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quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Admirável Mundo Novo - Aldous Huxley [parte 8]

(risadinha) do pequeno Reuben, essa conferência foi, é claro, perfeitamente incompreensível, e,
imaginando que o filho tinha endoidecido subitamente, chamaram um médico. Este, felizmente,
sabendo inglês, reconheceu o discurso como sendo aquele que Shaw tinha feito pela T. S. F. Dando-se
conta da importância do acontecimento, escreveu a esse respeito uma carta à imprensa médica.
- O princípio do ensino durante o sono, ou hipnopedia, tinha sido descoberto. - O D. I. C. fez uma
impressionante pausa. - O princípio tinha sido descoberto, mas deviam passar ainda muitos anos antes
que esse princípio tivesse aplicações úteis.
O caso do pequeno Reuben produziu-se apenas vinte e três anos depois do lançamento do primeiro
modelo T de Nosso Ford.
Nessa altura o Diretor fez um sinal de T à altura do estômago, no que foi imitado reverentemente por
todos os estudantes. - E no entanto...
Furiosamente, os estudantes rabiscaram: «A hipnopedia, primeiro emprego oficial no ano 214 de N. F.
Porque não mais cedo? Duas razões: a) ... »
- Esses primeiros experimentadores - dizia o D. I. C. - estavam no mau caminho. julgavam eles que se
podia fazer da hipnopedia um instrumento de educação intelectual.
Um rapazinho adormecido sobre o lado direito, o braço fora da cama, a mão pendendo molemente.
Saindo de uma abertura redonda e gradeada na face de uma caixa, uma voz fala docemente:
"O Nilo é o rio mais comprido da África e, em comprimento, o segundo de todos os rios do mundo. Se
bem que não atinja o comprimento do Mississípi-Missuri, o Nilo vem à cabeça de todos os rios pela
importância da sua bacia, que se estende por trinta e cinco graus de latitude ... »


