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quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Elogio da Loucura - Erasmo de Rotterdam [parte 6]

algum que não sinta mais ou menos os efeitos da minha beneficência. Nenhuma das outras
divindades reparte igualmente, entre os mortais, os seus favores. Não cresce por toda parte
aquele vinho generoso e saboroso que afasta as aflições importunas e enche até o ânimo
mais melancólico de alegria, de coragem e de esperanças. Vênus raramente concede o dom
da beleza; Mercúrio dá a poucos a eloqüência e Hércules é parco dispensador das riquezas; o
homérico Júpiter na cabeça de muito poucos põe a coroa; Marte freqüentemente recusa aos
dois exércitos o seu auxílio; Apolo costuma dar respostas desagradáveis aos que consultam
o seu oráculo; o filho de Saturno constantemente lança suas setas; Febo às vezes manda a
peste e Netuno mata mais pessoas do que salva. Quanto às horríveis divindades chamadas
Vejoves, como seriam Plutão, a Discórdia, o Castigo, a Febre, e outras tantas que deveriam
antes chamar-se carniceiras que divindades, não merecem em absoluto que eu me dê ao
trabalho de lhes fazer alusão.

Portanto, a verdade é que os outros deuses não são bons e benéficos para todos os
mortais, sendo a Loucura a única deusa que cumula de favores todo o gênero humano. E o
admirável é que a minha generosidade não é manchada por nenhum interesse. Sou a única
que não exige nem votos nem ofertas. Minha divindade não se ofende nem ordena vitimas
de expiação, quando omitida alguma cerimônia do meu culto. Não ponho em desordem o
céu e a terra para vingar-me de alguém que tendo convidado todos os outros deuses, só a
mim tenha esquecido em casa, deixando-me à margem do odor e da fumaça das vítimas
sacrificadas. Para confusão e vergonha dos outros deuses, deverei eu mesma dizer que se
mostram tão incontestáveis e caprichosos que seria um mal absolutamente menor deixá-los
em abandono do que adorá-los. Com eles se deveria fazer o que se costuma praticar com as
pessoas intratáveis e inclinadas ao mal, isto é, cortar com eles toda correspondência, uma
vez que tão caro é o preço de sua amizade.
E quem acreditaria, agora, que essa minha conduta devesse provocar desprezo? Até
agora, é voz geral, ninguém pensou em prestar à Loucura honras divinas; ninguém lhe
consagrou um templo; ninguém a nutriu com vapores das vitimas. Para falar-vos com
franqueza, e creio que já o disse, tamanha ingratidão me causa grande surpresa; mas, pouco
me importa isso e, de acordo com a minha natural facilidade, não levo a coisa a mal. Eu
cheiraria à sabedoria e seria indigna de ser Loucura se reclamasse essas honras divinas. Que
é que se me ofereceria sobre os altares? Um pouco de incenso, um pouco de farinha, um
bode, um porco. Poderia eu permitir que se degolassem esses inocentes animais para
deleitar-me o olfato? Oh! que ridículas bagatelas! Tenho um culto, sim, um culto que
abrange o mundo inteiro e que todos os mortais me prestam, e os próprios teólogos o
consolidam pelo exemplo. Não tenho a bárbara e cruel ambição de Diana, que vê com prazer
as vítimas humanas, mas creio, ao contrário, ser religiosamente servida e venerada quando
me vejo esculpida em cada coração e representada pelos costumes e pela conduta.
A propósito de culto, o que os cristãos prestam aos santos consiste quase todo em
amá-los e imitá-los. Oh! como são numerosos os que, em pleno meio-dia, acendem velas aos
pés da Virgem Mãe de Deus! Mas, não se acha quase nenhum que siga os seus exemplos de
castidade, de modéstia, de zelo pela causa da salvação. No entanto, a imitação das suas
virtudes seria o único culto capaz de assegurar o céu aos devotos.
De resto, porque hei de exigir um templo, se possuo um tão vasto e tão belo, que é a terra
inteira? Não me faltam ministros, nem sacerdotes, salvo nos lugares onde não existe nenhum
homem. Eu não desejaria que me julgásseis tão idiota ao ponto de me preocupar com
estátuas e imagens: tais figuras seriam de resultados bem funestos para o nosso culto, pois

que muitas vezes sucede que os devotos estúpidos e materiais tomam a imagem pelo santo,
e, nesse caso, a nossa sorte seria a mesma dos que são suplantados por seus vigários. Todos
os mortais são estátuas a mim erigidas, imagens vivas da minha pessoa, mesmo contra a
própria vontade. Consinto, pois, de bom grado, que os outros deuses tenham templos, um
num canto da terra, outro em outro, e sejam festejados apenas em certos dias do ano.
