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quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Os Bruzundangas - Lima Barreto [parte 4]

O  príncipe chamava-se Tuque-Tuque Fit-Fit e o seu poema Parikáithont
Vakochan, o que quer dizer no nosso calão -- O silêncio das renas no
campo de gelo.
Tuque-Tuque Fit-Fit era descrito pelos "samoiedas" da Bruzundanga
como sendo uma beleza sem par e triunfal entre as deidades daquelas regiões
árticas.
Tudo isto era fantástico, mas graças à credulidade dos sábios do país,
só um ou outro desalmado tinha a coragem de contestar tais lendas.
Como todos nós sabemos, a raça samoieda é de estatura baixa, pouco
menos que a dos lapões, cabelos longos, duros e negros de jade, vivendo da
carne de renas, de urso branco, quando a felicidade lhe fornece um. Tais
homens andam em trenós e fazem kayacs de peles de renas ou focas que
eles empregam para capturar estas últimas.
As suas concepções religiosas são reduzidas, e os seus ídolos, manipansos hediondos, tocos de pau besuntados de pinturas incoerentes. Vestem-se, os samoiedas, com peles de renas e outros animais hiperbóreos.
Entretanto, na opinião dos poetas daquela república, que dizem seguir
as teorias da literatura do Oceano Ártico, não são os samoiedas assim, como
o contam os mais autorizados viajantes; mas sim os mais belos espécimes
da raça humana, possuindo uma civilização digna da Grécia antiga. 

Esta Grécia serve para tudo, especialmente na Bruzundanga...
Em geral, os vates bruzundanguenses adeptos da tal escola samoieda,
como os senhores vêem, não primam pela ilustração; e, quando se conteste
no tocante à beleza de tais esquimós, respondem categoricamente que a devem ter extraordinária, pois quanto mais fria é a região, mais belos são
os tipos, mais altos, mais louros, e os samoiedas vivem em zona frigidíssima.
Não há como discutir com eles, porque todos se guiam por ideias
feitas, receitas de julgamentos e nunca se aventuram a examinar por si
qualquer questão, preferindo resolvê-las por generalizações quase sempre
recebidas de segunda ou terceira mão, diluídas e desfiguradas pelas sucessivas passagens de uma cabeça para outra cabeça.
Atribuem, sem base alguma, a esse tal Tuque-Tuque a fundação da
escola, apesar de nunca lhe terem lido as poesias nem a sua arte poética.
Sempre procurei saber por que se enfeitavam com esse exótico avoengo; as razões psicológicas, eu as encontrei na vaidade deles, no seu desejo
de disfarçar a sua inópia poética com um padrinho esquisito e misterioso;
mas o núcleo da lenda, o grãozinho de areia em torno do qual se concretizava o mito ártico da escola, só ultimamente pude encontrar.
Consegui descobrir entre os livros de um inglês meu amigo, Senhor
Parsons, um volume do Senhor H. T. Switbilter, de Bristol (Inglaterra) --
Literature of the Stingy Peoples; e encontrei nele alguns versos samoiedas.
São anônimos, mas o estudioso de Bristol declara que os recolheu da boca
de um certo Tuck-Tuck, samoieda de nação, que ele conheceu em 1867,
quando foi encarregado pela Sociedade Paleontológica de Bristol de descobrir na embocadura dos grandes rios da Sibéria monstros antediluvianos
conservados no gelo, como escaparam de encontrar, quase intactos, o naturalista Pallas, nos fins do século XVIII, e o viajante Adams, em 1806. A
história do tal príncipe Tuque-Tuque alimentar-se de carne de elefantes
fósseis, parece ter origem no fato bem sabido de terem os cães devorado
as carnes do mamute, cujo esqueleto Adams trouxe para o museu de São
Petersburgo; e o príncipe já sabemos quem é.
O Senhor Switbilter pouco acrescenta a algumas poesias que publica; e
as que estão no volume, traduzidas, são por demais monstruosas, sempre
com um mesmo pensamento denunciando uma concepção estreita da vida e
do universo, muito explicável em bárbaros glaciais.
O viajante inglês que conhece o samoieda, entretanto, diz aqui e ali,
que elas são enfáticas, sem quantidade de sentimento ou um acento musical
agradável e individual, descaindo quase sempre para a melopéia ou o
"tantã" ignaro, quando não alternam uma cousa e outra.
Mas não foi no livro do Senhor Switbilter que os augustos poetas da
Bruzundanga foram encontrar as bases da sua escola. Eles não conhecem
esse autor, pois nunca os vi citá-lo.
Eles, os "samoiedas" da Bruzundanga, encontraram o mestre nos
escritos de um tal Chamat ou Chalat, um aventureiro francês que parece
ter estado no país daquela gente ártica, aprendido um pouco da língua
dela e se servido do livro do viajante inglês para defender uma poética
que lhe viera à cabeça.
Esse Chamat ou Chalat, Flaubert, quando esteve no Egito, encontrou-o
por lá, como médico do exército quedival; e ele se ocupava nos ócios de
sua provável mendicância em rimar uma tragédia clássica, Abdelcáder, em
cinco atos, onde havia um célebre verso de que o grande romancista nunca
se esqueceu. É, o seguinte :
"C'est de Id par Allah! qu' Abd-Allah s'en alla".
O esculápio do Cairo insistia muito nele e esforçava-se por demonstrar
que, com semelhante "harmonia imitativa" como os antigos chamavam,
obtinha traduzir, em verso, o sonido do galope de cavalo.

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