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domingo, 2 de junho de 2013

Bases antropológicas e expressões mundanas da busca patrimonial: memória, tradição e identidade - Joël Candau

Citações

"O patrimônio podia ser considerado como um aparelho ideológico da memória."  [43]


"Em vários países, se não todos, se manifestam os sinais de uma inflação de memória e uma febre comemorativa, às vezes até à saturação. Uma 'vaga memorial' que rebenta sobre o mundo inteiro, sustenta Pierre Nora. (1994)  [44]


"a irrupção espetacular da memória no debate público é 'indissociável de um fenômeno que lhe confere todo o sentido: a emergência da vítima' (2004, p.89). A memória das tragédias, inclui ele, que é muitas vezes uma memória da destruição, é feita igualmente de uma memória da afirmação, aquela de um grupo que se mantém ou se constrói na permanência de uma lembrança e reconhecimento de seus sofrimentos."  [44]



"Uma memória de tragédias contribui assim, de maneira diferenciada mas sempre muito predominante, à construção do patrimônio de um grupo e, por consequência, de sua identidade, que pode ser uma identidade realmente sofredora ou um simples mise en scène, encenação do sofrimento."  [45]

"o desejo de memória procederia sobretudo, do medo do vazio de sentidos que caracterizaria as sociedades modernas."  [45]

"a identidade, é uma construção social, de uma certa maneira sempre acontecendo no quadro de uma relação dialógica com o Outro."  [45]

"De fato, esse sentimento de essência de uma identidade, que perdura para além das trajetórias individuais e do destino dos povos, não chega à consciência clara, no essencial, que graças à nossa faculdade de lembrar daquilo que fomos."  [46]

" Não pode haver identidade sem memória, 'uma espécie de conexão de si para si próprio."  [46]

"Essência da consciência (NICOLAS, 2003, p.152), a memória 'dá sua dimensão ao tempo' (ROSE, 1994, p.13) e assegura não apenas o sentimento de continuidade pessoal mas também aquele de uma continuidade social."  [47]

"a memória pode tanto reforçar (no caso da lembrança) e enfraquecer (no caso do esquecimento) o sentimento de nossa identidade.  Em caso de perda de memória, é um pouco de nós mesmos que acreditamos perder."  [47]

"Cada indivíduo estima ter uma essência, e a maior parte do tempo ele estima que o grupo ao qual pertence também tenha uma, ele se preocupa com isso e porque ele se preocupa, se esforça em colocá-la em sua narrativa (sua identidade narrativa e eu serei tentado a dizer: sua essência narrativa) que ganhará em grandeza, em nobreza se ele pode se inserir numa narrativa coletiva. A moldura da narrativa, fala Ricoeur (2000, p.103-104), é então colocada "ao serviço da moldura identitária da comunidade".   [48]

"No entanto, não é suficiente existir, ter uma identidade e dela fazer saber, ainda é necessário que a narrativa seja considerada como 'verdadeira', 'autêntica' e por isso, importa de fazer ratificar por outro essa autenticidade reivindicada".  [48]

"A patrimonialização e a tomada de valor do patrimônio pode ser considerada como narrativas de si, narrativas que inscrevem o objetivo patrimonial em uma tradição ou, melhor ainda, que 'tradicionalizem' esse objetivo e que, em primeiro lugar, são destinados a assegurar em sua essência, a sociedade que é o autor: de onde ela vem, onde vai, etc."  [48]

"O discurso patrimonial se funda com frequência sobre o apelo à sobrevivência de uma tradição, de uma identidade, local, regional, ou nacional."  [48]

"Assim, certas ações de patrimonialização estão na origem de memória e identidade. Logo patrimonialização desempenha um papel essencial para autenticar uma narrativa coletiva de um passado compartilhado."    [49]

"na perspectiva que é a sua, a única questão que vale é de saber se as recordações podem ser realmente comuns a um conjunto de indivíduos e se são compartilhadas, porque e como."  [49]

"a noção de memória coletiva era imprecisa e objeto de tripla confusão. A primeira armadilha consiste em confundir as lembranças memorizadas e aquelas manifestadas. Ora, essas últimas não são necessariamente o reflexo exaustivo e fiel da recordação tal como elas são conservadas e cujo conteúdo resta incerto... O que não é expresso nas lembranças manifestadas, acrescenta Bloch, "possui assim uma significação social pois se trata de uma fonte colocada em reserva para futuras representações sociais". Importa, portanto, distinguir entre competência e performance memorial. Assim, toda tentativa de descrever a memória comum a todos os membros de um grupo a partir de suas lembranças manifestada (por exemplo no discurso patrimonial), não pode ser reducionista pois ela deixa na sombra aquelas lembranças que não são manifestas."  [50]

