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sábado, 13 de abril de 2013

Microfísica do Poder -Michel Foucault - parte 9


GENEALOGIA E PODER - Curso do Collège de France, 7 de janeiro de 1976


Este ano eu gostaria de concluir uma série de pesquisas que fizemos nos últimos quatro ou cinco
anos e de que hoje me dou conta que acumularam inconvenientes. Trata-se de pesquisas
próximas umas das outras, mas que não chegaram a formar um conjunto coerente, a ter
continuidade e que nem mesmo terminaram. Pesquisas dispersas e ao mesmo tempo bastante
repetitivas, que seguiam os mesmos caminhos, recaíam nos mesmos temas, retomavam os
mesmos conceitos, etc.

O que fiz, vocês se lembram: pequenas exposições sobre a história do procedimento penal; alguns
capítulos sobre a evolução e a institucionalização da psiquiatria no século XIX; considerações
sobre a sofística, sobre a moeda grega ou sobre a Inquisição na Idade Média; o esboço de uma
história da sexualidade, através das práticas da confissão no século XVII ou do controle da
sexualidade infantil nos séculos XVIII-XIX; a demarcação da gênese de um saber sobre a
anomalia, com todas as técnicas que o acompanham. Estas pesquisas se arrastam, não avançam,
se repetem e não se articulam; em uma palavra, não chegam a nenhum resultado.

Poderia dizer que, afinal de contas, se tratava de indicações, pouco importando aonde conduziam
ou mesmo se conduziam a algum lugar, a alguma direção pré-determinada. Eram como linhas
pontilhadas; cabe a vocês continuá-las ou modificá-las, a mim eventualmente dar-lhes
prosseguimento ou uma outra configuração. Veremos o que fazer com estes fragmentos. Eu agia
como um boto que salta na superfície da água só deixando um vestígio provisório de espuma e que
deixa que acreditem, faz acreditar, quer acreditar ou acredita efetivamente que lá embaixo, onde
não é percebido ou controlado por ninguém, segue uma trajetória profunda, coerente e refletida.



Que o trabalho que eu apresentei tenha tido este aspecto, ao mesmo tempo fragmentário,
repetitivo e descontinuo, isto corresponde a algo que se poderia chamar de preguiça febril.
Preguiça que afeta caracterialmente os amantes de biblioteca, de documentos, referências, dos
escritos empoeirados e dos textos nunca lidos, dos livros que, logo que publicados, são guardados
e dormem em prateleiras de onde só são tirados séculos depois; pesquisa que conviria muito bem
à inércia profunda dos que professam um saber inútil, uma espécie de saber suntuoso, uma
riqueza de novos-ricos cujos signos exteriores estão localizados nas notas de pé de página; que
conviria a todos aqueles que se sentem solidários com uma das mais antigas ou mais
características sociedades secretas do Ocidente, estranhamente indestrutível, desconhecida na
Antigüidade e que se formou no início do Cristianismo, na época dos primeiros conventos, em meio
às invasões, aos incêndios, às florestas: a grande, terna e calorosa maçonaria da erudição inútil.

Mas não foi simplesmente o gosto por esta maçonaria que me levou a fazer o que fiz. Parece-me
que o trabalho que fizemos - que se produziu de maneira empírica e aleatória entre nós - poderia
ser justificado dizendo que convinha muito bem a um período limitado, aos últimos dez, quinze ou
no máximo vinte anos.

Neste período, podemos notar dois fenômenos que, se não foram realmente importantes, foram ao
menos bastante interessantes. Por um lado, ele se caracterizou pelo que se poderia chamar de
eficácia das ofensivas dispersas e descontinuas. Penso em várias coisas: por exemplo, na
estranha eficácia, quando se tratou de entravar o funcionamento da instituição psiquiátrica, dos
discursos bastante localizados da anti-psiquiatria, discursos que não têm uma sistematização
global, mesmo que tenha tido referências, como a inicial à análise existencial ou como a atual ao
marxismo, à teoria de Reich; ou na estranha eficácia dos ataques contra a moral ou contra a
hierarquia tradicional, que só se referiam vaga e longinquamente a Reich ou a Marcuse; na eficácia
dos ataques contra o aparelho judiciário e penal, alguns dos quais se referiam longinquamente à
noção geral e duvidosa de justiça de classe, enquanto outros se articulavam apenas um pouco
mais precisamente a uma temática anarquista; na eficácia de algo - nem ouso dizer livro - como o
Anti-Édipo, que praticamente só se referia à sua própria e prodigiosa inventividade teórica, livro, ou
melhor, coisa ou acontecimento, que chegou a enrouquecer, penetrando na prática mais cotidiana,

