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quarta-feira, 12 de junho de 2013

Do Indivíduo às retóricas holistas - Joël Candau

Conceitos Preliminares
Numa perspectiva antropológica, proponho a seguinte taxonomia das diferentes manifestações da memória:  (21)                                                                                                     
1.       Uma memória de baixo nível (...) protomemória (...) no âmbito do indivíduo, constitui os saberes e as experiências mais resistentes e mais bem compartilhadas pelos membros de uma sociedade. (...) O habitus depende, em grande parte, da protomemória (...) Essa forma de conhecimento ou “senso prático” é o que nos permite agir quando necessário sem que se pergunte “como se deve fazer”. (...) é uma memória “imperceptível”, que ocorre sem a tomada de consciência. (21-23)
2.    A memória propriamente dita ou de alto nível, que é essencialmente uma memória de recordação ou reconhecimento: evocação deliberada ou invocação involuntária. (23)
3.    A metamemória (...) a representação que cada indivíduo faz de sua própria memória, o conhecimento que tem dela e, de outro, o que diz dela, dimensões que remetem ao “modo de afiliação de um indivíduo a seu passado”, e igualmente, (...) a construção explícita da identidade. (23)
      A protomemória e a memória (...) dependem diretamente da faculdade da memória. A metamemória é uma representação relativa a essa faculdade. (...) os três termos podem ser igualmente conceitos científicos. Mas a taxonomia é válida desde que o interesse sejam as memórias individuais. (23)
      Entretanto, no momento em que passamos para o nível de grupos ou sociedades (...) Torna-se evidente que a noção de protomemória se torna inaplicável: (...) (24)
      (...) em nível de grupos, apenas a eventual posse de uma memória evocativa ou da metamemória pode ser pretendida. É essa eventualidade que aparece subjacente na expressão “memória coletiva”. (24)

Porém é impossível admitir que essa expressão designe uma faculdade , pois a única faculdade de memória realmente atestada é a memória individual, (...) a expressão “memória coletiva” é uma representação, uma forma de metamemória, quer dizer, um enunciado que membros de um grupo vão produzir a respeito de uma memória supostamente comum a todos os membros desse grupo. (24)
      Podemos encontrar (...) inúmeros exemplos (...) evocando a “memória coletiva” de uma aldeia ou cidade (...) enunciados que geralmente acompanham a valorização de uma identidade local. (25)
      No que se refere ao indivíduo, identidade pode ser um estado (...) – uma representação – eu tenho uma ideia de quem sou – e um conceito, o de identidade individual, muito nas Ciências Humanas e Sociais. (25)
      Aplicada ao grupo (...) o termo “identidade” é impróprio porque ele nunca pode designar com rigor uma “recorrência”: em um momento preciso de uma observação um indivíduo é idêntico a ele mesmo, mas duas pessoas (...) jamais são idênticas entre elas. O termo é então utilizado em um sentido menos restrito, próximo ao de semelhança (...) Se admitirmos esse uso pouco rigoroso, metafórico, a identidade (cultural ou coletiva) é certamente uma representação. (25)
      (...) pode a identidade coletiva ser um estado? (...) é provável que os membros de uma sociedade compartilhem as mesmas maneiras de estar no mundo (...) que contribuem a defini-los e que memorizam sem ter consciência [protomemória] (26)
Essa afirmação (...) permanece, entretanto, exposta à crítica por pelo menos duas razões. (...) [1] parece-nos abusivo utilizar as expressões “identidade cultural” ou “identidade coletiva” para designar um suposto estado de um grupo inteiro quando apenas uma maioria dos membros desse grupo compartilha o estado considerado (...) [2] é reducionista definir a identidade de um grupo a partir unicamente da protomemória (...) (26 – 27)
      (...) tanto para a memória quanto para identidade, somos levados a questionar sobre o grau de pertinência do que chamo de retóricas holistas e convém defini-las preliminarmente. (27)

