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sexta-feira, 12 de abril de 2013

Microfísica do Poder - Michel Foucault - parte 8


SOBRE A GEOGRAFIA


Hérodote:

O trabalho que você realizou recobre (e alimenta) em grande parte a reflexão que realizamos em
geografia e, de modo mais geral, a que realizamos sobre as ideologias e estratégias do espaço.

Ao questionar a geografia, deparamos com um certo número de conceitos: saber, poder, ciência,
formação discursiva, olhar, épistémè, e a arqueologia que você elaborou contribuiu para orientar a
nossa reflexão. Assim, a hipótese proposta na Arqueologia do Saber de que uma formação
discursiva não se define nem por um objeto, nem por um estilo, nem por um jogo de conceitos
permanentes, nem pela persistência de uma temática, mas deve ser apreendida como um sistema
de dispersão regulado, nos permitiu delimitar melhor o discurso geográfico.

Por outro lado, ficamos surpresos com o seu silêncio no que diz respeito á geografia (salvo erro,
você só evocou sua existência em uma comunicação consagrada a Cuvier, e assim mesmo para
relegá-la às ciências naturais). Paradoxalmente, seria motivo de estupor se a geografia fosse
levada em conta, pois apesar de Kant e Hegel, os filósofos ignoram a geografia. Deve-se
incriminar os geógrafos que, desde Vidal de la Blanche, resolveram se resguardar, ao abrigo das
ciências sociais, do marxismo, da epistemologia e da história das ciências, ou devemos incriminar
filósofos, indispostos com uma geografia inclassificável, "deslocada", dividida entre as ciências
naturais e as ciências sociais? A geografia terá um "lugar" na sua arqueologia do saber? Você não
estará reproduzindo, ao arqueologizá-la, a separação entre ciências da natureza (o inquérito, o
quadro) e ciências do homem (o exame, a disciplina), dissolvendo assim o lugar onde a geografia
poderia se estabelecer?



Michel Foucault:

Para começar, uma resposta empírica. Tentaremos em seguida ver se há outra coisa por detrás.
Se eu fizesse a lista de todas as ciências, de todos os conhecimentos, de todos os domínios do
saber de que não falo e deveria falar, e de que estou próximo de uma maneira ou de outra, essa
lista seria quase infinita. Eu não falo de bioquímica, eu não falo de arqueologia. Nem mesmo fiz
uma arqueologia da história. Tomar uma ciência porque ela é interessante, porque é importante ou
porque sua história teria alguma coisa de exemplar não me parece um bom método. Será sem
dúvida bom método se o que se quer é fazer uma história correta, limpa, conceitualmente
asséptica. Mas desde o momento em que se quer fazer uma história que tenha um sentido, uma
utilização, uma eficácia política, só se pode fazê-la corretamente sob a condição de que se esteja
ligado, de uma maneira ou de outra, aos combates que se desenrolam neste domínio. Dos
domínios cuja genealogia tentei fazer, o primeiro foi a psiquiatria, porque eu tinha certa prática e
certa experiência de hospital psiquiátrico e senti que ali havia combates, linhas de força, pontos de
confronto, tensões. A história que fiz, só a fiz em função desses combates. O problema, o desafio,

o prêmio era poder formular um discurso verdadeiro e estrategicamente eficaz; ou ainda, de que
modo a verdade da história pode ter efeito político.
Héradote:

Isso vai ao encontro de uma hipótese que eu lhe submeto: se existem pontos de confronto,
tensões, linhas de força na geografia, eles são subterrâneos pela própria ausência de polêmica em
geografia. Ora, o que pode atrair um filósofo, um epistemólogo, um arqueólogo é ser árbitro ou tirar
proveito de uma polêmica já iniciada.


Michel Foucault: E

verdade que a importância de uma polêmica pode atrair. Mas eu não sou de forma alguma dessa
espécie de filósofo que formula ou quer formular um discurso de verdade sobre uma ciência
qualquer. Legislar para toda a ciência é o projeto positivista. Eu me pergunto se em certas formas
de marxismo 'renovado" não se caiu em tentação semelhante, que consistiria em dizer: o
marxismo, como ciência das ciências, pode fazer a teoria das ciências e estabelecer a separação
entre ciência e ideologia. Ora, essa posição de árbitro, de juiz, de testemunha universal, é um
papel a que me recuso absolutamente, pois me parece ligado à instituição universitária da filosofia.
Se faço as análises que faço, não é porque há uma polêmica que gostaria de arbitrar mas porque
estive ligado a certos combates: medicina, psiquiatria, penalidade. Nunca pretendi fazer uma
história geral das ciências humanas, nem uma crítica geral da possibilidade das ciências. O
subtítulo de As Palavras e as Coisas não é a arqueologia mas uma arqueologia das ciências
humanas.

