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segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Admirável Mundo Novo - Aldous Huxley [parte 9]

CAPÍTULO TERCEIRO

Lá fora, no jardim, era a hora do recreio. Nus , sob o doce calor do sol de junho, seiscentos ou
setecentos garotos e garotas corriam nos relvados soltando gritos agudos, ou jogavam à bola, ou
estavam agachados em silêncio em grupos de dois ou três entre os arbustos floridos. As rosas
desabrochavam, dois rouxinóis davam um concerto nas ramagens, um cuco emitia sonoramente os seus
gritos dissonantes por entre as tílias. O ar era embalado sonolentamente pelo murmúrio das abelhas e
dos helicópteros.
O Diretor e os estudantes demoraram-se algum tempo a observar uma partida de bola centrífuga.
Vinte crianças estavam agrupadas em círculo à volta de uma torre de aço cromado. Uma bola lançada
ao ar de maneira a cair sobre a plataforma do alto da torre rebolava para o interior, saía num disco em
rápida rotação, era projetada através de uma ou outra das numerosas aberturas existentes no
revestimento cilíndrico e tinha de ser apanhada.
- Bizarro - comentou o Diretor enquanto se afastavam é bizarro pensar que, mesmo no tempo de
Nosso Ford, a maioria dos jogos não possuíam mais acessórios que uma ou duas bolas, com algumas
varas e talvez um pedaço de rede. Vejam a estupidez que existe em permitir às pessoas a prática de
complicados jogos que de nada servem para aumentar o consumo. É loucura. Atualmente, os
Administradores só dão a sua aprovação a um novo jogo quando possa ser demonstrado que ele exige
pelo menos tantos acessórios como o mais complicado dos existentes. - Interrompeu-se. - Eis um
encantador grupinho - dísse, apontando.
Numa escavação relvada, entre dois maciços de urzes mediterrânicas, duas crianças, um garoto de sete
anos aproximadamente e uma menina que poderia ter um ano mais, divertiam-se com toda a gravidade
e com a concentrada atenção de sábios mergulhados num trabalho de descoberta com um jogo sexual
rudimentar.