o murmúrio durante muito tempo não interrompido que flui do divã para a poltrona.
Portanto, assistimos há dez ou quinze anos a uma imensa e proliferante criticabilidade das coisas,
das instituições, das práticas, dos discursos; uma espécie de friabilidade geral dos solos, mesmo
dos mais familiares, dos mais sólidos, dos mais próximos de nós, de nosso corpo, de nossos


gestos cotidianos. Mas junto com esta friabilidade e esta surpreendente eficácia das críticas
descontínuas, particulares e locais, e mesmo devido a elas, se descobre nos fatos algo que de
inicio não estava previsto, aquilo que se poderia chamar de efeito inibidor próprio às teorias
totalitárias, globais. O que não quer dizer que estas teorias globais forneçam constantemente
instrumentos utilizáveis localmente: o marxismo e a psicanálise estão ai para prová-lo. Mas creio
que elas só forneceram estes instrumentos à condição de que a unidade teórica do discurso fosse
como que suspensa ou, em todo caso, recortada, despedaçada, deslocada, invertida, caricaturada,
teatralizada. Em todo caso, toda volta, nos próprios termos, à totalidade conduziu de fato a um
efeito de refreamento.

Portanto, o primeiro ponto, a primeira característica do que se passou nestes anos é o caráter local
da crítica; o que não quer dizer empirismo obtuso, ingênuo ou simplório, nem ecletismo débil,
oportunismo, permeabilidade a qualquer empreendimento teórico; o que também não quer dizer
ascetismo voluntário que se reduziria à maior pobreza teórica possível. O caráter essencialmente
local da crítica indica na realidade algo que seria uma espécie de produção teórica autônoma, não
centralizada, isto é, que não tem necessidade, para estabelecer sua validade, da concordância de
um sistema comum.

Chegamos assim á segunda característica do que acontece há algum tempo: esta crítica local se
efetuou através do que se poderia chamar de retorno de saber. O que quero dizer com retorno de
saber é o seguinte: é verdade que durante estes últimos anos encontramos freqüentemente, ao
menos ao nível superficial, toda uma temática do tipo: não mais o saber mas a vida, não mais o
conhecimento mas o real, não o livro mas a trip, etc. Parece-me que sob esta temática, através
dela ou nela mesma, o que se produziu é o que se poderia chamar insurreição dos saberes
dominados.

Por saber dominado, entendo duas coisas: por um lado, os conteúdos históricos que foram
sepultados, mascarados em coerências funcionais ou em sistematizações formais. Concretamente:
não foi uma semiologia da vida asilar, nem uma sociologia da delinqüência, mas simplesmente o
aparecimento de conteúdos históricos que permitiu fazer a crítica efetiva tanto do manicômio
quanto da prisão; e isto simplesmente porque só os conteúdos históricos podem permitir encontrar
a clivagem dos confrontos, das lutas que as organizações funcionais ou sistemáticas têm por
objetivo mascarar. Portanto, os saberes dominados são estes blocos de saber histórico que
estavam presentes e mascarados no interior dos conjuntos funcionais e sistemáticos e que a crítica
pode fazer reaparecer, evidentemente através do instrumento da erudição.

Em segundo lugar, por saber dominado se deve entender outra coisa e, em certo sentido, uma
coisa inteiramente diferente: uma série de saberes que tinham sido desqualificados como não
competentes ou insuficientemente elaborados: saberes ingênuos, hierarquicamente inferiores,
saberes abaixo do nível requerido de conhecimento ou de cientificidade. Foi o reaparecimento
destes saberes que estão embaixo - saberes não qualificados, e mesmo desqualificados, do
psiquiatrizado, do doente, do enfermeiro, do médico paralelo e marginal em relação ao saber
médico, do delinqüente, etc., que chamarei de saber das pessoas e que não é de forma alguma um
saber comum, um bom senso mas, ao contrário, um saber particular, regional, local, um saber
diferencial incapaz de unanimidade e que só deve sua força à dimensão que o opõe a todos
aqueles que o circundam - que realizou a crítica.

