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segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Os Bruzundanga - Lima Barreto ]parte 2]


Aqui, está uma espécie e outra semelhante só sé encontrará mais além,
distante...
Envelheceu, está caduca e tudo que vem para ela sofre-lhe o contágio
da sua antiguidade: caduquece!
Contudo, e talvez por isso memmo, os seus costumes e hábitos podem
servir-nos de ensinamento, pois, conforme a Arte de furtar diz: "os maiores
ladrões são os que têm por ofício livrar-nos de outros ladrões".
Por intermédio dos dela, dos dessa velha e ainda rica terra da Bruzundanga, livremo-nos dos nossos: é o escopo deste pequeno livro.
LIMA BARRETO
Todos os Santos, 2-9-17.
Capítulo especial
Os samoiedas
 

Vazios estais de Cristo, vós que vos justificais
pela lei; da graça tendes caído.
SÃO PAULO aos Gálatas

QUERIA evitar, mas me vejo obrigado a falar na literatura da Bruzundanga. E um capítulo dos mais delicados, para tratar do qual não me sinto
completamente habilitado.
Dissertar sobre uma literatura estrangeira supõe, entre muitas, o conhecimento de duas cousas primordiais : ideias gerais sobre literatura e com-
preensão fácil do idioma desse povo estrangeiro. Eu cheguei a entender
perfeitamente a língua da Bruzundanga, isto é, a língua falada pela gente
instruída e a escrita por muitos escritores que julguei excelentes; mas aquela
em que escreviam os literatos importantes, solenes, respeitados, nunca consegui entender, porque redigem eles as suas obras, ou antes, os seus livros,
em outra muito diferente da usual, outra essa que consideram como sendo
a verdadeira, a lídima, justificando isso por ter feição antiga de dous séculos
ou três.
Quanto mais incompreensível é ela, mais admirado é o escritor que a
escreve, por todos que não lhe entenderam o escrito.
Lembrei-me, porém, que as minhas noticias daquela distante república
não seriam completas, se não desse algumas informações sobre as suas
letras; e resolvi vencer a hesitação imediatamente, como agora venço.
A Bruzundanga não podia deixar de tê-las, pois todo o povo, tribo, clã,
todo o agregado humano, enfim, tem a sua literatura e o estudo dessas
literaturas muito tem contribuído para nós nos conhecermos a nós mesmos,
melhor nos compreendermos e mais perfeitamente nos ligarmos em sociedade, em humanidade, afinal.
Seria uma falha minha nada dizer eu sobre as belas-letras da Bruzundanga que as tem como todos os países, a não ser o nosso que, conforme
sentenciou a Gazeta de Notícias, não merece tê-las, pois o literato não tem
função social na nossa sociedade, provocando tal opinião o protesto de um
sociólogo inesperado. Devem estar lembrados deste episódio -- creio eu.
Continuemos, porém, na Bruzundanga.
Nela, há a literatura oral e popular de cânticos, hinos, modinhas, fábulas, etc.; mas todo esse folklore não tem sido coligido e escrito, de modo
que, dele, pouco lhes posso comunicar.
Porém, um canto popular que me foi narrado com todo o sabor da
ingenuidade e dos modismos peculiares ao povo, posso reproduzir aqui,
embora a reprodução não guarde mais aquele encanto de frase simples e
imagens familiares das anônimas narrações das coletividades humanas.
Na versão dos populares da curiosa república, o conto se intitula --
"O GENERAL E O DIABO" -- havendo uma variante sob a alcunha de
-- "O PADRE E O DIABO". Como não tivesse de cor nem as palavras da
versão mais geral, nem as da variante, aproveitei o tema, alguma cousa do
corpo da "história" e narro-a aqui, certamente muito desfigurada, sob a
crisma de:
SUA EXCELÊNCIA
O ministro saiu do baile da embaixada, embarcando logo no
carro. Desde duas horas estivera a sonhar com aquele momento, Ansiava estar só, só com o seu pensamento, pesando bem as palavras que
proferira, relembrando as atitudes e os pasmos olhares dos circunstantes. Por isso entrara no coupé depressa, sôfrego, sem mesmo reparar
se, de fato, era o seu. Vinha cegamente, tangido por sentimentos
complexos: orgulho, força, valor, vaidade.
Todo ele era um poço de certeza. Estava certo do seu valor intrínseco; estava certo das suas qualidades extraordinárias e excepcionais.
A respeitosa atitude de todos e a deferência universal que o cercava
eram nada mais, nada menos que o sinal da convicção geral de ser
ele o resumo do país, a encarnação dos seus anseios. Nele viviam os
doridos queixumes dos humildes e os espetaculosos desejos dos ricos.
As obscuras determinações das coisas, acertadamente, haviam-no erguido até ali, e mais alto levá-lo-iam, visto que só ele, ele só e unicamente, seria capaz de fazer o país chegar aos destinos que os antecedentes dele impunham...
E ele sorriu, quando essa frase lhe passou pelos olhos, totalmente
escrita em caracteres de imprensa, em um livro ou em um jornal qual-
quer, Lembrou-se do seu discurso de ainda agora:
"Na vida das sociedades, como na dos indivíduos"...
Que maravilha! Tinha algo de filosófico, de transcendente. E o
sucesso daquele trecho? Recordou-se dele por inteiro:
"Aristóteles, Bacon, Descartes, Spinosa e Spencer, como Sólon,
Justiniano, Portalis e Ihering, todos os filósofos, todos os juristas afirmam que as leis devem se basear nos costumes"...
O olhar, muito brilhante, cheio de admiração -- o olhar do leader
da oposição -- foi o mais seguro penhor do efeito da frase...
E quando terminou! Oh!

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