Cabe a vocês, que estão diretamente ligados ao que se passa na geografia, que se deparam com
todos esses confrontos de poder em que a geografia está envolvida, cabe a vocês enfrentá-los,
forjar os instrumentos para este combate. E, no fundo, vocês deveriam me dizer: "Você não se
ocupou com esta coisa que não lhe diz muito respeito e que você não conhece bem". E eu lhes
responderia: "Se uma ou outra "coisa" (em termos de abordagem ou de método) que acreditei
poder utilizar na psiquiatria, na penalidade, na história natural pode lhes servir, fico satisfeito. Se
forem obrigados a recorrer a outros ou a transformar os meus instrumentos, mostrem-me, porque
também poderei lucrar com isso".

H.:

Você se refere com muita freqüência aos historiadores: Lucien Febvre, Braudel, Le Roy Ladurie. E
muitas vezes os homenageou. Acontece que esses historiadores tentaram dialogar com a
geografia e até instaurar uma geo-história ou uma antropo-geografia. Havia, através destes
historiadores, a oportunidade de um encontro com a geografia. Por outro lado, ao estudar a
economia política e a história natural, você se aproximou bastante do domínio geográfico.
Podemos assinalar assim uma aproximação constante com a geografia, sem que ela jamais seja
levada em conta. Não existe em minha pergunta nem a exigência de uma hipotética arqueologia da
geografia nem realmente uma decepção: somente uma surpresa.

M.F.:

Tenho um certo escrúpulo em só responder por argumentos concretos, mas creio que é preciso
também desconfiar dessa vontade de essencialidade: se você não fala de algo é porque
certamente tem obstáculos maiores que iremos eliminar. Pode-se muito bem não falar de algo
simplesmente porque não se conhece, não porque tenhamos disto um saber inconsciente e
portanto inacessível. Você me pergunta se a geografia tem um lugar na arqueologia do saber. Sim,
contanto que se mude a formulação. Achar um lugar para a geografia seria o mesmo que dizer que
a arqueologia do saber tem um projeto de recobri mento total e exaustivo de todos os domínios do
saber, o que de modo algum é o que tenho em mente. A arqueologia do saber é simplesmente um
modo de abordagem.

É verdade que a filosofia, ao menos a partir de Descartes, sempre esteve ligada no Ocidente ao
problema do conhecimento. Não se escapa disso. Quem se pretender filósofo e não se colocar a
questão o que e o conhecimento?" ou "o que é a verdade?", em que sentido se poderia dizer que é
um filósofo? E mesmo que eu diga que não sou filósofo, se for da verdade que me ocupo, eu sou
apesar de tudo filósofo. A partir de Nietzsche, essa questão se transformou. Não mais: qual é o
caminho mais seguro da Verdade?, mas qual foi o caminho aleatório da verdade? Era esta a
questão de Nietzsche e é também a questão de Husserl em A Crise das Ciências Européias. A
ciência, a coerção ao verdadeiro, a obrigação de verdade, os procedimentos ritualizados para
produzi-la há milênios atravessam completamente toda a sociedade ocidental e agora se
universalizaram para se tornar a lei geral de toda a civilização. Qual é a sua história, quais são os
seus efeitos, como isso se entrelaça com as relações de poder? Se se toma esse caminho, a


geografia é concernida por um semelhante método. E preciso tentar esse método em relação à
geografia, como também em relação à farmacologia, à microbiologia, à demografia, etc. Ela não
tem, propriamente falando, um lugar mas seria preciso poder fazer esta arqueologia do saber
geográfico.

