu interlocutor não tem em grande consideração o
seu título universitário-militar.

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