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segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Os Bruzundangas - Lima Barreto [parte 1]

 PREFÁCIO

Na arte de furtar, que ultimamente tanto barulho causou entre os
eruditos, há um capítulo, o quarto, que tem como ementa esta singular afirmação: "Como os maiores ladrões são os que têm por oficio livrar-nos de
outros ladrões".
Não li o capítulo, mas abrindo ao acaso um exemplar do curioso livro,
achei verdadeira a cousa e boa para justificar a publicação destas despretensiosas "Notas".
A "Bruzundanga" fornece matéria de sobra para livrar-nos, a nós do
Brasil, de piores males, pois possui maiores e mais completos. Sua missão é,
portanto, como a dos "maiores" da Arte, livrar-nos dos outros, naturalmente menores.
Bem precisados estávamos nós disto quando temos aqui ministros de
Estado que são simples caixeiros de venda, a roubar-nos muito modestamente no peso da carne-seca, enquanto a Bruzundanga os tem que se
ocupam unicamente, no seu ofício de ministro, de encarecerem o açúcar no
mercado interno, conseguindo isto com o vendê-lo abaixo do preço da
usina aos estrangeiros. Lá, chama-se a isto prover necessidades públicas;
aqui, não sei que nome teria...

E semelhante ministro daqueles "maiores" de que a Arte nos fala,
destinados a ensinar-nos como nos livrar dos nossos modestos caixeiros de
mercearias ministeriais.
Não contente com ter dessas cousas, a Bruzundanga possui outras
muitas que desejava enumerar todas, pois todas elas são dignas de apreço
e portadoras de ensinamentos proveitosos.
Como não poderíamos aproveitar aquele caso de um doutor da Bruzundanga, ele mesmo açambarcador de cebolas, que vai para uma comissão,
nomeada para estudar as causas da carestia da vida, e propõe que se adotem
leis contra os estancadores de mercadorias?
É que este doutor dos "maiores" de que nos fala o célebre livrinho
sabia perfeitamente que não estancava e tinha o hábito de reservas mentais.
Não açambarcava, mas "aliviava" logo uma grande porção de mercadorias
para o estrangeiro, por qualquer cousa, de modo que... Le pauvre homme!
Podia até iludir o nosso pobre Peckmann!
Com este exemplo, os menores daqui poderão ser denunciados por este
grandalhão de lá, tão generoso e desinteressado, e o nosso povo poderá
livrar-se deles.
Conheci na Bruzunganga um rapaz (creio que está nas "Notas"), de
rabona de sarja e ares de familiar do Santo Ofício, mas tresandando a
Comte, senão a anticlericalismo, que, de uma hora para a outra, se fez
reitor do Asilo de Enjeitados, apandilhado com padres e frades, depois de
ter arranjado um rico casamento eclesiástico, a fim de ver se, com o apoio
da sotaina e do solidéu, se fazia ministro ou mesmo mandachuva da República. Que "maior" não acham?
E aquele que, tendo sido ministro do imperador da Bruzundanga e
seu conselheiro, se transformou em açougueiro para vender carne aos vizinhos a dez mil-réis de mel coado, graças às isenções que obteve com o
prestígio do seu nome, dos seus amigos, da sua família e das suas antigas
posições, enquanto os seus patrícios pagavam-lhe o dobro?
Quantos exemplos de lá, bem grandes, nos irão precaver contra os
pequeninos de cá... A Arte fala a verdade...
Outra cousa curiosa da Bruzunganga, das grandes, das extraordinárias,
é a sua "Defesa Nacional".
Lá, como em toda a parte, se devia entender por isso a aquisição de
armamentos, munições, equipamentos, adestramento de tropas, etc., mas os
doges do Kaphet (vide texto) entenderam que não; que era dar-lhes dinheiro,
para elevar artificialmente o preço de sua especiaria. De que modo?
Retendo o produto, proibindo-lhe a exportação desde certo limite, conquanto se houvessem tenazmente oposto a que semelhante medida fosse
tomada no que toca às utilidades indispensáveis a nossa vida: cereais,
carnes, algodão, açúcar, etc.
É preciso notar que tais utilidades, como já fiz notar, iam para o
strangeiro por metade do preço, menos até.
Aprendamos por aí a conhecer os nossos "menores".
Poderia muito bem falar de outros grossos casos de li, capazes de
nos livrar doa tais pequenos daqui; mas, para quê?
As páginas que se seguem vão rever-los e eu me dispenso de narrá-los
neste curto prefácio, Pobre terra da Bruzundanga! Velha, na sua maior parte,
como o planeta, toda a sua missão tem sido criar a vida e a fecundidade para
os outros, pois nunca os que nela nasceram, as que nela viveram, os que
a amaram e sugaram-lhe o leite, tiveram sossego sobre o seu solo!
Ainda hoje, quando o geólogo encontra nela um queixal de Magatherium ou um fêmur de Propithecus tem vontade de oferecer à Minerva
uma hecatombe de bois brancos!
Vivos, os bona são tangidos daqui para ali, corridos, vexados, se têm
grandes ideais; mortos, os seus ossos esperam que os grandes rios da Bruzunganga os levem para fecundar a terra dos outros, lá embaixo, muito
longe...
Tudo nela é caprichoso, e vário e irregular. Aqui terreno fértil, úbere;
acolá, bem perto, estéril, arenos.
Se a jusante sobra cal, falta água; se há para montante, falta cal...
As suas florestas são caprichosas também; as essências não se associam. Vivem orgulhosamente isoladas, tornando-lhes penosa a exploração.

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