Andreas Huyssen (professor de alemão e literatura na
Columbia University), lançou no ano 2000 a obra “Seduzidos pelas memória:
arquitetura, monumentos, mídia”. No capítulo intitulado “Passados presentes:
mídia, política, amnésia”, o autor desenvolve sua problemática partindo do
pressuposto de que a emergência da memória, caracterizada por um desejo de
volta ao passado, trata-se de um fenômeno cultural e político central nas
sociedades ocidentais, e que contrasta com a sede de futuro sentida no contexto
da modernidade no início do século XX. Huyssen (2000, p.9) explica que esse
fenômeno a que denomina passados presentes, parece ter se configurado a partir
dos anos 1980, quando se altera a percepção dos sujeitos com relação ao tempo a
partir de suas experiências de tempo, momento em que os futuros presentes (termo
criado pelo historiador Rainhart Koseleck) perdem centralidade.
Apoiando-se no conceito de tempo e espaço do geógrafo David
Harvey, o autor explica que tempo e espaço são categorias enraizadas na
percepção histórica e que a separação entre elas impossibilita o entendimento
das culturas modernas e pós-modernas na medida em que tempo e espaço são
interligados de diferentes maneiras, mais ou menos complexas, mas que suportam
a diversidade de discursos sobre a memória. O entendimento da possibilidade de
diferentes modernidades e modernidades em diferentes estágios, para o autor
(p.10) possibilitaram um novo entendimento dos processos de globalização.
Segundo Huyssen os discursos de “memória de um novo tipo”,
os quais teriam aparecido a partir da década de 1960 no contexto de
descolonização e do surgimento de movimentos sociais, foram impulsionados a
partir da década de 1980 pelo crescimento dos debates em torno do Holocausto,
principalmente nos Estados Unidos e Europa, onde eventos, discursos e uma
variedade de produtos televisivos e impressos eram produzidos apropriando-se de eventos históricos que marcaram o Holocausto, o que de
acordo com Huyssen (p.11) remexeu as “codificações da história nacional
posteriores à Segunda Guerra Mundial”.
O deslocamento da memória do Holocausto do seu lugar
original é percebido na forma como este evento foi sendo utilizado ao abordar
outros conflitos. Duas situações são trazidas pelo autor para demonstrar as
diferentes apropriações da memória do Holocausto, primeiro através dos
discursos utilizados pelos políticos durante os massacres em Ruanda e na Bósnia
e em outro momento, durante a guerra em Kosovo. Uma vez que, durante os
conflitos na Bósnia e em Ruanda comparações com o Holocausto foram rejeitadas
por políticos, pela imprensa toda opinião pública, segundo o autor como uma
forma de resistir a uma intervenção. (p.12). Porém, durante a guerra em Kosovo,
a memória do Holocausto foi apropriada como forma de justificar a intervenção
armada pela OTAN.
Para Huyssen a memória do Holocausto, acionada durante a
guerra em Kosovo para legitimar uma intervenção internacional, foi motivada por
uma política de culpa na Europa e nos Estados Unidos que estaria relacionada,
inclusive, à intervenção na Bósnia que o autor qualifica como fracasso. A
guerra em Kosovo teria mostrado a influência que a cultura de memória passara a
exercer a partir da década de 1990, mas de outro modo também a produziu
questionamentos “sobre o uso do Holocausto como um lugar-comum universal para
explicar os traumas históricos” (p.12) e em que medida pode servir como
metáfora para memórias, para avaliações de todos os traumas históricos das
sociedades, o alerta de Huyssen é no sentido de que as comparações com o
Holocausto podem produzir falsas memórias ou dificultar a compreensão de
histórias específicas.
Além do Holocausto, outras memórias são utilizadas na
construção de passados-presentes, Huyssen (p.14) cita como exemplos a
restauração de centros urbanos, de cidades-museus e paisagens inteiras, de
empreendimentos patrimoniais, a moda e objetos retrô, a comercialização da
nostalgia, a difusão das práticas memorialísticas nas artes visuais, e todo o
entretenimento memorialístico e toda sua produção em cima de biografias e
eventos históricos, sintomas de um mundo que está sendo musealizado, de acordo
com Huyssen e que utiliza essas memórias na tentativa de produção de uma
recordação total (p.15).
Huyssen (p.15) afirma que apesar de haver uma comercialização
crescente da memória pela indústria cultural ocidental, ela também “assume uma
inflexão política mais explícita em outras partes do mundo”, citando como
exemplo os debates políticos e culturais na América Latina ao redor dos presos
políticos desaparecidos e seus filhos, no que diz respeito à violações dos direitos humanos, justiças e responsabilidade
coletiva. Essa mobilização de memórias seria uma forma de combater a política
do esquecimento promovida pelos governos pós-ditatoriais. Considerando ainda os
debates em torno do Apartheid na África do Sul, das políticas fundamentalistas
no Oriente Médio, Huyssen quando afirma que “A disseminação geográfica da
memória é tão ampla quanto é variado o uso político da memória [...]” (p.16).