H.:

Se a geografia não é visível, não é captável no campo que você explora, em que pratica suas
escavações, isto talvez se ligue à démarche deliberadamente histórica ou arqueológica que
privilegia de fato o fator tempo. Pode-se notar assim que você tem um cuidado rigoroso com a
periodização, que contrasta com o indefinido, a relativa indeterminação das suas localizações.
Seus espaços de referência são indistintamente a cristandade, o mundo ocidental, a Europa do
Norte, a França, sem que esses espaços de referência sejam realmente justificados ou mesmo
precisados. Você escreveu que "cada periodização recorta na história um certo nível de
acontecimentos e, inversamente, cada camada de acontecimentos pede sua periodização, uma
vez que, segundo o nível que se escolha, dever-se-á delimitar periodizações diferentes e,
segundo a periodização que se dê, atingir-se-à níveis diferentes. Chega-se assim à metodologia
complexa da descontinuidade". E possível e mesmo desejável conceber e construir uma
metodologia da descontinuidade a respeito do espaço e das escalas espaciais. Você privilegia de
fato o fator tempo, com o risco de delimitações ou de espacializações nebulosas, nômades.
Espacializações incertas que contrastam com o cuidado de recortar etapas, períodos, idades.

M.F.: Coloca-se aí um problema de método, mas também de suporte material, ou seja,
simplesmente a possibilidade de um homem sozinho percorrer este caminho. Com efeito, eu
poderia perfeitamente dizer: história da penalidade na França. Afinal foi essencialmente o que fiz,
com algumas incursões, referências, investidas fora. Se não digo isso, se deixo oscilar uma
espécie de fronteira vaga, um pouco ocidental, um pouco nomadizante, é porque a documentação
que pesquisei ultrapassa um pouco as fronteiras da França e porque freqüentemente para
compreender um fenômeno francês fui obrigado a me referir a alguma coisa que se passava em
outros lugares, que lá seria pouco explícita, que era anterior no tempo, que lhe serviu de modelo. O
que me permite, ressalvando modificações regionais ou locais, situar esses fenômenos nas
sociedades anglo-saxã, espanhola, italiana, etc. Eu não especifico mais porque seria tão abusivo
dizer: "eu só falo da França" quanto dizer: "eu falo de toda a Europa". Efetivamente seria
necessário precisar – mas este é um trabalho a ser feito em grupo - onde esse tipo de processo
não é mais encontrado, a partir de onde se pode dizer: "é outra coisa que acontece".

H.: Essa espacialização incerta contrasta com a profusão de metáforas espaciais: posição,
deslocamento, lugar, campo; e às vezes mesmo geográficas: território, domínio, solo, horizonte,
arquipélago, geopolítica, regiões, paisagem.

M.F.:

Pois bem, vejamos o que são essas metáforas geográficas. Território é sem dúvida uma noção
geográfica, mas é. antes de tudo uma noção jurídico-política: aquilo que é controlado por um certo
tipo de poder.

Campo: noção econômico-jurídica.

Deslocamento: um exército, uma tropa, uma população se deslocam. Domínio: noção
jurídico-política.

Solo: noção histórico-geológica.

Região: noção fiscal, administrativa, militar.

Horizonte: noção pictórica, mas também estratégica.


Destas, só uma noção é verdadeiramente geográfica, a de arquipélago. Só a utilizei uma vez, para
designar, e por causa de Soljenitsyne - o arquipélago carcenário - essa dispersão e ao mesmo
tempo o recobrimento universal de uma sociedade por um tipo de sistema punitivo.

H.:

De fato, estas noções não são estritamente geográficas. São contudo noções básicas de todo
enunciado geográfico. Evidencia-se assim o fato de que o discurso geográfico produz poucos
conceitos e os extrai de tudo que é lugar. Paisagem é uma noção pictórica, mas é um objeto
essencial da geografia tradicional.

M.F.
Mas você tem certeza de que eu tirei essas noções da geografia e não precisamente de onde a
geografia as retirou?

H.:

O que se deve enfatizar, a respeito de certas metáforas espaciais, é que elas são tanto geográficas
quanto estratégicas, e isso é muito normal visto que a geografia se desenvolveu à sombra do
exército. Entre o discurso geográfico e o discurso estratégico, pode-se observar uma circulação de
noções: a região dos geógrafos é a mesma que a região militar (de regere, comandar) e província o
mesmo que território vencido (de vincere). O campo remete ao campo de batalha...