Ao pequeno almoço da manhã seguinte alguém perguntou:
- Tommy, sabes qual é o maior rio da África? Sinais negativos de cabeça.
- Mas não te lembras de alguma coisa que começa assim: "O Nilo é o...?»
- O-Nilo-é-o- rio- mais- comprido - da - África - e - em
- comprimento - o - segundo - de - todos - os - rios - do - mundo... - As palavras saem
precipitadamente. - Se - bem - que não - atinja...
- Ora aí está! Diz-me agora qual é o mais comprido rio da África.
Os olhos estão vagos.
- Não sei.
- Mas é o Nilo, Tommy!
- O - Nilo - é - o rio - mais - comprido - da - África - e - em comprimento...
- Então qual é o rio mais comprido, Tommy? Tommy desfaz-se em lágrimas.
- Não sei - choraminga. Foi essa choraminguice, explicou-lhes claramente o Diretor, que desencorajou
os primeiros pesquisadores. As experiências foram abandonadas. Não se fizeram mais tentativas para
ensinar às crianças o comprimento do Nilo durante o sono. E muito judiciosamente. Não se pode
ensinar uma ciência a não ser que se saiba pertinentemente do que se trata.
- Ao passo que, se tivessem somente começado pela educação moral... - disse o Diretor, conduzindo o
grupo em direção à porta. Os estudantes rabiscavam desesperadamente enquanto caminhavam e
durante todo o trajeto no ascensor. -. A educação moral não deve, em circunstância alguma, ser
racional.
«Silêncio, silêncio», murmurou um alto-falante quando saíram do ascensor no décimo quarto andar.
«Silêncio, silêncio», repetiam infatigavelmente as campânulas dos aparelhos, a intervalos regulares, ao
longo de cada corredor. Os estudantes, e até o próprio Diretor, começaram automaticamente a
caminhar nas pontas dos pés. Eram Alfas, evidentemente, mas até mesmo os Alfas eram bem
condicionados. «Silêncio, silêncio.» Toda a atmosfera do décimo quarto andar vibrava de imperativos
categóricos.
Cinquenta metros de percurso na ponta dos pés conduziram-nos a uma porta que o Diretor abriu com
precaução.
Transpuseram a entrada e penetraram na penumbra de um dormitório com as persianas corridas.
Oitenta pequeninas camas se alinhavam ao longo da parede. Havia um ligeiro e regular ruído de
respiração e um murmúrio contínuo, como vozes muito baixas e longínquas.
Uma enfermeira levantou-se quando entraram e perfilou-se em frente do Doutor.
- Qual é a lição desta tarde? - perguntou.
- Demos Sexo Elementar durante os primeiros quarenta minutos - respondeu ela. - Mas agora o
aparelho foi regulado para o curso elementar de Noção das Classes Sociais.
O Diretor percorreu lentamente a longa fila de caminhas. Rosados e distendidos pelo sono, oitenta
garotinhos e garotinhas estavam deitados, respirando docemente. Saía um murmúrio de cada
travesseiro. O D. I. C. parou e, inclinando-se sobre uma das caminhas, escutou atentamente.
- Curso elementar de Noção das Classes Sociais, não foi o que disse? Repita-o um pouco mais alto pelo
alto-falante.
Na extremidade da sala sobressaía na parede um alto-falante. O Diretor dirigiu-se para ele e carregou
num interruptor.
«... estão todos vestidos de verde - disse uma voz doce, mas clara, começando no meio de uma frase - e
as crianças Deltas estão vestidas de caqui. Oh, não, não quero brincar com as crianças Deltas. E os
Epsilões são ainda piores. São tão estúpidos que nem sabem ler ou escrever. E, além disso, estão
vestidos de negro, que é uma cor ignóbil. Como estou contente por ser um Beta.»
Houve uma pausa. Depois a voz recomeçou: «As crianças Alfas estão vestidas de cinzento. Elas
trabalham muito mais que nós, porque são formidavelmente inteligentes. De facto, estou muito
contente por ser um Beta, pois não trabalho tanto. E, depois, somos muito superiores aos Gamas e aos
Deltas. Os Gamas são patetas. Estão todos vestidos de verde e as crianças Deltas estão vestidas de
caqui. Oh, não, não quero brincar com as crianças Deltas. E os Epsilões são ainda piores. São tão
estúpidos que nem sabem...»
O Diretor pôs o interruptor na posição primitiva. A voz calou-se. Apenas o seu longínquo fantasma
continuou a murmurar debaixo dos oitenta travesseiros.
- Ouvirão isto repetido ainda quarenta ou cinquenta vezes antes de acordar; depois novamente na
quinta-feira; e igualmente no sábado. Cento e vinte vezes, três vezes por semana, durante trinta meses.
Em seguida passarão a uma lição mais avançada. - Rosas e descargas eléctricas, o caqui dos Deltas e
um cheiro a assa-fétida, ligados indissoluvelmente antes que a criança saiba falar. Mas o
condicionamento que não é acompanhado por palavras é grosseiro e inteiriço. Incapaz de fazer
conhecer as distinções mais delicadas, de inculcar as mais complexas formas de conduta. Para isso são
necessárias palavras, mas palavras sem nexo. Enfim, a hipnopedia, a maior força moralizadora e
socializadora de todos os tempos.
Os estudantes garatujaram isto nos seus cadernos. O conhecimento colhido diretamente na sua
origem.
O Diretor carregou novamente no interruptor. «... São formidavelmente inteligentes», dizia a voz
doce, insinuante, infatigável. «De facto, estou muito contente por ser um Beta, pois ... »
Não exatamente como gotas de água, se bem que a água seja capaz de, lentamente, perfurar o mais
duro granito, antes como gotas de lacre líquido, gotas que aderem, se incrustam, se incorporam a tudo
em que caem, até que, finalmente, a rocha nada mais seja que uma única massa escarlate.
- Até que o espírito da criança seja essas coisas sugeridas e que a soma dessas coisas sugeridas seja o
espírito da criança. E não apenas o espírito da criança, mas igualmente o espírito do adulto, e para toda
a vida. O espírito que julga, deseja e decide, constituído por essas coisas sugeridas. Mas todas essas
coisas sugeridas são aquelas que nós sugerimos, nós! - Com o entusiasmo, o Diretor quase gritou. -
Que o Estado sugere. - Deu um murro sobre a mesa mais próxima. - Disto resulta, por consequência...
Um ruído fê-lo voltar-se.
- Oh, Ford! - disse, noutro tom. - Então não acordei as crianças!?

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