Poder-se-ia dizer que existe um estranho paradoxo em querer agrupar em uma mesma categoria
de saber dominado os conteúdos do conhecimento histórico, meticuloso, erudito, exato e estes
saberes locais, singulares, estes saberes das pessoas que são saberes sem senso comum e que
foram deixados de lado, quando não foram efetivamente e explicitamente subordinados.
Parece-me que, de fato, foi este acoplamento entre o saber sem vida da erudição e o saber
desqualificado pela hierarquia dos conhecimentos e das ciências que deu à crítica destes últimos
anos sua força essencial.

Em um caso como no outro, no saber da erudição como naquele desqualificado, nestas duas
formas de saber sepultado ou dominado, se tratava na realidade do saber histórico da luta. Nos
domínios especializados da erudição como nos. saberes desqualificados das pessoas jazia a


memória dos combates, exatamente aquela que até então tinha sido subordinada.

Delineou-se assim o que se poderia chamar uma genealogia, ou melhor, pesquisas genealógicas
múltiplas, ao mesmo tempo redescoberta exata das lutas e memória bruta dos combates. E esta
genealogia, como acoplamento do saber erudito e do saber das pessoas, só foi possível e só se
pôde tentar realizá-la à condição de que fosse eliminada a tirania dos discursos englobantes com
suas hierarquias e com os privilégios da vanguarda teórica.

Chamemos provisoriamente genealogia o acoplamento do conhecimento com as memórias locais,
que permite a constituição de um saber histórico das lutas e a utilização deste saber nas táticas
atuais. Nesta atividade, que se pode chamar genealógica, não se trata, de modo algum, de opor a
unidade abstrata da teoria à multiplicidade concreta dos fatos e de desclassificar o especulativo
para lhe opor, em forma de cientificismo, o rigor de um conhecimento sistemático. Não é um
empirismo nem um positivismo, no sentido habitual do termo, que permeiam o projeto genealógico.
Trata-se de ativar saberes locais, descontinuos, desqualificados, não legitimados, contra a
instância teórica unitária que pretenderia depurá-los, hierarquizá-los, ordená-los em nome de um
conhecimento verdadeiro, em nome dos direitos de uma ciência detida por alguns. As genealogias
não são portanto retornos positivistas a uma forma de ciência mais atenta ou mais exata, mas
anti-ciências. Não que reivindiquem o direito lírico à ignorância ou ao não-saber; não que se trate
da recusa de saber ou de ativar ou ressaltar os prestígios de uma experiência imediata não ainda
captada pelo saber. Trata-se da insurreição dos saberes não tanto contra os conteúdos, os
métodos e os conceitos de uma ciência, mas de uma insurreição dos saberes antes de tudo contra
os efeitos de poder centralizadores que estão ligados à instituição e ao funcionamento de um
discurso científico organizado no interior de uma sociedade como a nossa. Pouco importa que esta
institucionalização do discurso científico se realize em uma universidade ou, de modo mais geral,
em um aparelho político com todas as suas aferências, como no caso do marxismo; são os efeitos
de poder próprios a um discurso considerado como científico que a genealogia deve combater.

De modo mais preciso, há alguns anos, provavelmente há mais de um século, têm sido numerosos
os que se perguntam se o marxismo é ou não uma ciência. Mesma questão que tem sido colocada
á psicanálise ou à semiologia dos textos literários. A esta questão - e ou não uma ciência? - as
genealogias ou os genealogistas responderiam: o que lhe reprovamos é fazer do marxismo, da
psicanálise ou de qualquer outra coisa uma ciência. Se temos uma objeção a fazer ao marxismo é
dele poder efetivamente ser uma ciência. Antes mesmo de saber em que medida algo como o
marxismo ou a psicanálise é análogo a uma prática científica em seu funcionamento cotidiano, nas
regras de construção, nos conceitos utilizados, antes mesmo de colocar a questão da analogia
formal e estrutural de um discurso marxista ou psicanalítico com o discurso científico, não se deve
antes interrogar sobre a ambição de poder que a pretensão de ser uma ciência traz consigo? As
questões a colocar são: que tipo de saber vocês querem desqualificar no momento em que vocês
dizem ''e uma ciência"? Que sujeito falante, que sujeito de experiência ou de saber vocês querem
"menorizar" quando dizem: "Eu que formulo este discurso, enuncio um discurso científico e sou um
cientista"? Qual vanguarda teórico-política vocês querem entronizar para separá-la de todas as
numerosas, circulantes e descontínuas formas de saber? Quando vejo seus esforços para
estabelecer que o marxismo é uma ciência, não os vejo na verdade demonstrando que o marxismo
tem uma estrutura racional e que portanto suas proposições relevam de procedimentos de
verificação. Vejo-os atribuindo ao discurso marxista e àqueles que o detêm efeitos de poder que o
Ocidente, a partir da Idade Média, atribuiu à ciência e reservou àqueles que formulam um discurso
científico.

