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quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Os Bruzundangas - Lima Barreto [parte 3]

"Senhor, o nosso tempo é de grandes reformas; estejamos com ele:
reformemos!"
A cerimônia mal conteve, nos circunstantes, o entusiasmo com
que esse final foi recebido.
O auditório delirou. As palmas estrugiram; e, dentro do grande
salão iluminado, pareceu-lhe que recebia as palmas da Terra toda.
O carro continuava a voar. As luzes da rua extensa apareciam
como um só traço de fogo; depois sumiram-se.
O veículo agora corria vertiginosamente dentro de uma névoa
fosforescente. Era em vão que seus augustos olhos se abriam desmedidamente; não havia contornos, formas, onde eles pousassem.
Consultou o relógio. Estava parado? Não; mas marcava a mesma
hora, o mesmo minuto da sua saída da festa.
-- Cocheiro, onde vamos?
Quis arriar as vidraças. Não pôde; queimavam.
Redobrou os esforços, conseguindo arriar as da frente,
Gritou ao cocheiro:
-- Onde vamos? Miserável, onde me levas? 

Apesar de ter o carro algumas vidraças arriadas, no seu interior
fazia um calor de forja. Quando lhe veio esta imagem, apalpou bem,
no peito, as grã-cruzes magníficas. Graças a Deus, ainda não se haviam
derretido. O Leão da Birmânia, o Dragão da China, o Lingão da Índia
estavam ali, entre todas as outras, intactas.
-- Cocheiro, onde me levas?
Não era o mesmo cocheiro, não era o seu. Aquele homem de
nariz adunco, queixo longo com uma barbicha, não era o seu fiel
Manuel!
-- Canalha, pára, pára, senão caro me pagarás!
O carro voava e o ministro continuava a vociferar:
-- Miserável! Traidor! Pára! Pára!
Em uma dessas vezes voltou-se o cocheiro; mas a escuridão que se
ia, aos poucos fazendo quase perfeita, só lhe permitiu ver os olhos do
guia da carruagem, a brilhar de um brilho brejeiro, metálico e cortante. Pareceu-lhe que estava a rir-se.
O calor aumentava. Pelos cantos o carro chispava. Não podendo
suportar o calor, despiu-se. Tirou a agaloada casaca, depois o espadim,
o colete, as calças...
Sufocado, estonteado, parecia-lhe que continuava com vida, mas
que suas pernas e seus braços, seu tronco e sua cabeça dançavam,
separados.
Desmaiou; e, ao recuperar os sentidos, viu-se vestido com uma
reles "libré" e uma grotesca cartola, cochilando à porta do palácio
em que estivera ainda há pouco e de onde, saíra triunfalmente, não
havia minutos.
Nas proximidades um coupé estacionava.
Quis verificar bem as coisas circundantes; mas não houve tempo.
Pelas escadas de mármore, gravemente, solenemente, um homem
(pareceu-lhe isso) descia os degraus, envolvido no fardão que despira,
tendo no peito as mesmas magníficas grã-cruzes...
Logo que o personagem pisou na soleira, de um só ímpeto
aproximou-se e, abjectamente, como se até ali não tivesse feito outra
coisa, indagou:
-- Vossa Excelência quer o carro?
Como esta há, na Bruzundanga, muitas outras "histórias" que correm
de boca em boca e se transmitem de pai a filho.
Os literatos, propriamente, aqueles de bons vestuários e ademanes de
encomenda, não lhes dão importância, embora de todo não desprezem a
literatura oral. Ao contrário: todos eles quase não têm propriamente obras
escritas; a bagagem deles consta de conferências, poesias recitadas nas
salas, máximas pronunciadas na intimidade de amigos, discursos em batizados ou casamentos, em banquetes de figurões ou em cerimônias escolares,
cifrando-se, as mais das vezes, a sua obra escrita em uma plaquette de
fantasia de menino, coletâneas de ligeiros artigos de jornal ou num maçudo
compêndio de aula, vendidos, na nossa moeda, à razão de quinze ou vinte
mil-réis o volume.
Estes tais são até os escritores mais estimados e representativos, sobretudo quando empregam palavras obsoletas e são médicos com larga freguesia.
São eles lá, na Bruzundanga, conhecidos por "expoentes" e não há moça
rica que não queira casar com eles. Fazem-no depressa porque vivem pouco
e menos que os seus livros afortunados. Há outros aspectos. Vamos ver
um peculiar.
O que caracteriza a literatura daquele país, é uma curiosa escola literária lá conhecida por "Escola Samoieda".
Não que todo o escritor bruzundanguense pertença a semelhante rito
literário; os mais pretenciosos, porém, e os que se têm na conta de sacerdotes da Arte, se dizem graduados, diplomados nela. Digo -- "caracteriza",
porque, como os senhores verão no correr destas notas, não há na maioria
daquela gente uma profundeza de sentimento que a impila a ir ao âmago
das cousas que fingem amar, de decifrá-las pelo amor sincero em que as
têm, de querê-las totalmente, de absorvê-las. Só querem a aparência das
cousas. Quando (em geral) vão estudar medicina, não é a medicina que
eles pretendem exercer, não é curar, não é ser um grande médico, é ser
doutor; quando se fazem oficiais do exército ou da marinha, não é exercer
as obrigações atinentes a tais profissões, tanto assim que fogem de executar
o que é próprio a elas. Vão ser uma ou outra cousa, pelo brilho do
uniforme. Assim também são os literatos que simulam sê-lo para ter a glória
que as letras dão, sem querer arcar com as dores, com o esforço excepcional, que elas exigem em troca. A glória das letras só as tem, quem
a elas se dá inteiramente; nelas, como no amor, só é amado quem se esquece
de si inteiramente e se entrega com fé cega. Os samoiedas, como vamos ver,
contentam-se com as aparências literárias e a banal simulação de notoriedade, umas vezes por incapacidade de inteligência, em outras por instrução
insuficiente ou viciada, quase sempre, porém, por falta de verdadeiro talento
poético, de sinceridade, e necessidade, portanto, de disfarçar os defeitos
com pelotiquices e passes de mágica intelectuais.
Tendo convivido com alguns poetas samoiedas, pude estudar um tanto
demoradamente os princípios teóricos dessa escola e julgo estar habilitado
a lhes dar um resumo de suas regras poéticas e da sua estética.
Esses poetas da Bruzundanga, para dar uma origem altissonante e
misteriosa à sua escola, sustentam que ela nasceu do poema de um príncipe
samoieda, que viveu nas margens do Ártico, nas proximidades do Óbi ou do
Lena, na Sibéria, um original que se alimentava da carne de mamutes conservados há centenas de séculos nas geleiras daquelas regiões.
Essa espécie de alimentação do longínquo príncipe poeta dava aos
olhos de todos eles, singular prestígio aos seus versos e aos do fundador,
embora pouco eles os conhecessem.

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