O autor atenta que embora o uso das memórias possa parecer
um fenômeno global, no seu núcleo elas fazem parte de contextos específicos de
territórios e nações. E, na medida em que essas nações buscam a criação de
políticas democráticas e se deparam com as sombras de passados marcados pela
obscuridade de ditaduras militares, totalitarismos, essas nações tem como
desafio “assegurar a legitimidade e futuro das suas políticas emergentes,
buscando maneiras de comemorar e avaliar os erros do passado” (p.17) E ainda
que debates sobre a memória nacional incorra em temas como genocídios, limpeza
étnica, migração, direito das minorias o autor reforça que é preciso se
perguntar como o Holocausto como lugar-comum da memória universal traumática
“reforça ou limita as práticas de memórias e as lutas locais” (p.17), que para
o autor deveriam ser pensadas e reavaliadas global e localmente.
Huyssen aponta um paradoxo no enfoque sobre o passado e a
memória, sendo a cultura de memória, contemporânea, acusada de amnésia por
críticos que avaliam que a difusão midiática da memória a deixou cada vez mais
disponível, o que leva o autor a se interrogar se esse aumento de memória é
acompanhado de um aumento de esquecimento, considerando que grande parte das
memórias comercializadas em massa que consumimos são memórias imaginadas, e por
esse motivo seriam mais facilmente esquecidas. Mas aí também emerge a
ambiguidade de outra questão destacada pelo autor: o medo do esquecimento
dispara o desejo de lembrar, ou o desejo de lembrar dispara o esquecimento.
Huyssen (p.19) questiona se é possível que o excesso de memória na cultura de
mídia, essa sobrecarga de memória, saturadas, seja capaz de acionar uma memória
do esquecimento.
Para o autor (p.19) “As próprias estruturas da memória
pública midiatizada ajudam a compreender que, hoje, a nossa cultura secular,
obcecada com a memória, tal como ela é, está também de alguma maneira tomada
por um medo, um terror mesmo, do esquecimento.” Esse medo é transportado para o
centro de questões como a dos presos políticos na América Latina e do
Holocausto na Europa e Estados Unidos. Emerge daí uma questão fundamental,
quanto mais o bombardeio de informações que representa a comercialização de
memória nos faz apelos para lembrar, mais cresce o medo do esquecimento que
através de rememorações públicas e privadas se busca evitar. Essas rememorações
denunciam que o que se busca diante do perigo do esquecimento, o qual é sentido
pela instabilidade dos movimentos do tempo na contemporaneidade, é um ponto de
ancoragem que ofereça segurança, supostamente encontrada nas experiências de
tempos pretéritos (p.20).
Para Huyssen (p.21) não é possível mais discutir memória sem
considerar a influência das tecnologias de mídia como veículos de memória, não
tem como pensar os traumas históricos apenas do ponto de vista político sem
considerar suas representações na mídia, para o autor “não há nenhum espaço
puro fora da cultura da mercadoria, por mais que possamos desejar um tal
espaço.” Na opinião do autor, as questões não podem ser resolvidas por uma
oposição entre memória real e memória trivial, como se a trivialidade de
algumas memórias não fizesse parte do escopo do qual os historiadores constroem
a realidade, e qualquer oposição nesse sentido seria a reprodução da dicotomia
alta e baixa cultura.
Ao considerar a existência de uma diferença entre a
construção da realidade e de suas representações em imagens e linguagens é
preciso considerar as inúmeras possibilidades de representação da realidade do
evento e de suas memórias. É preciso ter em mente que o olhar sobre o real é
uma interpretação, que uma fotografia ou um documentário com imagens reais são
captadas por lentes operadas por indivíduos que fizeram escolhas, que buscaram
representar determinado momento de uma ou de outra forma.
Para Huyssen (p.22) é
preciso pensar a memória traumática e a memória visual ocupando um mesmo
espaço, o público. A memória traumática é comercializada tanto quanto memória
do divertimento, o interesse no lucro movimenta esse comércio de venda de passados
que está na moda.