M.F.:

Reprovaram-me muito por essas obsessões espaciais, e elas de fato me obcecaram. Mas, através
delas, creio ter descoberto o que no fundo procurava: as relações que podem existir entre poder e
saber. Desde o momento em que se pode analisar o saber em termos de região, de domínio, de
implantação, de deslocamento, de transferência, pode-se apreender o processo pelo qual o saber
funciona como um poder e reproduz os seus efeitos. Existe uma administração do saber, uma
política do saber, relações de poder que passam pelo saber e que naturalmente, quando se quer
descrevê-las, remetem àquelas formas de dominação a que se referem noções como campo,
posição, região, território. E o termo político-estratégico indica como o militar e o administrativo
efetivamente se inscrevem em um solo ou em formas de discurso. Quem encarasse a análise dos
discursos somente em termos de continuidade temporal seria necessariamente levado a analisá-la
e encará-la como a transformação interna de uma consciência individual. Construiria ainda uma
grande consciência coletiva no interior da qual se passariam as coisas.

Metaforizar as transformações do discurso através de um vocabulário temporal conduz
necessariamente à utilização do modelo da consciência individual, com sua temporalidade própria.
Tentar ao contrário decifrá-lo através de metáforas espaciais, estratégicas, permite perceber
exatamente os pontos pelos quais os discursos se transformam em, através de e a partir das
relações de poder.

H.:

Althusser, no Ler O Capital, coloca uma questão análoga: "O recurso às metáforas espaciais, de
que (...) o presente texto faz uso, coloca um problema teórico: o das suas condições de existência
em um discurso com pretensão científica. Este problema pode ser exposto da maneira seguinte:
por que um certo tipo de discurso requer necessariamente o uso de metáforas retiradas de
discursos não científicos?" Althusser apresenta assim o recurso às metáforas espaciais como
necessário, mas ao mesmo tempo como regressivo, não rigoroso. Tudo leva a pensar, ao contrário,
que as metáforas espaciais, longe de serem reacionárias, tecnocráticas, abusivas ou ilegítimas,
são antes de tudo o sintoma de um pensamento "estratégico", "combatente", que coloca o espaço
do discurso como terreno e objeto de práticas políticas.

M.F.:


E efetivamente de guerra, de administração, de implantação, de gestão de um saber que se trata
em tais expressões. Seria necessário fazer uma critica dessa desqualificação do espaço que vem
reinando há várias gerações. Foi com Bergson, ou mesmo antes, que isso começou. O espaço é o
que estava morto, fixo, não dialético, imóvel. Em compensação, o tempo era rico, fecundo, vivo,
dialético.

A utilização de termos espaciais tem um quê de anti-história para todos que confundem a história
com as velhas formas da evolução, da continuidade viva, do desenvolvimento orgânico, do
progresso da consciência ou do projeto da existência. Se alguém falasse em termos de espaço, é
porque era contra o tempo. E porque "negava a história", como diziam os tolos, é porque era
"tecnocrata". Eles não compreendem que, na demarcação das implantações, das delimitações, dos
recortes de objetos, das classificações, das organizações de domínios, o que se fazia aflorar eram
processos - históricos certamente - de poder. A descrição espacializante dos fatos discursivos
desemboca na análise dos efeitos de poder que lhe estão ligados.

H.:

Com Vigiar e Punir, esta estrategização do pensamento entrou em uma nova etapa. Com o
panoptismo, estamos além da metáfora. O que está em jogo é a descrição de instituições em
termos de arquitetura, de figuras espaciais. Concluindo, você evoca até a "geopolítica imaginaria"
da cidade carcerária. Essa figura panóptica dá conta do aparelho de Estado em seu conjunto?
Surge, em seu último livro, um modelo implícito do poder: uma disseminação de micro-poderes,
uma rede de aparelhos dispersos, sem aparelho único, sem foco nem centro, e uma coordenação
transversal de instituições e de tecnologias. Entretanto, você assinala a estatização das escolas,
hospitais, casas de correção e de educação até então geridos pelos grupos religiosos ou pelas
associações de beneficiência. E, paralelamente, se estabelece uma polícia centralizada, exercendo
uma vigilância permanente, exaustiva, capaz de tornar tudo visível à condição de se tornar ela
própria invisível. "A organização do aparelho policial sanciona no século XVIII a generalização das
disciplinas e atinge as dimensões do Estado".