As Retóricas Holistas
            A retórica é uma técnica de persuasão “para o melhor e para o pior” (...) O desafio é, portanto, distinguir entre as retóricas heuristicamente necessárias e aquelas que são “concessões à facilidade” (28).
            (...) um dos objetivos fundamentais da Antropologia é o da compreensão da passagem do individual ao coletivo.(...) Ora, se as memórias individuais são dados (...) a noção de memória compartilhada é uma inferência expressa por metáforas que na melhor das hipóteses darão conta de certos aspectos da realidade social e cultural ou serão simples flatus vocis sem nenhum fundamento empírico. (28-29)
            É preciso admitir que essas retóricas  possuem um estatuto científico extremamente frágil e, ao mesmo tempo, postular que são heuristicamente necessárias porque podem nos dizer “alguma coisa” da realidade. (29)
            Entendo por “retóricas holistas” o emprego de termos, expressões, figuras que visam designar conjuntos supostamente estáveis, duráveis e homogêneos, conjuntos que são conceituados como outra coisa que a simples soma das partes (...) (29)
            Essas retóricas holistas fazem parte da herança de nossas disciplinas (Sociologia, Antropologia Social e Cultural) que no quadro de problemáticas integrativas e de esquemas de pertencimento, construíram uma boa parte de seus vocabulários na era industrial, que quer dizer, na era das massas representadas (pensadas) como entidades coletivas. Em geral tratamos essas noções simbolicamente, como termos que remetem mais ou menos a uma realidade, mas sem ter uma ideia precisa do que isso implica. (29)
            Sem dúvida, é melhor tomar de Ricoeur a noção de “configuração narrativa”, pois as retóricas holistas não são necessariamente inverossímeis no sentido de que podem remeter a fenômenos que são o que elas pressupõem. É efetivamente, uma possibilidade com a noção de memória coletiva ou identidade cultural. (30)