Adore-se Febo em Rodes, Vênus em Cipre, Juno em Argos, Minerva em Atenas, Júpiter no
Monte Olimpo, Netuno em Taranto, Príapo em Lâmpasco. Quanto à minha condição divina,
será sempre mais gloriosa que a deles, enquanto a terra for o meu templo e todos os mortais
as minhas vítimas.
Poderá, talvez, parecer a alguém que eu esteja pregando impudentes mentiras. Quero,
porém mostrar-vos que tudo isso é a pura verdade. Reflitamos um pouco sobre a vida
humana, e se eu não vos demonstrar que sou a deusa à qual todos os homens são mais gratos
e que eles mais estimam, desde o cetro ao bastão do pastor, acima de todas as coisas, estou
disposta a deixar de ser a Loucura. Não quero, contudo, dar-me ao trabaho de percorrer
todas as condições, pois demasiado longa seria a carreira. Limitar-me-ei, assim, a indicar as
principais, das quais facilmente se poderá inferir o resto.
***
A começar pelo vulgo, ou seja a gentinha, não há dúvida de que todo ele me pertence
pois tão fecundo é em toda sorte de loucuras, tal é o numero das que descobre diariamente,
que mil Demócritos seriam poucos para rir-se bastante, sendo que esses mil Demócritos
ainda precisariam de outro Demócrito para rir-se deles. É incrível dizer-se quanto esses
grosseiros homenzinhos servem diariamente de divertimento, de riso e de chacota aos
deuses. Para vos convencerdes disso, convém dizer-vos uma coisa. Os deuses são sóbrios
até à hora do almoço, empregando essas horas matinais em contenciosas deliberações e em
escutar as preces dos mortais. Terminada a refeição, ao sentirem subir à cabeça os vapores
do néctar sorvido a largos goles, não sabem mais aplicar-se a assuntos de alguma
importância. Que pensais que eles fazem, então, para restaurar o cérebro? Reúnem-se todos
na parte mais elevada do céu e, sentados lá em cima, olham para baixo, divertindo-se à
grande com o espetáculo das várias ações humanas. Deuses imortais! Que bela e ridícula
comédia não resultará de todos os movimentos dos loucos? Bem posso dizê-lo, pois que às
vezes participo desse divertimento das divindades poéticas.
Um se apaixona perdidamente por uma mulherzinha, e, quanto menos correspondido,
tanto mais acesa se torna sua paixão amorosa; outro casa-se com o dote e não com a moça;
outro prostitui a própria mulher vendendo-a ao primeiro que encontra; outro, finalmente,
agitado pelo demônio do ciúme, espia como um Argos a conduta da esposa. E que coisas
estranhas não se dizem e fazem quando morre um parente próximo? Chega-se ao ponto de
pagar a pessoas que finjam chorar e gesticulem como cômicos. Quanto maior é a alegria
experimentada pelo coração, tanto maior é a tristeza que o rosto aparenta, o que deu origem
ao provérbio grego: Chorar na sepultura da madrasta. Este tira o quanto pode, seja de onde
for, e dá tudo de presente à própria barriga, com o risco de morrer de fome depois de
satisfeita a gulodice; aquele põe toda a sua felicidade no ócio e no sono; há alguns que,
preocupados sempre com os negócios alheios, descuram inteiramente dos próprios
interesses; vêem-se os que contraem dívidas para pagar as dos outros e, quando se julgam
ricos, verificam que estão falidos; há os que, vivendo pobremente, não conhecem outra  felicidade senão a de enriquecer os seus herdeiros; outros, ávidos de riquezas, percorrem os
mares em busca de um ganho incerto, confiando às ondas e aos ventos uma vida que
nenhum ouro do mundo poderia resgatar; outros, sedentos de sangue, preferem tentar a sorte
no meio dos perigos e dos horrores da guerra a passar seus dias, cômoda e tranqüilamente,
no seio da família; enfim, gabam-se de uma gorda herança, quando conseguem apoderar-se
do ânimo de algum velho que está para morrer sem herdeiros, ou quando têm a fortuna de
cativar a graça e o favor de uma rica velhota. Mas, depois, como se riem os deuses, ao
verem esses pescadores de dinheiro nas próprias redes!