M.F.:

Com o panoptismo, eu viso a um conjunto de mecanismos que ligam os feixes de procedimentos
de que se serve o poder. O panoptismo foi uma invenção tecnológica na ordem do poder, como a
máquina a vapor o foi na ordem da produção. Esta invenção tem de particular o fato de ter sido
utilizada em níveis inicialmente locais: escolas, casernas, hospitais. Fez-se nesses lugares a
experimentação da vigilância integral. Aprendeu-se a preparar os dossiês, a estabelecer as
notações e a classificações, a fazer a contabilidade integrativa desses dados individuais. Claro que
a economia - e o sistema fiscal - já tinham utilizado alguns desses processos. Mas a vigilância
permanente de um grupo escolar ou de um grupo de doentes é outra coisa. E esses métodos
foram, a partir de determinado momento, generalizados. Desta extensão, o aparelho policial, como
também a administração napoleônica, foi um dos principais vetores. Creio ter citado uma belíssima
descrição do papel dos procuradores gerais do Império como sendo o olho do Imperador. E, do
primeiro procurador geral em Paris ao simples substituto de província, é um único olhar que vigia
as desordens, prevê os perigos de criminalidade, sanciona todos os desvios. E se por acaso
qualquer coisa neste olhar universal viesse a se relaxar, se ele cochilasse em algum lugar, o
Estado não estaria longe da ruína. O panoptismo não foi confiscado pelos aparelhos de Estado
mas estes se apoiaram nessa espécie de pequenos panoptismos regionais e dispersos. De modo
que, se quisermos apreender os mecanismos de poder em sua complexidade e detalhe, não
poderemos nos ater unicamente à análise dos aparelhos de Estado. Haveria um esquematismo a
evitar - esquematismo que aliás não se encontra no próprio Marx - que consiste em localizar o
poder no aparelho de Estado e em fazer do aparelho de Estado o instrumento privilegiado, capital,
maior, quase único, do poder de uma classe sobre outra classe. De fato, o poder em seu exercício
vai muito mais longe, passa por canais muito mais sutis, é muito mais ambíguo, porque cada um de
nós é, no fundo, titular de um certo poder e, por isso, veicula o poder. O poder não tem por função
única reproduzir as relações de produção. As redes da dominação e os circuitos da exploração se
recobrem, se apoiam e interferem uns nos outros, mas não coincidem.


H.: Se o aparelho de Estado não é o vetor de todos os poderes, não é menos verdade, e
especialmente na França com o sistema panópticoprefeitoral, que ele abranja o essencial das
práticas disciplinares.

M.F: A monarquia administrativa de Luis XIV e Luis XV, tão fortemente centralizada, foi certamente
um primeiro modelo. Foi na França de Luís XV que se inventou a polícia. Não tenho de forma
alguma a intenção de diminuir a importância e a eficácia do poder de Estado. Creio simplesmente
que de tanto se insistir em seu papel, e em seu papel exclusivo, corre-se o risco de não dar conta
de todos os mecanismos e efeitos de poder que não passam diretamente pelo aparelho de Estado,
que muitas vezes o sustentam, o reproduzem, elevam sua eficácia ao máximo. A sociedade
soviética é um exemplo de aparelho de Estado que mudou de mãos e que mantém as hierarquias
sociais, a vida familiar, a sexualidade, o corpo quase como eram em uma sociedade de tipo
capitalista. Os mecanismos de poder que funcionam na fábrica entre o engenheiro, o
contra-mestre e o operário serão muito diferentes na União Soviética e aqui?
H.: Você mostrou como o saber psiquiátrico trazia consigo, pressupunha, exigia a reclusão asilar,
como o saber disciplinar trazia consigo o modelo da prisão, a medicina de Bichat o espaço do
hospital e a economia política a estrutura da fábrica. Pode-se perguntar, tanto para fazer efeito
quanto para lançar uma hipótese, se o saber geográfico não traz consigo o círculo da fronteira, seja
nacional, provincial ou municipal. E portanto se às figuras de enclausuramento, que você assinalou
- louco, delinqüente, doente, proletário - não se deve acrescentar a do cidadão soldado. O espaço
do enclausuramento não seria então infinitamente mais vasto e menos estanque?

