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segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Os Bruzundangas - Lima Barreto [parte 10]

Os prudentes, quando se dirigem a tais pessoas, juntam os dois títulos, mas há ainda aí uma dificuldade na precedência deles, isto é, se se devem designar tais senhores por -- doutor coronel -- ou -- coronel doutor.
Está aí um problema que deve merecer acurado estudo do nosso sábio Mayrinck. Se o nosso grande especialista em cousas protocolares resolver o problema, muito ganhará a fama da inteligência brasileira.
Quanto aos costumes, é isto que se observa em relação à nobreza doutoral. Temos, agora, que ver no tocante às leis. 
O nobre doutor tem prisão especial, mesmo em se tratando dos mais repugnantes crimes. Ele não pode ser preso como qualquer do povo. Os regulamentos rezam isto, apesar da Constituição, etc., etc.
Tendo crescido imensamente o número de doutores, eles, os seus pais, sogros, etc., trataram de reservar o maior número de lugares do Estado para eles. Capciosamente, os regulamentos da Bruzundanga vão conseguindo esse desideratum.
Assim, é que os simples lugares de alcaides de polícia, equivalentes aos nossos delegados, cargos que exigem o conhecimento de simples rudimentos de direito, mas muito tirocínio e hábito de lidar com malfeitores, só
podem ser exercidos por advogados, nomeados temporariamente. A Constituição da Bruzundanga proíbe as acumulações remuneradas, mas as leis ordinárias acharam meios e modos de permitir que os doutores
acumulassem. São cargos técnicos que exigem aptidões especiais, dizem. A Constituição não fez exceção, mas os doutores hermeneutas acharam uma.
Há médicos que são ao mesmo tempo clínicos do Hospital dos Indigentes, lentes da Faculdade de Medicina e inspetores dos telégrafos; há, na Bruzundanga, engenheiros que são a um só tempo professores de grego
no Ginásio Secundário do Estado, professores de oboé, no Conservatório de Música, e peritos louvados e vitalícios dos escombros de incêndios. Quando lá estive, conheci um bacharel em direito que era consultor
jurídico da principal estrada de ferro pertencente ao governo, inspetor dos serviços metalúrgicos do Estado e examinador das candidatas a irmãs de caridade.

Como veem, eles exercem conjuntamente cargos bem técnicos e atinentes aos seus diplomas.  Um empregado público qualquer que não seja graduado, não pode ser eleito deputado; mas a mesma lei eleitoral faz exceção para aqueles funcionários que exercem cargos de natureza técnica, isto é, doutores. Já vimos
que espécie de técnica é a tal tão estimada na Bruzundanga. Convém, entretanto, contar um fato elucidativo. Um doutor de lá que era até lente da Escola dos Engenheiros, apesar de ter outros empregos rendosos, quis
ser inspetor da carteira cambial do banco da Bruzundanga. Conseguiu e, ao dia seguinte de sua nomeação, quando se tratou de afixar a taxa do câmbio, vendo que, na véspera havia sido de 15 3/16, o sábio doutor mandou que o fizesse no valor de 15 3/32. Um empregado objetou:
-- Vossa Excelência quer fazer descer o câmbio?
-- Como descer? Faça o que estou mandando! Sou doutor em matemática.
E a cousa foi feita, mas o sábio deixou o lugar, para estudar aritmética.
Continuemos a citar fatos para que esta narração tenha o maior cunho  de verdade, apesar de que muita coisa possa parecer absurda aos leitores.
Certo dia li nos atos oficiais do Ministério de Transportes e Comunicações daquele país, o seguinte:
"F., amanuense dos Correios da província dos Cocos, pedindo fazer  constar de seus assentamentos o seu título de doutor em medicina. --
Deferido".
O pedido e o despacho dispensam qualquer comentário; e, por eles, todos podem aquilatar até que ponto chegou, na Bruzundanga, a superstição doutoral. Um amanuense que se quer recomendar por ser médico, é fato  que só se vê no interessante país da Bruzundanga.
Outros casos eloquentemente comprobativos do que venho expondo,  posso ainda citar.
Vejamos.
Há pouco tempo, no Conselho Municipal daquele longínquo país, votou-se um orçamento, dobrando e triplicando todos os impostos. Sabem os que ele diminuiu? Os impostos sobre os médicos e advogados. Ainda
mais.
Quando se tratou de organizar uma espécie de serviço militar obrigatório, o governo da Bruzundanga, não podendo isentar totalmente os aspirantes a doutor, consentiu que eles não residissem e comessem nos quartéis, no intuito piedoso de não lhes interromper os estudos. Entretanto, um caixeiro que fosse sorteado perderia o emprego, como todo e qualquer empregado de casa particular.
Há nessa nobreza doutoral uma hierarquia como em todas as aristocracias. O mandarinato chinês, ao qual muito se assemelha essa nobreza da Bruzundanga, tem os seus mandarins botões de safira, de topázio, de rubi,
etc. No país em questão, eles não se distinguem por botões, mas pelos  anéis. No intuito de não fatigar os leitores, vou dar-lhes um quadro sintético de tal nobreza da Bruzundanga com a sua respectiva hierarquia colocada em ordem descendente. Guardem-no bem. Ei-lo, com as pedras dos  anéis:
Médicos (Esmeralda)
Advogados (Rubi)
Engenheiros (Safira)
Engenheiros militares (Turqueza)
Doutores
Engenheiros geógrafos (Safira e certos sinais no arco do anel)
Farmacêutico (Topázio)
Dentista (Granada)
Em linhas gerais, são estas as características mais notáveis da nobreza doutoral da Bruzundanga. Podia acrescentar outras, sobre todos os seus graus. Lembrarei, porém, ao meu correspondente que os três primeiros graus são mais ou menos equivalentes; mas os três últimos gozam de um abatimento de 50% sobre o conceito que se faz dos primeiros.

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