- Encantador, encantador! - repetiu sentimentalmente o D.
I. C. - Encantador - disseram polidamente os rapazes, demonstrando o seu acordo.
Mas os seus sorrisos eram um pouco protetores. Havia ainda muito pouco tempo que tinham posto de
parte os divertimentos infantis desse gênero para poderem contemplá-los agora sem uma ponta de
desprezo. «Encantador?» Mas se era apenas um par de miúdos a brincar! Miúdos, simplesmente.
- Tenho sempre a impressão... - continuou o Diretor no mesmo tom sentimental, quando foi
interrompido por vigorosos hu-hu-hu.
De uma moita vizinha saiu uma enfermeira levando pela mão um garotito que berrava enquanto
caminhava. Uma menina vinha a trás, com ar inquieto. - Que se passa? - perguntou o Diretor.
A enfermeira encolheu os ombros.
- Nada de importância - respondeu. - É simplesmente este garoto que não parece estar disposto a tomar
parte nos jogos eróticos habituais. já o tinha notado antes, uma ou duas vezes. E hoje recomeçou. Deu
início a este berreiro ...
- Garanto - interrompeu a menina, com ar inquieto - que não tinha nenhuma intenção de lhe fazer mal.
Garanto ...
- Com certeza, minha querida - disse a enfermeira num tom tranquilizador. - De maneira que -
continuou, dirigindo-se de novo ao Diretor - vou levá-lo ao assistente adjunto de psicologia.
Unicamente para saber se ele não tem nada de anormal.
- Está muito bem - disse o Diretor. - Leve-o ao assistente. Tu vais ficar aqui, minha menina -
acrescentou, enquanto a enfermeira se afastava com o petiz, sempre berrando, confiado aos seus
cuidados. - Como te chamas?
Polly Trotsky. É um nome bem bonito, não há dúvida - afirmou o Diretor. - Podes ir. Vê se encontras
outro menino para brincar contigo.
A criança fugiu, saltando entre as moitas, e desapareceu.
- Que garotinha engraçada! - disse o Diretor, seguindo-a com os olhos. Depois, virando-se para os
estudantes: - O que
lhes vou agora expor poderá parecer-lhes inacreditável. Mas também, quando se não tem o hábito da
história, os factos relativos ao passado parecem quase sempre inacreditáveis.
E revelou a espantosa verdade. Durante um enorme período antes da época de Nosso Ford, e mesmo
durante várias gerações posteriores, os jogos eróticos entre crianças tinham sido considerados como
anormais. (Ouviu-se uma gargalhada geral.) E não só anormais, como ainda positivamente imorais, e,
em consequência, tinham sido rigorosamente reprimidos.
Os rostos dos seus auditores adquiriram uma expressão de incredulidade espantada. Pois as pobres
crianças não tinham o direito de se divertir? Não podiam acreditar.
- Os próprios adolescentes - dizia o D. I. C. os adolescentes como vocês ...
- Não é possível!
- A não ser um pouco de auto-erotismo e de homossexualidade, e isso às escondidas. Absolutamente
mais nada.
- Nada?
- Na maioria dos casos, até que atingissem mais de vinte anos.
- Vinte anos? - disseram os estudantes, num barulhento coro de cepticismo.
- Vinte anos - repetiu o Diretor. - já lhes tinha dito que o iam achar isto inacreditável.
- Mas que sucedia? - perguntaram. - Quais eram os resultados?
- Eram terríveis. Uma voz profunda e sonora interpôs-se no diálogo e fê-los sobressaltar.
Voltaram-se. Próximo do pequeno grupo encontrava-se um desconhecido, um homem de altura média,
com cabelos negros,1 nariz curvo, lábios vermelhos e carnudos e olhos muito sombrios e penetrantes.
Terríveis - repetiu.
O D. I. C. estava nesse momento sentado num dos bancos de aço forrados de borracha que havia
convenientemente espalhados pelo jardim; mas, vendo o desconhecido, levantou-se de um salto e
precipitou-se para a frente, mãos estendidas, um sorriso efusivo.
Senhor Administrador! Que inesperado prazer! Meus amigos, prestem atenção! Eis o Administrador:
Sua Forderia mustafá Mond.
Nas quatro mil salas do centro os quatro mil relógios eléctricos deram simultaneamente quatro horas.
Vozes desencarnadas vibraram, saindo das campânulas dos alto-falantes.
«Descanso para a equipa principal do dia! Chamada para o trabalho da segunda equipa do dia!
Descanso para a equipa príncipal do...»
No elevador que subia para o vestiário, Henry Foster e o diretor adjunto da predestinação viraram
ostensivamente as costas a Bernard Marx, do Gabinete de Psicologia, afastando-se daquela
desagradável reputação.
O zumbido e o leve barulho das máquinas agitavam continuamente o ar encarnado do Depósito de
Embriões. As equipas podiam ir e vir, que uma face cor de lúpus substituía outra; majestosamente, até
à eternidade, os transportadores continuavam a sua marcha lenta com o seu carregamento de homens e
mulheres do futuro.
Lenina Crowne dirigiu-se apressadamente para a porta. Sua Forderia Mustafá Mond! Os olhos dos
estudantes que o cumprimentaram estavam quase fora das órbitas. Mustafá Mond! O Administrador
Residente da Europa Ocidental! Um dos dez Administradores Mundiais! Um dos dez ... E ele sentara-se
no banco com o D. I. C., ia ficar ali, sim, ficar e falar-lhes diretamente... A sabedoria ia chegar-lhes
diretamente da origem. Diretamente da boca do próprio Ford!
Duas crianças de pele tostada como camarões saíram de uma moita próxima, olharam para eles um
momento com os olhos espantados e depois voltaram para as suas brincadeiras entre a folhagem. -
Lembram-se todos - disse o Administrador com a sua voz forte e profunda -, lembram-se todos,
calculo, destas belas e inspiradas palavras de Nosso Ford: «A história é uma treta.» A história - repetiu
lentamente - é uma treta.
Agitou a mão. Dir-se-ia que, numa espanadela invisível, tinha sacudido um pouco de poeira. E a poeira
era Harappa, era Ur, na Caldeia; algumas teias de aranha, que eram Tebas e Babilônia,
Cnossos e Micenas. Uma espanadela, outra ainda... E onde estava Ulisses, onde estava job, onde
estavam Júpiter, Gautama e Jesus? Uma espanadela ... e essas manchas de antiga lama que se
chamavam Atenas e Roma, Jerusalém e o Império do Meio, tinham todas desaparecido. Uma
espanadela... O local onde existira a Itália estava vazio. Uma espanadela... Desaparecidas as Catedrais.
Uma espanadela, mais outra ... Aniquilados o Rei Lear e os Pensamentos de Pascal. Uma espanadela ...
Desaparecida a Paixão. Uma espanadela ... Morto o Requiem. Uma espanadela ... Acabada a Sinfonia.

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