Os negociantes, sobretudo, são os mais sórdidos e estúpidos atores da vida humana: não
há coisa mais vil do que a sua profissão, e, como coroamento da obra, exercem-na da
maneira mais porca. São, em geral, perjuros, mentirosos, ladrões, trapaceiros, impostores.
No entanto, devido à sua riqueza, são tidos em grande consideração e chegam a encontrar
frades aduladores, particularmente entre os mendicantes, que lhes fazem humildemente a
corte e publicamente lhes dão o nome de veneráveis, a fim de lhes abiscoitar uma parte dos
mal adquiridos tesouros. Vêem-se, também, alguns sequazes de Pitágoras, que adotando a
opinião desse filósofo, segundo a qual todos os bens são comuns, usurpam concientemente
tudo o que podem, como se conseguissem uma herança legítima. Outros, imaginando-se
ricos, arquitetam belíssimas quimeras de fortuna e vivem felizes nas suas esperanças.
Alguns querem passar por ricos, embora às vezes chegue a lhes faltar o necessário. Um
apressa-se a esbanjar todos os seus bens, enquanto outro está sempre preocupado em
acumular, por meios lícitos, tudo o que pode. Há os que anseiam por obter um cargo, e os
que, acima de tudo, preferem viver ociosamente sentados a um canto do lar. Enfurecem-se
as partes com a demora do processo, parecendo apostar qual das duas tem mais a
possibilidade de enriquecer um juiz venal e um advogado prevaricador, cujo intuito não é
senão prolongar a demanda, que só para eles traz vantagens. Os homens agitados e
sediciosos andam sempre atrás de novidades, enquanto os inquietos meditam grandes
empresas. Alguns empreendem uma romaria a Jerusalém, a Roma, a São Tiago, onde não
têm nada que fazer, enquanto deixam abandonados em casa a mulher e os filhos, que tanto
necessitam de sua presença.
Se, finalmente, pudésseis observar, do mundo da lua, como o fez Menipo, as inúmeras
agitações dos mortais, decerto acreditaríeis estar vendo uma densa nuvem de moscas ou de
pernilongos brigando, insidiando-se, guerreando-se, invejando-se, espoliando-se,
enganando-se, fornicando-se, nascendo, envelhecendo, morrendo. Não podeis sequer
imaginar os horrores e as revoluções com que enche a terra esse animalzinho, tão pequeno e
de tão pouca duração, que vulgarmente se chama homem.
Quantas vezes um rápido turbilhão guerreiro ou pestífero basta para subtrair e dizimar
num momento muitos milhares de homens! Mas, eu própria seria profundamente estúpida e
mereceria que Demócrito se risse de mim a valer, se pretendesse descrever todas as
extravagâncias e loucuras do vulgo. Passemos, pois, a falar dos que conservam, entre os
homens, uma aparência de sabedoria e possuem, como dizem eles esse ramo de ouro de
Virgílio.
Entre esses, ocupam o primeiro posto os gramáticos, ou sejam os pedantes. Essa espécie
de homens seria decerto a mais miserável, a mais aflita, a mais malquista pelos deuses, se eu
não tivesse o cuidado de mitigar os incômodos de tal profissão com gêneros especiais de
loucura. Não estão eles sujeitos apenas às cinco pragas e flagelos do epigrama grego, mas
ainda a seiscentos outros. Sempre famélicos e sujos nas suas escolas, ou melhor, nas suas cadeias ou lugares de suplícios e de tormentos, no meio de um rebanho de meninos,
envelhecem de fadiga, tornam-se surdos com o barulho, ficam tísicos com o fedor e a
imundície. No entanto, quem o diria? Graças a mim, os pedantes se julgam os primeiros
homens do mundo. Não podeis imaginar o prazer que experimentam fazendo tremer os seus
tímidos súditos com um ar ameaçador e uma voz altissonante. Armados de chicote, de vara,
de correia, não fazem senão decidir o castigo, sendo ao mesmo tempo partes, juizes e
carrascos. Parecem-se mesmo com o burro da fábula, o qual, por ter às costas uma pele de
leão, julgava-se tão valoroso como este. A sua imundície afigura-se-lhes asseio; o fedor
serve-lhes de perfume; e, acreditando-se reis em meio à sua miserabilíssima escravidão, não
desejariam trocar as próprias tiranias pelas de Falaris ou de Dionísio (79). O que, sobretudo,