"A segunda armadilha consiste em induzir à existência de uma memória compartilhada através da constatação de atos memoriais coletivos, constatação feita em presença de inúmeros dados empíricos: comemorações, construções de museus, mitos, narrativas, visita patrimonial, etc... Com frequência somos enganados por um efeito de falso consenso: porque um grupo se dá os mesmos recursos memoriais (por exemplo, uma comemoração ou a visita de um lugar patrimonial), pensamos que todos os membros compartilham as mesma representações do passado. Na realidade, nada sabemos pois a simples observação desses atos de memória não nos dá acesso às representações."  [50]

"Essa confusão, observemos, tem uma função importante - uma função metamemorial - ela reforça a crença de cada indivíduo na exsistência de uma memória coletiva e, no caso que nos concerne hoje, na crença da existência de um patrimônio compartilhado."  [50]

"A metamemória é uma parte da representação que cada indivíduo faz de sua própria memória da representação que cada indivíduo faz de sua própria memória, o conhecimento que ele tem e, de outra parte, o que ele diz.  É uma memória reivindicada, ostensiva. Porque é uma memória reivindicada, a metamemória é uma dimensão essencial da construção da identidade individual ou coletiva.  Em sua forma coletiva, é a reivindicação compartilhada de uma memória que se supões compartilhada.  Ela é, a esse nível, a substância mesma do discurso patrimonial que é, sempre, um discurso sobre a memória. Ora, essa metamemória tem, como toda linguagem, efeitos sociais poderosos.  Ela alimenta os imaginários dos membros do grupo ajudando a se pensar como uma comunidade e contribui para modelar um mundo onde o compartilhar patrimonial se ontologiza." [51]

"'Não há memória possível, dizia Halbawachs, fora dos quadros dos quais os homens, vivendo em sociedade, se servem para fixar e reencontrar suas lembranças"' (1925, 1994, p.79)  [52]

"noção de 'sociotransmissores' (CANDAU, 2004, p.118-123), quer dizer, todas as coisas que compõem o mundo (objetos tangíveis ou intangíveis tal como os objetos patrimoniais, seres animados, seus comportamentos e produções), que permitem estabelecer uma cadeia causal cognitiva SPERBER, 2000, p. 209-230) entre ao menos dois espíritos-cérebros. Metaforicamente, os sociotransmissores preenchem entre os indivíduos a mesma função que os neurotransmissores entre neurônios: favorecem as conexões."  [52]

"Que fazemos nós quando visitamos um lugar patrimonial?... I) ratificamos o objeto patrimonial e o esforço de transmissão; II) nos tornamos nós  mesmos produtores desse patrimônio. Incontestavelmente, manifestamos pela visita uma vontade de adesão a isso que é dito e transmitido... o ritual de visita patrimonial é também produtor do patrimônio. Os objetos, monumentos, imagens que nós vemos ali e que são todos sociotransmissores, provocam emoções compartilhadas, solicitam um imaginário comum. Eles permitem um trabalho de 'memorização'."  [53]

"Toda política de patrimônio está exposta a inúmeros desvios... dois parecem maiores, aquele do excesso e aquele da obsessão identitária. O excesso pode ser de duas ordem: o mais corrente é o excesso de preservação. É então o fenômeno da patrimonialização generalizada que tende a museificar a sociedade como um todo."  [53]

"A obsessão identitária conduz a pensar um patrimônio contra o outro, tomando apoio sobre outras oposições - memórias agonísticas, tradições concorrentes - que em suas expressões mais vivas, podem conduzir à afrontamentos violentos, mortais mesmo."  [53]

"as reivindicações memoriais vêm alimentar as representações que um grupo de indivíduos faz de si mesmo."  [54]

"a 'justa memória' de Ricoeur, é uma memória que saberia manter o balanço entre o dever de memória e a necessidade do esquecimento."  [54]

"Segundo Hanna Arendt, pensar é ser capaz de dialogar consigo próprio. De fato, poderíamos dizer que a justa memória (para retomar uma expressão de Ricoeur) é uma memória capaz de dialogar com elas mesma.  Ela é uma memória inquieta, que duvida de si mesma.  Seria desejável de promover - por exemplo no quadro escolar - uma metamemória inquieta dela mesma que, entre o excesso de memória e o excesso de esquecimento, pudesse privilegiar o ultrapassar no sentido de ir além: ultrapassar não é nem esquecer, nem destruir, observa Edgar Morin. Ultrapassar é integrar sem se submeter."  [55]

"A segunda pista é a da cooperação... parece indispensável promover políticas de cooperação patrimonial, em particular entre os grupos que são ou serão inclinados a se crer como antagonistas."  [55]

"Se por razões históricas, esses indivíduos apresentam características sociais e culturais homogêneas e similares às nossas, a cooperação tomara apoio muito naturalmente nessas características (por exemplo, marcos identitários), tanto mais que existe uma crença largamente compartilhada no fato que se coopera melhor com os indivíduos com os quais nos assemelhamos (ou com aqueles que acreditamos nos parecer: aqueles com os quais acreditamos compartilhar uma essência)."  [56]

"'Não se nasce, nos tornamos parecido', diria Tarde (1993, p.78) e, se nos tornamos, é provavelmente cooperando."  [56]


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