M.F.: E uma idéia bastante sedutora. E este seria o homem das nacionalidades? Pois este discurso
geográfico que justifica as fronteiras é o discurso do nacionalismo...

H.: A geografia sendo portanto, com a história, constitutiva desse discurso nacional, o que marca
bem a instauração da escola de Jules Ferry, que confia à história-geografia a tarefa de
enraizamento e de inculcação do espírito cívico e patriótico.

M.F.: Tendo como efeito a constituição de uma identidade. Pois minha hipótese é de que o
indivíduo não é o dado sobre o qual se exerce e se abate o poder. O indivíduo, com suas
características, sua identidade, fixado a si mesmo, é o produto de uma relação de poder que se
exerce sobre corpos, multiplicidade, movimentos, desejos, forças.

Além disso, sobre os problemas de identidade regional e sobre todos os conflitos que podem
ocorrer entre ela e a identidade nacional, haveria muita coisa a dizer.

H.:

O mapa como instrumento de saber-poder se encontra nos três limiares que você distinguiu:
medida entre os gregos, investigação na Idade Média e inquérito no século XVIII. O mapa se
amolda a cada um dos limiares, se transforma de instrumento de medida em instrumento de
inquérito, para se transformar hoje em instrumento de exame (mapa eleitoral), mapa das
arrecadações de impostos, etc.). E verdade que a história do mapa (ou a sua arqueologia) não
obedece à cronologia que você estabeleceu.

M.F.:

Um mapa dos votos ou das opções eleitorais é um instrumento de exame. Creio que houve
historicamente essa sucessão dos três modelos. Mas é claro que essas três técnicas não ficaram
isoladas umas das outras. Elas imediatamente se contaminaram. O inquérito utilizou a medida e o
exame utilizou o inquérito. Depois o exame sobressaiu com relação aos outros dois, de modo que
reencontramos um aspecto da sua primeira pergunta: será que distinguir exame de inquérito não
reproduz a divisão ciência social/ciência da natureza? Com efeito, gostaria de ver como o inquérito
como modelo, como esquema administrativo, fiscal e político, pôde servir de matriz a esses
grandes percursos, realizados do final da Idade Média até o século XVIII, em que as pessoas que
vasculhavam o mundo colhiam informações. Elas não as colhiam em estado bruto. Literalmente,


elas inquiram, seguindo esquemas para eles mais ou menos claros, mais ou menos conscientes. E
acredito que as ciências da natureza se alojaram de fato no interior desta forma geral que era o
inquérito - como as ciências do homem nasceram a partir do momento em que foram
aperfeiçoados os procedimentos de vigilância e de registro dos indivíduos. Mas isso foi somente o
ponto de partida.

E, pelas interrelações que imediatamente se produziram, inquérito e exame interfeririam um no
outro, e por conseguinte ciências da natureza e ciências do homem igualmente intercruzaram seus
conceitos, seus métodos, seus resultados. Creio que a geografia seria um bom exemplo de
disciplina que utiliza sistematicamente inquérito, medição e exame.

H.:

Há aliás no discurso geográfico uma figura onipresente: a do inventário ou catálogo. E este tipo de
inventário utiliza o triplo registro do inquérito, da medição e do exame. O geógrafo - talvez seja a
sua função essencial, estratégica - coleta a informação. Inventário que em estado bruto não tem
grande interesse, e que de fato só é utilizável pelo poder. O poder não tem necessidade de ciência,
mas de uma massa de informações, que ele, por sua posição estratégica, e capaz de explorar.

Compreende-se assim melhor a pouca importância epistemológica dos trabalhos geográficos;
enquanto que, por outro lado, são (ou melhor, eram) de uma utilidade considerável para os
aparelhos de poder. Os viajantes do século XVII ou os geógrafos do XIX eram na verdade agentes
de informações que coletavam e cartografavam a informação, informação que era diretamente
explorável pelas autoridades coloniais, os estrategistas, os negociantes ou os industriais.