contribui para torná-los felizes é a idéia que fazem da própria erudição. Embora não façam
senão meter palavras insignificantes e insulsas frivolidades na cabeça das crianças confiadas
aos seus cuidados — santo Deus! — consideram um nada diante deles os Palêmones e os
Donatos (80). Nem mesmo sei com que meios conseguem lisonjear as estúpidas mães e os
idiotas pais dos alunos, ao ponto de serem realmente considerados como os ilustres homens
que eles próprios se inculcam. Acrescentemos a isso outro gênero de prazer por eles
experimentado toda vez que conseguem descobrir, num velho papelucho todo sujo e comido
de traças, o nome da mãe de Anquises ou alguma palavra geralmente desconhecida, —
bubsequam, por exemplo, bovinatorem, manticulatorem — ou quando têm a sorte de
encontrar um pedaço de lápide antiga, na qual se encontrem caracteres truncados. Ah! por
Júpiter imortal! que tripúdio, que triunfo, que aplausos! Não foi certamente maior a alegria
de Cipião ao subjugar a África, nem a de Dario ao conquistar a Babilônia. É indizível a
alegria experimentada por esses pedantes, quando, ao lerem de porta em porta os seus versos
gelados e insulsos, encontram por acaso algum admirador. Logo se julgam novos Virgílios e
não sei se se gabam de que a alma de Marão lhe tenha passado pelo cérebro. Oh! como é
bonito vê-los trocar, entre si, elogio por elogio, admiração por admiração, lisonja por
lisonja! Se acontece que um homem da arte erra em alguma sintaxe e outro mais penetrante
do que ele o percebe — santo Deus! — que cenas, discussões, que injúrias, que invectivas!
A propósito de gramática, quero contar-vos uma bonita história: a história é verídica e, se
eu estiver mentindo, quero ter todos os gramáticos contra mim (vede só que terrível
declaração!). Conheço um homem de sessenta anos que conhece perfeitamente o grego, o
latim, as matemáticas, a filosofia, a medicina. Pois seríeis capazes de advinhar com que se
preocupa esse sábio universal, há uns vinte anos? Tendo abandonado todos os estudos,
dedica-se exclusivamente à gramática, pondo o cérebro num tormento contínuo. Só ama a
vida para ter tempo de dirimir algumas dificuldades dessa importante arte, e morreria
satisfeito se descobrisse um método seguro de distinguir bem as oito partes do discurso,
coisa que, a seu ver, não conseguiram com perfeição nem os gregos nem os latinos. Bem
vedes que é uma questão de suma importância para o gênero humano. Com efeito, não é
mesmo uma miséria estar sempre correndo o risco de tomar uma conjunção por advérbio?
Um tal equívoco mereceria uma guerra cruenta.
Quero, agora, observar-vos que há mais gramáticas do que gramáticos: só Aldo, um dos
meus favoritos nesse gênero, publicou cinco. Pois bem: o meu cabeçudo estuda-as todas,
mesmo quando escritas num estilo bárbaro e insuportável; analisa-as todas, da primeira até à
última, causando profunda inveja aos que escrevem tão mal sobre o assunto e torturado
sempre pela dúvida de que possam roubar-lhe a glória e o fruto de suas longas fadigas. Que vos parece esse ridículo sábio? Devemos chamá-lo de louco ou delirante? Chamai-o do que
quiserdes, desde que concordeis que é graças a mim que esse animal sobrecarregado de
misérias anda sempre tão satisfeito, tão orgulhoso de si mesmo e da sua sorte, a qual ele não
trocaria pela dos mais ricos e poderosos reis da terra.
Já os poetas não me devem tanto, não porque não sejam igualmente loucos, mas porque
têm o direito de ser membros ex professo do meu partido. Há muito tempo que se diz que
“os poetas e os pintores formam uma nação livre”. Os poetas fazem consistir toda a sua arte
em impingir lorotas e fábulas ridículas para deleitar os ouvidos dos tolos. Isso não impede
que, apoiados nessas ridicularias, se gabem de obter uma divina imortalidade e ainda a
prometam aos outros. O amor próprio e a adulação são os seus conselheiros indivisíveis, e
eu não tenho adoradores mais fiéis nem mais constantes do que eles.