A genealogia seria portanto, com relação ao projeto de uma inscrição dos saberes na hierarquia de
poderes próprios à ciência, um empreendimento para libertar da sujeição os saberes históricos, isto
é, torná-los capazes de oposição e de luta contra a coerção de um discurso teórico, unitário, formal
e científico. A reativação dos saberes locais - menores, diria talvez Deleuze - contra a
hierarquização científica do conhecimento e seus efeitos intrínsecos de poder, eis o projeto destas
genealogias desordenadas e fragmentárias. Enquanto a arqueologia é o método próprio à análise
da discursividade local, a genealogia é a tática que, a partir da discursividade local assim descrita,
ativa os saberes libertos da sujeição que emergem desta discursividade. Isto para situar o projeto
geral.


Todos estes fragmentos de pesquisa, todos estes discursos, poderiam ser considerados como
elementos destas genealogias, que não fui o único a fazer. Questão: por que então não continuar
com uma teoria da descontinuidade, tão graciosa e tão pouco verificável, porque não analisar um
novo problema da psiquiatria ou da teoria da sexualidade, etc.? É verdade que poderíamos
continuar - e até certo ponto procurarei continuar - se não fosse um certo número de mudanças na
conjuntura. Em relação à situação que conhecemos nestes últimos quinze anos, as coisas
provavelmente mudaram; a batalha talvez não seja mais a mesma. Existiria ainda a mesma relação
de força que permitiria fazer prevalecer, fora de qualquer relação de sujeição, estes saberes
desenterrados? Que força eles têm? E, a partir do momento em que se extraem fragmentos da
genealogia e se coloca em circulação estes elementos de saber que se procurou desenterrar, não
correm eles o risco de serem recodificados, recolonizados pelo discurso unitário que, depois de
tê-los desqualificado e ignorado quando apareceram, estão agora prontos a anexá-los ao seu
próprio discurso e a seus efeitos de saber e de poder? Se queremos proteger estes fragmentos
libertos, não corremos o risco de construir um discurso unitário, ao qual nos convidam, como para
uma armadilha, aqueles que nos dizem: "tudo isto está certo, mas em que direção vai, para formar
que unidade?". A tentação seria de dizer: continuemos, acumulemos, afinal de contas ainda não
chegou o momento em que corremos o risco de ser colonizados. Poderíamos mesmo lançar o
desafio: "Tentem colonizar-nos!" Poderíamos dizer: "Desde o momento em que a anti-psiquiatria
ou a genealogia das instituições psiquiátricas tiveram inicio, há uns quinze anos atrás, algum
marxista, algum psicanalista ou algum psiquiatra procurou refazê-las em seus próprios termos e
mostrar que eram falsas, mal elaboradas, mal articuladas, mal fundadas?" De fato, estes
fragmentos de genealogias que fizemos permanecem cercados por um silêncio prudente. O que se
lhes opõe, no máximo, são proposições como a de um deputado do Partido Comunista Francês:
"Tudo isto está certo, mas não há dúvida de que a psiquiatria soviética é a primeira do mundo". Ele
tem razão. A psiquiatria soviética é a primeira do mundo. E é exatamente isto que nós lhe
reprovamos.

O silêncio, ou melhor, a prudência com que as teorias unitárias cercam a genealogia dos saberes
seria talvez uma razão para continuar. Poderíamos multiplicar os fragmentos genealógicos. Mas
seria otimista, tratando-se de uma batalha - batalha dos saberes contra os efeitos de poder do
discurso científico - tomar o silêncio do adversário como a prova de que lhe metemos medo. O
silêncio do adversário - este é um princípio metodológico, um princípio tático que se deve sempre
ter em mente - talvez seja também o sinal de que nós de modo algum lhe metemos medo. Em todo
caso, deveríamos agir como se não lhe metêssemos medo. Trata-se portanto não de dar um
fundamento teórico contínuo e sólido a todas as genealogias dispersas, nem de impor uma espécie
de coroamento teórico que as unificaria, mas de precisar ou evidenciar o problema que está em
jogo nesta oposição, nesta luta, nesta insurreição dos saberes contra a instituição e os efeitos de
poder e de saber do discurso científico.

