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quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Admirável Mundo Novo - Aldous Huxley [parte 14]

O riso de Lenina foi franco e totalmente isento de maldade.
- Como você é engraçado! - disse. E, muito sinceramente, achava-o engraçado. - Previna-me, pelo
menos, com oito dias de antecedência, sim? - continuou, noutro tom. - Suponho que tomaremos o
Foguete Azul do Pacífico. Parte da torre de Charing-T?(*) Ou de Hampstead?
Antes que Bernard pudesse responder, o elevador parou.
- Terraço! - gritou uma voz áspera.
O encarregado do elevador era um pequeno ser simiesco, vestido com a blusa negra de um semiaborto
Epsilão-Menos.
- Terraço! Abriu as portas de par em par. O calor triunfal do sol da tarde fê-lo sobressaltar e piscar os
olhos. «Ah, terraço», repetiu com voz satisfeita. Dir-se-ia que acabava súbita e alegremente de acordar
de um negro torpor aniquilante. «Terraço!»
Levantou os olhos, sorrindo, para os rostos dos seus passageiros, com uma espécie de adoração de cão
esperando uma carícia. Conversando e rindo entre si, saíram para o terraço. O encarregado do ascensor
seguiu-os com o olhar. - Terraço? - disse ainda uma vez em tom interrogativo.
Uma campainha soou e do teto do ascensor um alto-falante começou num tom suave mas, no entanto,
imperioso, a dar ordens.
«Descer - dizia ele. - Descer. Décimo oitavo andar. Descer.
Décimo oitavo andar. Descer, descer ... »
O encarregado do ascensor fechou as portas, carregou num botão e mergulhou imediatamente na
penumbra zunidora da gaiola, na penumbra do seu próprio torpor habitual.
No terraço havia calor e claridade. A tarde de Verão estava como que adormecida sob o zumbido dos
helicópteros que passavam; o rugido mais grave dos aviões-foguetes que passavam, invisíveis, através
do céu luminoso, nove ou dez quilômetros mais acima, parecia uma carícia no ar tépido. Bernard Marx
respirou profundamente. Ergueu os olhos para o céu, circunvagando o horizonte azul, e finalmente
mergulhou o olhar no rosto de Lenina.