Os oradores também pertencem à minha seita. Devo, porém confessar-vos que não são os
meus súditos mais fiéis, pois se assemelham, até certo ponto, aos filósofos. Apesar disso,
além de serem igualmente cheios de amor próprio e de vaidade, não deixam de ser fecundos
em frivolidades, sendo que os mais célebres chegaram a escrever a sério extensos tratados
sobre a maneira de pilheriar. O autor, pouco importa o nome, que dedicou a Herênio a arte
de dizer, inclui a loucura entre várias espécies de facécias. O próprio Quintiliano, esse
príncipe dos retóricos, compôs sobre o riso um capítulo mais volumoso do que a Ilíada, de
Homero. Segundo esse escritores, a loucura tem uma força maior do que a razão, porque,
muitas vezes, aquilo que não se pode conseguir com nenhum argumento se obtém com uma
chacota. Finalmente, eu não desejaria ser a Loucura, se a arte de provocar o riso com
gostosas piadas não fosse exclusivamente minha.
Outra espécie de pessoas mais ou menos da mesma laia é constituída pelos que
ambicionam uma fama imortal publicando livros. Todos esses escritores têm parentesco
comigo, sobretudo os que só publicam coisas insípidas. Quanto aos autores que só escrevem
para poucos, isto é, para pessoas de fino gosto e perspicazes, que não recusam o juízo de
Pérsio e de Lélio, confesso-vos ingenuamente que merecem mais compaixão do que inveja.
Imersos numa contínua meditação, pensam, tornam a pensar, acrescentam, emendam,
cortam, tornam a pôr, burilam, refundem, fazem, riscam, consultam, e, nesse trabalho, levam
às vezes nove e dez anos, de acordo com o preceito de Horácio, antes do manuscrito ser
impresso. Oh! como me causam piedade tais escritores! Nunca estando satisfeitos com o seu
trabalho, que recompensa podem esperar? Ai de mim! um pouco de incenso, um reduzido
número de leitores, um louvor incerto. Mas, respondei-me francamente: compensarão essas
tênues bagatelas o sacrifício do sono, mais doce do que tudo, da tranqüilidade, dos prazeres,
numa palavra, de todas as doçuras da vida? É preciso acrescentar ainda que esses
sonhadores que andam em busca de imortalidade arruinam a saúde, tornam-se pálidos,
magros, ramelentos e, às vezes, até cegos. São sempre miseráveis, invejados, não têm prazer
algum e, como resultado, só conseguem apressar a velhice e a própria morte. Malgrado tudo
isso, o nosso sábio considera suficiente, como remédio a tantos males, a aprovação de um ou
dois ramelentos da sua espécie.
Mas, falemos, agora, de um autor que escreva sob os meus auspícios e do qual seja eu a
Minerva. Não conhecendo a meditação, nem a tortura do cérebro, nem as vigílias, escreve
tudo o que sonha, tudo o que lhe vem à cabeça. Tudo lhe parece surpreendente e divino. A
pena mal pode acompanhar a velocidade da imaginação, e dos pensamentos. Não
dispendendo mais do que um pouco de papel, escreve um mundo de disparates e de
impertinências, convencido de que, publicando bobagens, grangeará mais facilmente os aplausos da maioria, isto é, de todos os tolos e de todos os ignorantes. E quem poderá negar
que esse homem seja verdadeiramente feliz? Responder-me-eis que, assim parecendo, é
preciso renunciar completamente à esperança de ser aplaudido pelos verdadeiros doutos!
Bolas! que grande sacrifício! Raramente sucede que esses críticos sábios e requintados dêem
importância ao meu autor. Mas, mesmo admitindo que todos eles o lessem, seria igualmente
dispensável o seu sufrágio para secundar o dos tolos e ignorantes, que representam a opinião
de quase todo o gênero humano. Poreis em dúvida essa verdade?