A questão de todas estas genealogias é: o que é o poder, poder cuja irrupção, força, dimensão e
absurdo apareceram concretamente nestes últimos quarenta anos, com o desmoronamento do
nazismo e o recuo do estalinismo? O que é o poder, ou melhor - pois a questão o que é o poder
seria uma questão teórica que coroaria o conjunto, o que eu não quero - quais são, em seus
mecanismos, em seus efeitos, em suas relações, os diversos dispositivos de poder que se exercem
a níveis diferentes da sociedade, em domínios e com extensões tão variados? Creio que a questão
poderia ser formulada assim: a análise do poder ou dos poderes pode ser, de uma maneira ou de
outra, deduzida da economia?

Eis por que coloco este problema e o que quero dizer com isto. Não quero abolir as inúmeras e
gigantescas diferenças mas, apesar e através destas diferenças, me parece que existe um ponto
em comum entre a concepção jurídica ou liberal do poder político - tal como encontramos nos
filósofos do século XVIII - e a concepção marxista, ou uma certa concepção corrente que passa
como sendo a concepção marxista. Este ponto em comum é o que chamarei o economicismo na
teoria do poder.

Com isto quero dizer o seguinte: no caso da teoria jurídica clássica o poder é considerado como
um direito de que se seria possuidor como de um bem e que se poderia, por conseguinte, transferir
ou alienar, total ou parcialmente, por um ato jurídico ou um ato fundador de direito, que seria da


ordem da cessão ou do contrato. O poder é o poder concreto que cada indivíduo detém e que
cederia, total ou parcialmente, para constituir um poder político, uma soberania política. Neste
conjunto teórico a que me refiro a constituição do poder político se faz segundo o modelo de uma
operação jurídica que seria da ordem da troca contratual. Por conseguinte, analogia manifesta, que
percorre toda a teoria, entre o poder e os bens, o poder e a riqueza. No outro caso - concepção
marxista geral do poder - nada disto é evidente; a concepção marxista trata de outra coisa, da
funcionalidade econômica do poder. Funcionalidade econômica no sentido em que o poder teria
essencialmente como papel manter relações de produção e reproduzir uma dominação de classe
que o desenvolvimento e uma modalidade própria da apropriação das forças produtivas tornaram
possível. O poder político teria neste caso encontrado na economia sua razão de ser histórica. De
modo geral, em um caso temos um poder político que encontraria no procedimento de troca, na
economia da circulação dos bens o seu modelo formal e, no outro, o poder político teria na
economia sua razão de ser histórica, o princípio de sua forma concreta e do seu funcionamento
atual.

O problema que se coloca nas pesquisas de que falo pode ser analisado da seguinte forma: em
primeiro lugar, o poder está sempre em posição secundária em relação à economia, ele é sempre
"finalizado" e "funcionalizado" pela economia? Tem essencialmente como razão de ser e fim servir
a economia, está destinado a fazê-la funcionar, a solidificar, manter e reproduzir as relações que
são características desta economia e essenciais ao seu funcionamento? Em segundo lugar, o
poder é modelado pela mercadoria, por algo que se possui,' se adquire, se cede por contrato ou
por força, que se aliena ou se recupera, que circula, que herda esta ou aquela região? Ou, ao
contrário, os instrumentos necessários para analisá-lo são diversos, mesmo se efetivamente as
relações de poder estão profundamente intrincadas nas e com as relações econômicas e sempre
constituem com elas um feixe? Neste caso, a indissociabilidade da economia e do político não
seria da ordem da subordinação funcional nem do isomorfismo formal, mas de uma outra ordem,
que se deveria explicitar.

Para fazer uma análise não econômica do poder, de que instrumentos dispomos hoje? Creio que
de muito poucos. Dispomos da afirmação que o poder não se dá, não se troca nem se retoma, mas
se exerce, só existe em ação, como também da afirmação que o poder não é principalmente
manutenção e reprodução das relações econômicas, mas acima de tudo uma relação de força.
Questão: se o poder se exerce, o que é este exercício, em que consiste, qual é sua mecânica?