- Que bela tarde, hem! - A voz tremia-lhe um pouco. Ela dirigiu-lhe um sorriso que traduzia a mais
simpática compreensão.
- Esplêndida para o golf de obstáculos - respondeu com satisfação. - E agora tenho de ir, Bernard.
Henry não gosta de que o façam esperar... Previna-me com tempo sobre a data... - E, acenando com a
mão, afastou-se correndo, atravessando o vasto terraço em direção aos hangares.
Bernard ficou parado, a contemplar as cintilações, cada vez mais distantes, das meias brancas, o
movimento das pernas tostadas caminhando com vivacidade e os meneios mais doces dos calções de
veludo curtos, bem justos, sob a blusa verde-garrafa. Tinha uma expressão dolorosa no rosto.
- Ela é bem bonita, não acha? - disse uma voz forte e alegre, precisamente atrás dele.
Bernard estremeceu e virou a cabeça. A face avermelhada e gorducha de Benito Ho over.sorria para
ele, radiante, radiante de manifesta cordialidade. Benito era notoriamente conhecido pelo seu bom
carácter. Dizia-se dele que poderia passar toda a vida sem tomar um grama de soma. A maldade, os
acessos de mau humor, aos quais os outros não podiam escapar senão por meio de fugas de
esquecimento, nunca o atingiam. A realidade, para Benito, era sempre cheia de sol.
- Muito pneumática também! - Depois continuou, noutro tom: - Mas como você está com um aspecto
abatido! Precisa de um grama de soma. - Metendo a mão na algibeira direita das calças, Benito tirou
um frasco: - Com um centicubo, curados
(*)Trocadilho com a estação londrina de Charing-Cross, referindo a substituição das cruzes por TT. (N.
do T.)
dez senti... Ora esta! Que é que ele tem? Bernard voltara-se subitamente e fugira. Benito, admirado,
seguiu-o com o olhar. «Que se passará com esta criatura?», perguntou a si mesmo. E, meneando a
cabeça, decidiu que essa história do álcool que lhe tinham posto no pseudo-sangue devia ser
verdadeira. «Deve ter-lhe atingido o@ cérebro. »
Guardou o frasco de soma e, tirando da algibeira um pacote de pastilha's elásticas de hormona sexual,
meteu uma na boca e dirigiu-se lentamente para os hangares, mastigando. Henry Foster tinha tirado o
seu aparelho do hangar. Quando Lenina chegou, estava já sentado no lugar do piloto, à espera.
- Quatro minutos de atraso - disse, à guisa de comentário, enquanto ela subia para o seu lado.
Pôs os motores em movimento e embraiou as hélices do helicóptero.
O aparelho saltou verticalmente no ar. Henry acelerou; o zumbido da hélice tornou-se mais agudo,
passando do@ ruído de um zângão para o de uma vespa, do ruído de uma vespa para o de um
mosquito. O velocímetro indicava uma subida de cerca de dois quilômetros por minuto. Londres
diminuía debaixo deles. As enormes construções de telhados planos com mesas nada mais eram, ao fim
de alguns segundos, que um grupo de cogumelos geométricos surgindo da verdura dos parques e
jardins. Entre eles, na extremidade de uma haste delgada, uma criptogâmica mais elevada, mais esguia,
a torre de Charing-T erguia para o céu um disco de betão brilhante.
Semelhantes a vagos torsos de atletas fabulosos, enormes, nuvens maciças flutuavam preguiçosamente
no ar azul por cima das suas cabeças. De uma delas saiu subitamente um pequeno inseto vermelho,
zumbindo durante a queda.
- Eis o Foguete Vermelho - disse Henry - que vem de Nova Iorque. - Olhou o relógio. - Sete minutos de
atraso acrescentou, meneando a cabeça. - Estes serviços do Atlântico ... São de uma falta de
pontualidade verdadeiramente escandalosa!
Tirou o pé do acelerador. O zumbido das hélices sobre as suas cabeças baixou uma oitava e meia,
passando, em sentido inverso, pelo ruído da vespa, do zângão, do besouro, do lucano.
A velocidade ascensional do aparelho diminuiu; pouco depois estavam suspensos e imóveis no ar.
Henry empurrou uma alavanca e ouviu-se um pequeno estalo. Primeiro lentamente, depois cada vez
mais depressa, até não ser mais que uma bruma circular em frente dos seus olhos, a hélice de propulsão
que estava à frente começou a girar. O vento da velocidade horizontal silvou ainda mais agudamente
nas varas metálicas. Henry tinha o olhar fixo no marcador de voltas; quando o ponteiro indicou
duzentas, desembraiou as hélices do helicóptero. O aparelho tinha então suficiente força horizontal
para poder voar.
Lenina olhou pela janela aberta no chão, entre os seus pés. Sobrevoavam a zona de seis quilômetros de
terreno reservado aos parques que separavam Londres-Central da sua primeira cintura de arredores
satélites. Florestas de torres de bola centrífuga brilhavam entre as árvores. Perto de Shepherd's Bush,
dois mil pares de Betas-Menos jogavam tênis, em pares-mistos, nos terrenos de Riemann. Uma dupla
fila de campos de bola escalator marginava a auto-estrada, desde Notting Hill até Willesden. No
estádio de Ealing realizava-se uma festa de ginástica e de cantos em comum para Deltas.
- Que horrível cor, o caqui - observou Lenina, exprimindo os preconceitos hipnopédicos da sua casta.
Os edifícios do Estúdio de Cinema Perceptível de Hounslow ocupavam sete hectares e meio. Próximo
deles, um exército de trabalhadores, vestidos de negro e de caqui, ocupava-se a revitrificar a superfície
da Auto-Estrada Ocidental. Abria-se o orifício de escoamento de um dos enormes cadinhos móveis no
momento em que eles o sobrevoavam. A pedra fundida espalhava-se na estrada numa vaga de
ofuscante incandescência; os rolos compressores de amianto Iam e vinham; na retaguarda de uma
pulverizadora termicamente isolada, o vapor elevava-se em
nuvens brancas.
Em Brentford, as instalações da Companhia Geral de Televisão pareciam uma pequena cidade.
- Devem estar na altura de mudar de turnos- disse Lenina. Tais como afídios e formigas, as raparigas
Gama, de verde-folha, os semiabortos, de negro, apresentavam-se em volta das entradas ou faziam
bicha para tomar lugar nos comboios monocarril. Betas-Menos cor de amora iam e vinham entre a
multidão.

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