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quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Admirável Mundo Novo - Aldous Huxley [parte 7]

O Diretor esfregou as mãos.
- Excelente! - disse. - Mesmo feito de propósito, não poderia ser melhor.
Os gatinhadores mais rápidos tinham já atingido o seu alvo.O Pequenas mãos se estenderam, incertas,
tocando, segurando, desfolhando as rosas transfiguradas, rasgando as páginas iluminadas dos livros. O
diretor esperou que todos estivessem alegremente ocupados. Depois disse:
- Observem bem. E, levantando a mão, fez um sinal. A enfermeira-chefe, que se encontrava junto de
um quadro de comandos elétricos, no outro extremo da sala, baixou um pequeno manípulo.
Houve uma violenta explosão. Aguda, cada vez mais aguda, uma sereia apitou. Campainhas de alarme
vibraram, obsidiantes.
As crianças assustaram-se e começaram a berrar. Os seus pequenos rostos estavam contorcidos de
terror.
- E agora - gritou o Diretor (o ruído era de ensurdecer) agora passemos à operação que tem por fim
fazer penetrar a lição a fundo por meio de uma ligeira descarga elétrica.
Agitou de novo a mão e a enfermeira-chefe baixou um Segundo manípulo. Os gritos das crianças
mudaram subitamente de tom. Havia qualquer coisa de desesperado, quase de demente, nos uivos
penetrantes e espasmódicos que então lançavam. Os pequenos corpos contraíam-se e retesavam-se, os
membros agitavam-se em movimentos sacudidos, como se fossem puxados por fios invisíveis.
- Podemos fazer passar a corrente em toda esta metade do soalho - gritou o Diretor, como explicação.
- Mas isto chega - disse, fazendo um sinal à enfermeira.