O Grau de Pertinência das Retóricas Holistas aplicadas à Memória e à Identidade
            (...) os homens mostraram que poderiam morrer em nome das retóricas holísticas (...) os conflitos étnicos provocaram a morte de 20 milhões de pessoas desde a IIª Guerra Mundial. (...) A identidade (cultural, coletiva) que serviu de substrato para todos os grandes slogans totalitários do século [XX] é certamente uma “ideia de morte”. (30-31)
            Se admitirmos que os seres humanos não são “indivíduos” atomizados (...) que são capazes de se comunicar e acessar um compartilhamento mínimo de trabalho de produção de significações, (...) seja um compartilhamento de conhecimentos, de saber, de representações, de crenças cuja descrição e explicitação irão justificar o recurso às retóricas holistas. (31)
            Não discutirei a realidade da comunicação – ela é incontestável – mas unicamente a natureza: 1) dessa comunicação e 2) de seu resultado, quer dizer, o compartilhamento efetivo daquilo que foi comunicado.(31)
            (...) é frequente definir memória social como o “conjunto de lembranças reconhecidas por um determinado grupo” ou a memória coletiva como um “conjunto de lembranças comuns a um grupo” (...) Entretanto é difícil aceitar essa ideia, pois de um lado ela é empiricamente impossível e de outro é insustentável sob o ponto de vista teórico, já que encobre uma tripla confusão: a primeira, entre as lembranças manifestadas (objetivadas) e as lembranças tais como são memorizadas; a segunda, entre a metamemória e a memória coletiva; e a última, entre o ato de memória e o conteúdo desse ato. (31-32)
            Um argumento mais forte é o da confusão entre a evocação e as lembranças propriamente ditas.(...) A parte da lembrança que é verbalizada (a evocação) não é a totalidade da lembrança. (33)
            (...) toda tentativa de descrever a memória comum a todos os membros de um grupo a partir de suas lembranças, em um dado momento de suas, é reducionistas, pois ela deixa na sombra aquilo que não é compartilhado. Da confusão entre metamemória e memória coletiva pode resultar igualmente a ilusão de uma memória compartilhada. (34)
            (...) confundimos o discurso metamemorial com aquilo que supomos que ele descreve. Quando vários informantes afirmam recordar como eles acreditam que os outros recordam, a única coisa atestada é a metamemória coletiva, ou seja, eles acreditam se recordar da mesma maneira que os outros recordam. (34)
            (...) deve-se fazer a distinção entre o dizer que há uma memória coletiva e realmente acreditar que ela exista, ou seja, ela existe no plano discursivo, mas não concreto. (...) a possibilidade de compartilhamento total é nula, a de compartilhamento parcial é fraca ou média. Mesmo que as lembranças se nutram da mesma fonte, a singularidade de cada cérebro humano faz com que eles não sigam necessariamente o mesmo caminho. (35)
            (...) argumento decisivo é que a incomunicabilidade dos estados mentais, o que pode ser um problema antropológico. É quase certo que dois observadores não compartilhem jamais a mesma experiência. (...) mesmo que suponhamos que as representações relativas a esses atos de memória são corretamente comunicadas e transmitidas, nada nos permite afrimar que são compartilhadas. (36)
            (...) fazendo outra distinção, que é a que proponho entre representações factuais, que são representações relativas à existência de certos fatos, e as representações semânticas, que são representações relativas ao sentido atribuído a esses mesmos fatos. Quando uma retórica holista remete a representações factuais supostamente compartilhadas por um grupo de indivíduos, há uma forte probabilidade de que seu grau de pertinência seja elevado. Quando uma representação holista remete a representações semânticas supostamente compartilhadas por um grupo de indivíduos, há uma forte probabilidade para que seu grau de pertinência seja fraco ou nulo. (39)
            Quando esta [a retórica holista] pressupõe o compartilhamento por todos os membros de um grupo da crença em fenômenos derivados da constatação, podemos supor que seu grau de pertinência é elevado. (41)
            (...) os enunciados são sempre submetidos em um momento ou outro a um julgamento exterior e correm o risco de ver germinar a dúvida que pode ser introduzida em um primeiro momento pelos indivíduos estrangeiros ao grupo (...) Isto justifica os esforços feitos pelas seitas para se proteger de toda influência exterior: em uma série que conseguisse impedir toda irrupção de dúvida graças ao isolamento total de seus membros, o grau de pertinências das retóricas holistas utilizado para descrevê-las seria muito elevado. (42)
            Em resumo, formulo duas hipóteses (...) 1) Quando as retóricas holistas pressupõem o compartilhamento de representações factuais por todos os membros de um grupo, seu grau de pertinência é proporcional à frequência da repetição dessas representações e inversamente proporcional ao tamanho do grupo considerado; 2) Quando as retóricas holistas pressupõem o compartilhamento de representações semânticas, seu grau de pertinência é sempre inferior ao das retóricas holistas aplicadas às representações factuais e é igualmente proporcional à frequência da repetição dessas representações e inversamente proporcional ao tamanho do grupo e sua permeabilidade à dúvida. (44)
            Uma memória forte é uma memória organizadora no sentido de que é uma dimensão importante da estruturação de um grupo e, por exemplo, da representação que ele vai ter sua própria identidade. (...) memória fraca [é] uma memória sem contornos bem definidos, difusa e superficial, que é dificilmente compartilhada por um conjunto de indivíduos cuja identidade coletiva é, por esse mesmo fato, relativamente inatingível. Uma memória fraca pode ser desorganizadora no sentido de que pode contribuir para a desestruturação de um grupo. (44-45)
            O grau de pertinência das retóricas holistas será sempre mais elevado na presença de uma memória forte, vigorosa, do que de uma fraca, inconsistente. (45)
            A memorização coletiva é possível, pois o contexto é aquele de uma memória forte enraizada em uma tradição cultural. (46)
            (...) as memórias individuais se abriam umas às outras visando um mesmo objeto, que era o poder, e se unindo produzindo produziam uma memória compartilhada. (47)
            (...) não pode haver construção de uma memória coletiva se as memórias individuais não se abrem umas às outras visando objetivos comuns, tendo um mesmo horizonte de ação. Isso é evidentemente mais fácil em grupos menores (...) (48)
            A memória coletiva aparece como um discurso de alteridade no qual a possessão de uma história que não se compartilha confere ao grupo sua identidade. (...) A memória coletiva, como a identidade da qual ela é o combustível, não existe se não diferencialmente, em uma relação sempre mutável mantida com o outro. (50)

Mestrando: Marcos de Almeida





2 comentários:

gfzerger disse...

que legal Rosilda, que tal DA MNEMOGÊNESE À MEMOGÊNESE?

Profª Rosilda disse...

Este eu não li ainda, mas vou procurar. Quando me são indicados leio com mais entusiasmo. Obrigada pela dica.