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quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Os Bruzundangas - Lima Barreto [parte 5]

Havia mais belezas de igual quilate e outras originalidades. Não
obstante, quando apareceu, foi um louco sucesso de riso muito parecido
com o do Tremor de terra de Lisboa, aquela célebre tragédia do cabeleireiro André, a quem Voltaire invejou e escreveu, entretanto, ao receber-lhe a obra, que continuasse a fazer sempre cabeleiras -- "toujours des
perruques", Senhor André.
Chalat afrontou a crítica e não podendo defender-se com os clássicos
franceses, apelou para a poesia em língua samoieda, que conhecia um pouco
por ter sido marinheiro de um baleeiro que naufragou nas proximidades
da terra desses lapões, entre os quais passou alguns meses. Não desconhecia
o livro do Senhor Switbilter, como tive ocasião de verificar nos fragmentos
de um seu tratado poético, citado na tradução da obra de um seu discípulo
basco por onde os "samoiedas" da Bruzundanga estudaram a escola que
verdadeiramente Chalat ou Chamat fundara.
O seu desafio à crítica, escudado na poética e estética das margens do
glacial Ártico, trouxe-lhe logo uma certa notoriedade e discípulos. 

Estes vieram muito naturalmente, pois, dada a indigência mental daquela espécie de esquimós, a sua pobreza de impressões e sensações, a sua
incapacidade para as idéias gerais, os hinos, os cânticos, os rondós dos
mesmos, citados pelo medicastro, facilitavam muito o ofício de fazer verso,
desde que se tivesse paciência; e a facilidade seduziu muitos dos seus patrícios e determinou a admiração dos bardos bruzundanguenses.
Os discípulos de Chalat ou Chamat tiraram da sua obra regras infalíveis para fazer poetas e poesias e um certo até aplicou a teoria dos erros
à sua arte poética.
A instrução do grosso dos menestréis bruzundanguenses não permitia
esse apelo à matemática; e contentaram-se com umas regras simples que
tinham na ponta da língua, como as beatas as rezas que não lhes passam
pelo coração, e outros desenvolvimentos teóricos.
Era pois essa poética e essa estética que dominavam entre os literatos
da Bruzundanga; era assim como o seu dogma de arte donde se originavam
as suas fórmulas litúrgicas, o seu ritual, os seus esconjuros, enfim, o seu
culto à tal harmonia imitava, que tanto prezava Chalat.
Além desta deusa, havia outras divindades: o ritmo, o estilo, a nobreza
das palavras, a aristocracia dos assuntos e dos personagens, quando faziam
romances, contos ou drama e a medição dos versos que exigiam fosse feita
como se se tratasse da base de uma triangulação geodésica. Ninguém, no
entanto, podia sacar-lhes da cabeça uma concepção geral e larga de arte ou
obter o motivo deles conceberem separados da obra d'arte, esses acessórios,
transformando-os em puros manipansos, fetiches, isolando-os, fazendo-os
perder a sua função natural que supõe sempre a obra literária como fim.
É ela, a sua concepção, a ideia anterior que a domina e o seu destino
necessário, que unicamente regulam o emprego deles, graduam o seu uso,
a sua necessidade, e como que ela mesma os dita.
Todos os samoiedas limitavam-se quando se tratava dos tais assuntos,
a falar muito de um modo confuso, esotericamente, em forma e fundo,
com trejeitos de feiticeiros tribais.
Não nego que houvesse entre eles alguns de valor, mas os preconceitos da escola os matava.
A maioria ia para ela, porque era cômoda no fundo, pois não pedia
se comunicasse qualquer emoção, qualquer pensamento, qualquer impor-
tante revelação de nossa alma que interessasse outras almas; que se dissesse
usando dos processos artísticos, novos ou velhos, de um pouco do universal
que há em nós, alguma cousa do mistério do universo que o nosso espírito
tivesse percebido e determinasse transmiti-la; enfim um julgamento, um
conceito que pudesse influir no uso da vida, na nossa conduta e no problema
do nosso destino, empregando os fatos simples, elementares, as imagens e
os sons que por si sós não exprimiriam a ideia que se procura, mas que se
acha com eles e se vai além por meio deles.
Isto de Hegel, de Taine, de Brunetière não era com os samoiedas; a
questão deles era encontrar uma espécie de tabuada que lhes fizesse multiplicar a versalhada. Como as tais regras poéticas do suposto príncipe eram
bem acessíveis à sua paciência de correcionais, adotaram-nas como artigos
de fé, exageraram-nas até ao absurdo.
Convinham elas por ir ao encontro da sua falta de uma larga inteligência do mundo e do homem e facilitar-lhes uma crítica terra-à-terra de
seminaristas mnemônicos.
Para mais perfeito ensinamento dos leitores vou-lhes repetir um trecho
de conversa que ouvi entre três dos tais poetas da Bruzundanga, adeptos
extremados da Escola Samoieda.
Quando cheguei, eles já estavam sentados em torno da mesa do café.
Acabava eu de assistir uma aula de geologia na Faculdade de Ciências do
país; o meu espírito vinha cheio de silhuetas de monstros de outras épocas
geológicas. Eram ictiossauros, megatérios, mamutes; era do sinistro pterodáctilo que eu me lembrava; e não sei por que, quando deparei os três
poetas samoiedas, me deu vontade de entrar no botequim e tomar parte
na conversa deles.
A Bruzundanga, como sabem, fica nas zonas tropical e subtropical,
mas a estética da escola pedia que eles se vestissem com peles de urso, de
renas, de martas e raposas árticas.
É um vestuário barato para os samoiedas autênticos, mas caríssimo
para os seus parentes literários dos trópicos.

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