As explosões cessaram, as campainhas calaram-se, o uivo da sereia amorteceu lentamente até ao
silêncio. Os corpos retesados e contraídos distenderam-se, e o que fora soluços e urros de loucos
furiosos em potência transformou-se de novo em berros normais de terror vulgar.
- Deem-lhes outra vez os livros e as flores.
As enfermeiras obedeceram. Mas à aproximação das rosas, à simples vista dessas imagens alegremente
coloridas do miau, do cocorocó e do cordeirinho preto que faz mé-mé, as crianças recuaram com
horror. Os berros aumentaram subitamente de intensidade.
- Observem - disse triunfantemente o Diretor -, observem.
Os livros e os ruídos aterradores, as flores e as Odescargas elétricas, formavam já no espírito das
crianças pares ligados de maneira comprometedora; no fim de duzentas repetições da mesma lição ou
de outra semelhante, estariam ligados indissoluvelmente. Aquilo que o homem uniu, a Natureza é
impotente para separar.
- Eles crescerão com aquilo a que os psicólogos chamam um ódio «instintivo» aos livros e às flores.
Reflexos inalteravelmente condicionados. Nada quererão com a literatura e com a botânica durante
toda a vida. - O Diretor voltou-se para as enfermeiras: - Podem levá-los.
Sempre berrando, os bebês vestidos de caqui foram postos nos seus carrinhos e levados para fora da
sala, deixando atrás de si um cheiro a leite azedo e um repousante silêncio.
Um dos estudantes levantou a mão. Se bem que compreendesse perfeitamente porque não se podia
tolerar aos indivíduos de casta inferior que gastassem o tempo da comunidade com livros e que
houvesse sempre o perigo de eles lerem qualquer
coisa que fizesse descondicionar indesejavelmente um dos seus reflexos, no entanto... enfim, não
percebia o que dizia respeito às flores. Porque perder tempo a tornar psicologicamente impossível aos
Deltas o gosto pelas flores?
Pacientemente, o D. I. C. deu explicações. Se se procedia de forma que as crianças começassem a gritar
à simples vista de uma rosa, era por razões de alta política económica. Ainda não há muito tempo (um
século aproximadamente), os Gamas, os Deltas, e até os Epsilões, tinham sido condicionados para
gostar de flores - de flores em particular e da Natureza selvagem em geral. O fim a atingir era fazer
nascer neles o desejo de ir para o campo todas as vezes que tivessem ocasião para isso e obrigá-los,
assim, a utilizar os meios de transporte.
- E eles não utilizaram os transportes? - perguntou o estudante.
- Sim, e em grande quantidade - respondeu o Diretor mas nada mais. As flores campestres e as
paisagens - observou - têm um grave defeito: são gratuitas. O amor à Natureza não fornece trabalho a
nenhuma fábrica. Foi, pois, decidido abolir o amor à Natureza, pelo menos entre as classes baixas;
abolir o amor à Natureza, mas não a tendência para utilizar transportes. Porque era essencial, é claro,
que se continuasse a ir para o campo, mesmo que se não gostasse dele. O problema consistia em
encontrar para a utilização de transportes uma justificação economicamente mais bem baseada que
uma simples afeição pelas flores campestres e pelas paisagens. Foi descoberta. Condicionamos as
massas de maneira a detestarem o campo
- disse o Diretor, como conclusão -, mas simultaneamente condicionamo-las de maneira a desejarem
todos os desportos ao ar livre. Ao mesmo tempo, fazemos o necessário para que todos os desportos ao
ar livre exijam o emprego de aparelhagem complicada. De maneira que, assim, consomem-se artigos
manufaturados e, ao mesmo tempo, utilizam-se os transportes. Essa a razão das descargas elétricas.
- Percebo - disse o estudante. E ficou silencioso, aparvalhado de admiração.
Fez-se um silêncio. Depois, pigarreando para aclarar a voz, o Diretor começou: -
- Era uma vez, quando Nosso Ford era ainda deste mundo, um rapazinho que se chamava Reuben
Rabinovitch. Reuben era filho de pais de língua polaca. - O Diretor interrompeu-se. Sabem o que é o
polaco, calculo.
- Uma língua morta.
- Como o francês e o alemão - acrescentou outro estudante, exibindo zelosamente a sua sabedoria.
- E "pais"? - perguntou o D. I. C. Houve um silêncio comprometido. Vários rapazes coraram. Não
tinham ainda aprendido a reconhecer a linha de separação, importante mas, por vezes, muito tênue, que
se interpõe entre a obscenidade e a ciência pura. Um deles, enfim, teve a coragem de erguer a mão.
- Os seres humanos, antigamente, eram... - disse, hesitante. O sangue subiu-lhe ao rosto. - Enfim, eram
vivíparos.
- Muito bem. - O Diretor aprovou com um sinal de cabeça. - E quando os bebês eram decantados ...
- Nasciam - corrigiu ele.
- E... bem, então eram os pais, quer dizer: não os bebês, é claro, os outros.
O pobre rapaz estava absolutamente atrapalhado e confuso.
- Numa palavra - resumiu o Diretor -: os pais eram o pai e a mãe. - Esta obscenidade, que era, na
realidade, ciência, caiu como uma bomba no silêncio comprometido desses rapazes, que nem sequer
ousavam entreolhar-se. - A mãe... - repetiu ele bem alto, para fazer a ciência penetrar profundamente, e
inclinando-se para trás na cadeira. - Estes fatos - disse gravemente - são bastante desagradáveis, sei-o
bem. Mas, geralmente, a maioria dos fatos históricos é desagradável.
E voltou ao pequeno Reuben, ao pequeno Reuben no quarto em que, uma tarde, por negligência, o seu
pai e a sua mãe (hum!, hum!) tinham, por acaso, deixado a funcionar o aparelho de T. S. F. «É
conveniente recordar que nesses tempos de grosseira reprodução vivípara as crianças eram sempre
criadas pelos pais, e não nos centros de condicionamento do Estado.» Enquanto o garoto dormia, o
aparelho começou subitamente a transmitir um programa radiofônico de Londres. E na manhã seguinte,
para espanto de seu ... (hum!) e de sua... (hum!) (os mais descarados arriscaram uma risadinha), o
pequeno Reuben
acordou repetindo, palavra por palavra, uma longa conferência desse curioso escritor antigo
(um dos raros cujas obras têm sido autorizadas até agora), George Bernard Shaw, que falava, segundo
uma tradição bem estabelecida, do seu próprio gênio. Para o ... (piscadela de olho) e para a ...

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