Para o autor “[...] nós estamos obcecados com
re-re-representação, repetição, replicação e com a cultura da cópia, com ou sem
original. (p.24)” Uma vez que, na ausência de passados capazes de suportar
representações no presente, memórias são inventadas, produtos são criados
embasados na fantasmagoria de belas épocas, no culto a ícones e a mitos
imaginados como uma forma de frear a aceleração do tempo frente a
instantaneidade do tempo presente, tempo que se encolhe cada vez mais produzindo
sensações de ameaça e insegurança. (p.23)
Para Huyssen (p.26), a necessidade de passado é algo que
também não pode ser explicada tão somente pela comercialização de memórias pela
indústria da cultura, mas por uma necessidade das pessoas de valorizar esses
passados que são consumidos, é o medo do futuro que ganha foco em meio às
transformações de tempos, um vazio que é preenchido por essa cultura de
memória. O encurtamento do presente pode ser percebido pelo tempo de permanência dos produtos nas prateleiras, os lançamentos, as
novidades são rapidamente suplantadas por outros produtos, isso quando não
chegam às prateleiras como objetos obsoletos.
Na opinião do autor (p.28), é
preciso que memória e musealização caminhem juntas a fim de criar uma proteção contra
a obsolescência e controlar nossa ansiedade diante da velocidade das
transformações que encurtam tempos-espaços.
Huyssen traz a teoria proposta pelo filósofo alemão do
início do século XX, Hermann Lübbe, o qual afirmou que o museu seria uma forma
de compensar a perda de estabilidade, na medida em que fornece opções de
identidades culturais tradicionais, no entanto a teoria de Lübbe não reconheceu
que mesmo essas identidades “tradicionais” são atingidas pelos processos de
modernização.
Para Huyssen (p.29), essa crença na musealização cultural como
forma de compensar os deslocamentos sentidos no mundo social, é qualificada
pelo autor como “demasiadamente simples e ideológica”, uma vez que não
reconhece que o próprio passado está sendo desestabilizado pela indústria
cultural musealizante e pela mídia.
O autor (p.30), considerando as categorias espaço e tempo
como fundamentais da experiência e da percepção humana, bem como sua
mutabilidade diante das mudanças históricas localiza a memória como lugar de
onde partem esses apelos a um passado que é sempre melhor, que remete a lugares
circunscritos na paisagem por fronteiras culturais bem delineadas, construída
através de relações sociais permanentes e fluxos de tempo regulares.
Para
Huyssen (p.30) o que está em voga não são períodos gloriosos imaginados, mas um
desejo de continuidade dentro do tempo, visto como uma possibilidade de
extensão do vivido, que permite nos situarmos no tempo a partir de uma linearidade
histórica.
Para Huyssen “quanto mais rápido somos empurrados para o
futuro global que não nos inspira confiança, mais forte é o nosso desejo de ir
mais devagar e mais nos voltarmos para a memória em busca de conforto.” (p.32)
Porém, essas memórias que o século XX oferece não trazem conforto, e essa é
questão que emerge no final do século XX, momento em que o autor escreve.
Afinal como glorificar o passado, se um olhar sobre o passado do século XX
revela movimentos que conduziram a genocídios e destruições em massa (p.31).
O autor questiona como poderiam ser organizadas e
representadas as memórias locais, regionais e nacionais no futuro, considerando
a possibilidade de haver uma memória global, possibilidades que dependerão em
grande parte da articulação de recursos disponíveis para se trabalhar com essas
memórias. Na atualidade, os arquivos digitais representam o recurso disponível
mais avançado para o abrigo de memórias em formatos de imagens e sons, porém a maior crítica que se faz aos arquivos digitais diz respeito
a sua segurança, ao quanto podemos confiar nos computadores e na sua capacidade
de armazenamento seguro de memórias. Atualmente são percebidas muitas práticas que visam negar ou
combater a globalização e que sinalizam a necessidade de uma ancoragem no
tempo, enfatizada pelo autor através do que ele entende como sendo uma febre de
memória.
O autor (p.36) vê uma saída nas práticas de memória nacionais e locais
que contestam a globalização pela da negação de tempo, espaço e lugar,
afirmando que a partir delas se pode pensar em novas configurações de tempo e
de espaço. Isso porque na opinião do autor não há como pensar o futuro dentro
do ciberespaço na medida em que as memórias são incorporadas ao social, nas
relações entre grupos, regiões, nações.
Para Huyssen (p.37) é certo que no futuro as memórias serão modeladas pelas tecnologias digitais, porém ela não será reduzida a essas tecnologias, pois a memória é humana, social e está em movimento constante que pode conduzi-la a diferentes caminhos, inclusive do esquecimento.
Segundo o autor, “se nós estamos, de fato, sofrendo um excesso de memória, devemos fazer um esforço para distinguir os passados usáveis dos passados dispensáveis.” (p.37) Faz-se necessário uma rememoração produtiva, uma seleção de memórias que possam contribuir com o futuro do presente e não apenas com o futuro do passado através da celebração de memórias.
Mestrando - Gustavo Grein
Um comentário:
Nossa, muito bom, um grande parabéns e muito sucesso.
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