M.F.:

Posso citar, com reservas, um fato. Uma pessoa especializada em documentos da época de Luís
XIV, consultando a correspondência diplomática do século XVII, se apercebeu de que muitas
narrativas, que foram em seguida reproduzidas como narrativas de viajantes e que relatavam um
monte de maravilhas, plantas incríveis, animais monstruosos, eram na verdade narrativas
codificadas. Eram informações precisas sobre a situação militar do país visitado, os recursos
econômicos, os mercados, as riquezas, as possibilidades de relação. De modo que muita gente
atribui a ingenuidade tardia de certos naturalistas e geógrafos do século XVIII coisas que na
realidade eram informações extraordinariamente precisas, cuja chave parece ter sido descoberta
agora.

H.:

Quando nos perguntamos por que a geografia não conheceu nenhuma polêmica, nós logo
pensamos na fraca influência que Marx exerceu sobre os geógrafos. Não houve geografia
marxista, nem mesmo tendência marxista em geografia. Os geógrafos que se dizem marxistas na
verdade se desviam para a economia ou a sociologia, privilegiam as escalas planetária e média.
Marxismo e geografia dificilmente se articulam. Talvez o marxismo, em todo o caso O Capital, e de
modo geral os textos econômicos, privilegiando o fator tempo, não se prestam bem à
espacialização. Trata-se disto naquela passagem de uma entrevista em que você diz: "Seja qual
for a importância das modificações introduzidas nas análises de Ricardo, eu não creio que estas
análises econômicas escapem ao espaço epistemológico instaurado por Ricardo"?

M.F.:

Marx, para mim, não existe. Quero dizer, esta espécie de entidade que se construiu em torno de
um nome próprio, e que se refere às vezes a um certo indivíduo, às vezes à totalidade do que
escreveu e às vezes a um imenso processo histórico que deriva dele. Creio que suas análises
econômicas, a maneira como ele analisa a formação do capital são em grande parte comandadas
pelos conceitos que ele deriva da própria trama da economia ricardiana. O mérito de dizer isso não
é meu, foi Marx mesmo quem o disse. Mas, em contrapartida, sua análise da Comuna de Paris ou

o seu 18 Brumário de Luís Bonaparte é um tipo de análise histórica que manifestamente não

depende de um modelo do século XVIII.

Fazer Marx funcionar como um "autor", localizável em um manancial discursivo único e suscetível
de uma análise em termos de originalidade ou de coerência interna, é sempre possível. Afinal de
contas, tem-se o direito de "academizar" Marx. Mas isso é desconhecer a explosão que ele
produziu.

H.:

Se se relê Marx através de uma exigência espacial, sua obra parece heterogênea. Há passagens
inteiras que denotam uma sensibilidade espacial espantosa.

M.F.:

Há algumas admiráveis. Como tudo que Marx escreveu sobre o exército e seu papel no
desenvolvimento do poder político. São coisas muito importantes que praticamente foram deixadas
de lado, em proveito dos incessantes comentários sobre a mais-valia.

Gostei muito desta entrevista com vocês, porque mudei de opinião entre o começo e o fim.
Confesso que no começo pensei que vocês reivindicavam o lugar da geografia como aqueles
professores que protestam quando se lhes propõe uma reforma do ensino: "Vocês diminuíram a
carga horária das ciências naturais, ou da música, etc. Então eu pensei: "É interessante que eles
queiram que se faça a sua arqueologia, mas, afinal de contas, que eles a façam!" Eu não tinha
percebido o sentido da objeção de vocês. Agora me dou conta de que os problemas que vocês
colocam a respeito da geografia são essenciais para mim. Entre um certo número de coisas que
relacionei estava a geografia, que era o suporte, a condição de possibilidade da passagem de uma
para outra. Deixei as coisas em suspenso ou fiz relações arbitrárias.

Cada vez mais me parece que a formação dos discursos e a genealogia do saber devem ser
analisadas a partir não dos tipos de consciência, das modalidades de percepção ou das formas de
ideologia, mas das táticas e estratégias de poder. Táticas e estratégias que se desdobram através
das implantações, das distribuições, dos recortes, dos controles de territórios, das organizações de
domínios que poderiam constituir uma espécie de geopolítica, por onde minhas preocupações
encontrariam os métodos de vocês. Há um tema que gostaria de estudar nos próximos anos: o
exército como matriz de organização e de saber - a necessidade de estudar a fortaleza, a
"campanha", o "movimento", a colônia, o território. A geografia deve estar bem no centro das
coisas de que me ocupo.

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