Uma primeira resposta que se encontra em várias análises atuais consiste em dizer: o poder é
essencialmente repressivo. O poder é o que reprime a natureza, os indivíduos, os instintos, uma
classe. Quando o discurso contemporâneo define repetidamente o poder como sendo repressivo,
isto não é uma novidade. Hegel foi o primeiro a dizê-lo; depois, Freud e Reich também o disseram.
Em todo caso, ser órgão de repressão é no vocabulário atual o qualificativo quase onírico do poder.
Não será, então, que a análise do poder deveria ser essencialmente uma análise dos mecanismos
de repressão?

Uma segunda resposta: se o poder é em si próprio ativação e desdobramento de uma relação de
força, em vez de analisá-lo em termos de cessão, contrato, alienação, ou em termos funcionais de
reprodução das relações de produção, não deveríamos analisá-lo acima de tudo em termos de
combate, de confronto e de guerra? Teríamos, portanto, frente à primeira hipótese, que afirma que

o mecanismo do poder é fundamentalmente de tipo repressivo, uma segunda hipótese que afirma
que o poder é guerra, guerra prolongada por outros meios.
Inverteríamos assim a posição da Clausewitz, afirmando que a política é a guerra prolongada por
outros meios. O que significa três coisas: em primeiro lugar, que as relações de poder nas
sociedades atuais têm essencialmente por base uma relação de força estabelecida, em um
momento historicamente determinável, na guerra e pela guerra. E se é verdade que o poder
político acaba a guerra, tenta impor a paz na sociedade civil, não é para suspender os efeitos da
guerra ou neutralizar os desequilíbrios que se manifestaram na batalha final, mas para reinscrever
perpetuamente estas relações de força, através de uma espécie de guerra silenciosa, nas
instituições e nas desigualdades econômicas, na linguagem e até no corpo dos indivíduos. A
política é a sanção e a reprodução do desequilíbrio das forças manifestadas na guerra. Em


segundo lugar, quer dizer que, no interior desta "paz civil", as lutas políticas, os confrontos a
respeito do poder, com o poder e pelo poder, as modificações das relações de força em um
sistema político, tudo isto deve ser interpretado apenas como continuações da guerra, como
episódios, fragmentações, deslocamentos da própria guerra. Sempre se escreve a história da
guerra, mesmo quando se escreve a história da paz e de suas instituições. Em terceiro lugar, que a
decisão final só pode vir da guerra, de uma prova de força em que as armas deverão ser os juizes.
O final da política seria a última batalha, isto é, só a última batalha suspenderia finalmente o
exercício do poder como guerra prolongada.

A partir do momento em que tentamos escapar do esquema economicista para analisar o poder,
nos encontramos imediatamente em presença de duas hipóteses: por um lado, os mecanismos do
poder seriam de tipo repressivo, idéia que chamarei por comodidade de hipótese de Reich; por
outro lado, a base das relações de poder seria o confronto belicoso das forças, idéia que chamarei,
também por comodidade, de hipótese de Nietzsche.

Estas duas hipóteses não são inconcilíaveis, elas parecem se articular. Não seria a repressão a
conseqüência política da guerra, assim como a opressão, na teoria clássica do direito político, era
na ordem jurídica o abuso da soberania?

Poderíamos assim opor dois grandes sistemas de análise do poder: um seria o antigo sistema dos
filósofos do século XVIII, que se articularia em torno do poder como direito originário que se cede,
constitutivo da soberania, tendo o contrato corno matriz do poder político. Poder que corre o risco,
quando se excede, quando rompe os termos do contrato, de se tornar opressivo. Poder-contrato,
para o qual a opressão seria a ultrapassagem de um limite. O outro sistema, ao contrário, tentaria
analisar o poder político não mais segundo o esquema contrato-opressão, mas segundo o
esquema guerra-repressão; neste sentido, a repressão não seria mais o que era a opressão com
respeito ao contrato, isto é, um abuso, mas, ao contrário, o simples efeito e a simples continuação
de uma relação de dominação. A repressão seria a prática, no interior desta pseudo-paz, de uma
relação perpétua de força.

Portanto, estes são dois esquemas de análise do poder. O esquema contrato-opressão, que é o
jurídico, e o esquema dominaçãorepressão ou guerra-repressão, em que a oposição pertinente
não é entre legítimo-ilegítimo como no precedente, mas entre luta e submissão. São estas noções
que analisarei nos próximos cursos.

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