Compreendem-na ainda melhor os plagiários (81) que com suas facilidades se apropriam
das obras alheias, gozando da glória que aqueles dos quais eles a roubaram conseguiram
com imensa dificuldade. Não ignoram esses impudentes que, mais dia menos dia, será
descoberto o furto, mas, em compensação, esperam aproveitar-se dele por algum tempo. É
um prazer doido ver como se pavoneiam quando elogiados; quando, ao passar por um lugar,
são apontados e ouvem dizer: — Olhe, aquele ali é um homem verdadeiramente admirável;
quando vêem seus livros bem juntinhos e bem expostos na loja de algum livreiro. Seus
nomes são lidos no alto de cada página, e são no mínimo três todos estrangeiros, parecendo
caracteres mágicos. Esses nomes — por Júpiter imortal! — não têm significação alguma,
mas não deixam, em substância, de ser verdadeiros nomes! Considerando-se, além disso
toda a vastidão da terra, pode dizer-se que pouquíssimos são que os louvam, não sendo
muito diverso do dos ignorantes o gosto dos sábios. Costuma também acontecer,
freqüentemente, que esse nomes são inventados e tomados de empréstímo aos antigos. Há,
por exemplo, os que gostam de se chamar Telêmaco, outros Esteleno, outro Laerte, outros
Polícrates, outro Trasímaco, etc. Os nossos plagiários sentem-se orgulhosos de fazer reviver
esses nomes mortos e adotá-los, mas fariam bem, igualmente, se se chamassem camaleões,
abóboras, etc., e, segundo o uso de alguns filósofos, dessem aos seus livros os títulos de A
ou B. É engraçadíssimo ver essas azêmolas incensarem-se entre si nas letras, nas poesias e
nos elogios. — Venceste Alceu (82) — diz um. — E vós, Calímaco (83) — responde o
outro. — Eclipsastes o orador romano. — E vós superastes o divino Platão. — Às vezes,
esses generosos campeões injuriam-se reciprocamente, a fim de aumentarem pela emulação
a própria fama. Enquanto isso, o público fica suspenso, sem saber que partido tomar durante
a polêmica. Mas, em geral, acontece que os bravos antagonistas fazem prodígios, merecendo
ambos os louros da vitória e as honras do triunfo. No entanto, vós, sábios, vos rides dessas
belas coisinhas e as considerais como verdadeiras loucuras. E quem poderá dizer que não
tendes razão? Não podeis mesmo negar que somente eu faço a felicidade dos maus
escritores e dos plagiários, que decerto não trocariam os seus triunfos pelos dos Alexandres
ou dos Cipiões. Mas, acreditarão esses doutos, que eu vejo rir tão gostosamente, zombando
da loucura alheia, que não me devem também alguma obrigação? Se assim é, fiquem certos
de que ou são cegos ou miseravelmente ingratos. Passemos, pois, em revista as profissões
dos doutos.
Pretendem os advogados levar a palma sobre todos os eruditos e fazem um grande
conceito da sua arte. Ora, para vos ser franca, a sua profissão é, em última análise, um
verdadeiro trabalho de Sísifo (84). Com efeito, eles fazem uma porção de leis que não
chegam a conclusão alguma. Que são o digesto, as pandectas, o código? Um amontoado de
comentários, de glosas, de citações. Com toda essa mixórdia, fazem crer ao vulgo que, de
todas as ciências, a sua é a que requer o mais sublime o laborioso engenho. E, como sempre
se acha mais belo o que é mais difícil, resulta que os tolos têm em alto conceito essa ciência. Podemos unir a esses, com toda a honra, os dialéticos e os sofistas, que fazem mais
barulho do que todo o bronze dodôneo (85), sendo que cada um deles poderia superar em
tagarelice mais de vinte mulheres, mesmo dentre as que costumam distinguir-se pelo
falatório. Não obstante, ainda seria de desejar que não tivessem outro defeito a não ser o de
falar demais; mas, por desgraça nossa, são sempre discussões de lana-caprina, e, à força de
discutir para sustentar a verdade (como pretendem eles), perdem de vista, o mais das vezes,
a própria verdade. Esses eternos discutidores estão sempre contentes consigo mesmos e,
armados de três ou quatro silogismos, sempre dispostos a desafiar para a controvérsia quem
quer que seja e sobre qualquer argumento. A obstinação serve-lhes de espada, invencível,
pois não cedem nunca, ainda mesmo que tivessem de medir-se com um Estentor (86).
