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sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Os Bruzundangas - Lima Barreto [parte 8]

O elogio que o tal senhor fez aos ademanes do doutor Karpatoso tinha origem no boato a correr de que, muito em breve, ele seria indicado para ministro da Fazenda, e o tal redator da secção -- "De Cócoras" --
tinha sempre em mira descobrir os ministros futuros, para ulteriores serviços de sua profissão e recompensas consequentes.                                                                                                                                                                             Mikel de Bouillon é que ficou aborrecido com a cousa; mas como tinha certeza de sair, pelo menos, vice-presidente da Bruzundanga, abafou o azedume, encerou bem os bigodes e continuou a pisar os passeios das ruas centrais da capital, com uma estudada solenidade -- lento, erecto como um soba africano que tivesse envergado um fardão de oficial de marinha e se coberto com o respectivo chapéu armado, encontrados nos salvados de um naufrágio, em uma praia deserta. Via-se bem que Turenne Calmon era daqueles que se satisfazem em ser o segundo em Roma, e  que segundo!
Desde que se rosnou que o doutor Karpatoso seria ministro da Fazenda do futuro quadriênio, a sua casa começou a encher-se. Kaipatoso  era casado com uma senhora da roça, muito segura das suas origens nobres; ela pertencia à família dos Kilvas, cujo armorial e pergaminhos não tinham sido outorgados por nenhum príncipe soberano. Como Napoleão que, segundo dizem, na sua sagração de imperador, pôs ele mesmo a coroa na cabeça, Dona Hengrácia Ben Manuela Kilva tinha ela mesmo  se enobrecido.
Felixhimino, como bom financeiro que era, possuía qualidades harpa gonescas de economia e poupança, de forma que se zangava muito com aquelas despesas de chá e biscoitos, que era obrigado a oferecer aos visitantes. A fim de não mexer nas economias que fazia sobre seu subsídio teve a ideia genial de fundar uma casa de herbanário, em uma espécie de Rua Larga de São Joaquim da capital da República da Bruzundanga.

Arranjou uma pessoa de confiança, que pôs à testa do negócio; e ei-lo a vender chá mineiro, alfavaca, "língua-de-vaca", cipó-chumbo, malícia-de-mulher, erva-cidreira, jurubeba, catinga-de-bode, mata-pão, erva-tostão, bicuíba, óleo de capivara, cascos de jacarés, corujas empalhadas, caramujos, sapos secos, jabutis, etc. Em breve, ficou sendo o principal fornecedor dos feiticeiros da cidade, e os lucros foram grandes, de modo que ele pôde, sem mais gravame nas suas finanças, sustentar o seu salão.
Mme. Hengrácia Ben Karpatoso, centro de conversa, não se cansava de gabar os árduos trabalhos do marido.
Certa ver, em que houvera recepção na casa do famoso deputado, quando ele já se tinha retirado para os aposentos do andar superior, a  fim de estudar não sei o que sua mulher ficou na sala de visitas a conversar com algumas amigas e alguns amigos. Alguém, a um tempo da conversa, observou:
-- Isto vai tão mal, que não sei mesmo quem nos salvará.
Mme. Hengrácia, tal e qual Mme. de Girardin, em certa ocasião, apontou o dedo para o teto e disse sacerdotalmente.
-- Ele!
Todos se entreolharam e o doutor Moscoso completou:
- Sim: Deus!
-- Não, -- observou Dona Hengrácia. -- Ele, o Felixhimino, quando for ministro da Fazenda. Ele há de sê-lo em breve.
Todos concordaram. Não se cumpriu, porém, a profecia da pitonisa
conjugal, pois o novo presidente da Bruzundanga -- Idle Bhras -- não  fez Ben Karpatoso Ministro do Tesouro.
O sábio deputado continuou, porém, na sua atividade financeira, a relatar orçamentos com saldos, mas que sempre, ao fim do exercício, se  fechavam com deficits.
Certo dia, Idle Bhras de Grafofone e Cinema mandou-o chamar a palácio e disse-lhe:
-- Karpatoso, o orçamento fecha-se sempre com deficit. Este cresce de ano para ano... Tenho que satisfazer compromissos no estrangeiro...
Espero que você me arranje um jeito de aumentarmos a receita. Você tem  estudos sobre finanças e não será difícil para você...
A isto Felixhimino respondeu com toda a segurança:
-- Não há dúvidas! Vou arranjar a cousa. Três dias após, ele tinha as idéias salvadoras: aumentava do triplo a taxa sobre o açúcar, o café, o querosene, a carne-seca, o feijão, o arroz, a farinha de mandioca, o trigo e o bacalhau; do dobro, os tecidos de algodão, os sapatos, os chapéus, os fósforos, o leite condensado, a taxa das latrinas, a água, a lenha, o carvão, o espírito de vinho; criava um imposto de 50% sobre as passagens de trens, bondes e barcas, isentando a seda, o veludo, o champagne, etc., de qualquer imposto. Calculando tudo, ele  obtinha trinta mil contos. Levou a cousa a Idle Bhrás de Grafofone e  Cinema, que gabou muito o trabalho de Ben Karpatoso:
-- Tu és um Colbert e mais ainda: és o João Ben Venanko, aquele -- não sabes? -- que foi presidente da Câmara de Guaporé, minha terra.
Ele sempre teve idéias semelhantes às tuas, mas não as aceitava, por isso nunca o município prosperou. Entretanto, era um pobre meirinho... Que financeiro!
Apresentadas as idéias de Felixhimino à Câmara, muitos deputados se insurgiram contra elas.
Um objetou:
-- Vossa Excelência quer matar de fome o povo da Bruzundanga.
-- Não há tal; mas mesmo que viessem a morrer muitos, seria até um benefício, visto que o preço da oferta é regulado pela procura e, desde que a procura diminua com a morte de muitos, o preço dos gêneros
baixará fatalmente.
Um outro observou:
-- Vossa Excelência vai obrigar o povo a andar nu.
-- Não apoiado. O vestuário deve ser uma cousa majestosa e imponente, para bem impressionar os estrangeiros que nos visitem. A seda e a lã ficarão pouco mais caras que os tecidos de algodão. Toda a gente vestir-se-á de seda ou de lã e as populações das nossas cidades terão um ar de abastança que muito favoravelmente há de impressionar os estrangeiros.
Um outro refletiu:
-- Vossa Excelência vai impedir o movimento de passageiros dentro da cidade e dentro do país.
-- Será um benefício. O barateamento das passagens só traz a desmoralização da família. Com as passagens caras, diminuirão os passeios,
os bailes, as festas, as visitas, os piqueniques, conseguintemente os encontros de namorados, a procura de casas suspeitas, etc., de forma que os adultérios e as seduções sensivelmente hão de ser mais raros.
Dessa maneira, o genial Karpatoso, êmulo do meirinho Ben Venanko, o financeiro, foi arredando uma por uma as objeções que eram feitas ao seu projeto de orçamento da receita.

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