Seguem-se-lhes, imediatamente, os veneráveis filósofos, respeitáveis pela barba e pela
túnica. Gabam-se de ser os únicos sábios e acreditam que todos os outros homens não
passem de sombras móveis. Rasguemos esse véu de orgulho e de presunção, e vejamos o
que são os filósofos. Não passam, também, de ridículos loucos: quem poderá conter o riso
ao ouvi-los sustentar seriamente a infinidade dos mundos? O sol, a lua, as estrelas, todos
esses globos são por eles conhecidos tão bem como se os tivessem medido palmo a palmo
ou com um fio. Sem duvidar de nada, eles vos dizem a causa do trovão, dos ventos, dos
eclipses e de todos os outros mistérios físicos. Na verdade, ao ouvi-los falar com tanta
convicção, qualquer os julgaria membros do grande conselho dos deuses ou testemunhas
oculares da natureza quando tudo saiu do nada. Mas, a despeito disso, a natureza, essa hábil
produtora do universo, parece zombar das suas conjecturas. Basta, com efeito, refletir-se
sobre a estranha diversidade dos seus sistemas, para se dever confessar que eles não têm
nenhuma idéia segura, pois que, enquanto se gabam de saber tudo, não estão de acordo em
nada. Os filósofos nem ao menos se conhecem, porquanto, ao tentarem elevar-se às mais
sublimes especulações, caem num buraco com que não contavam e quebram a cabeça contra
uma pedra. Estragando a vista na contemplação meticulosa da natureza e com o espírito
sempre distante, vangloriam-se de distinguir as idéias, os universais, as formas separadas, as
matérias primas, os quid, os ecce, em suma, todos os objetos que, de tão pequenos, só
poderiam distinguir-se, se não me engano, com olhos de lince.
Em nenhuma outra ciência se despreza tanto o vulgo profano como nas matemáticas, que
consistem em triângulos, quadrados, círculos e outras figuras geométricas semelhantes, que
se sobrepõem uma às outras, confundindo tudo como um labirinto. Por fim, atordoam os
idiotas com diversas letras dispostas como um exército em ordem de batalha e subdivididas
em várias companhias.
Mas, não esqueçamos os astrólogos, aos quais o céu serve de biblioteca e os astros
servem de livros. Graças a esse estudo, compreendem tudo muito bem e revelam o futuro,
predizendo maiores prodígios do que os magos. E o mais bonito é que ainda têm a fortuna
de encontrar crédulos.
Talvez fosse melhor não falar dos teólogos, tão delicada é essa matéria e tão grande é o
perigo de tocar em semelhante corda. Esses intérpretes das coisas divinas estão sempre
prontos a acender-se como a pólvora, têm um olhar terrivelmente severo e, numa palavra,
são inimigos muito perigosos. Se acaso incorreis na sua indignação, lançam-se contra vós
como ursos furibundos, mordem-vos e não vos largam senão depois de vos terem obrigado a
fazer a vossa palinódia com uma série infinita de conclusões; mas, se recusais retratar-vos,
condenam-vos logo como hereges. E, mostrando essa cólera, chamando de herege, de ateu, conseguem fazer tremer os que não concordam com eles. Embora não haja ninguém que,
tanto como eles, dissimule os meus favores, não é menos verdadeiro que me devem muito.
Eis porque impus ao meu amor próprio favorecê-los mais do que a todos os outros mortais, e
de fato são eles os meus maiores prediletos. É por isso que, do alto da sua elevação e à
maneira de tantos anjos que habitam o terceiro céu, consideram o resto dos homens como
outros tantos animais bajuladores e têm piedade deles. Cercados de uma série de magistrais
definições, conclusões, corolários, proposições explícitas, em suma, de tudo o que compõe a
malícia da escola sacra, usam de tantos subterfúgios que o próprio Vulcano não conseguiria
embrulhá-los, mesmo empregando a rede de que se serve para mostrar aos deuses os seus
cornos nascentes. Não há nó que esses senhores não saibam desfazer de um golpe com a
mais que tenédia bipene do distinguo: bipene formada de todos os novos vocábulos sonoros
e empolados que nasceram no seio da sutileza escolástica.
Observemos os nossos oráculos em meio às suas mais sublimes funções; observemo-los,
repito, a interpretar a seu talante os ocultos mistérios da salvação e por que motivo foi criado
e ordenado o mundo. Trata-se de saber por que canais passou à posteridade a mancha do
pecado original? Trata-se da Encarnação e da Eucaristia? Ah! tais mistérios são muito
batidos e dignos apenas de teólogos noviços! Eis as questões dignas dos grandes mestres,
dos mestres iluminados, como dizem eles, os quais, ao tratar desses argumentos, se agitam e
tomam fôlego: — Houve algum instante na geração divina? — Jesus Cristo tem muitas
filiações? — É possível esta proposição: — Deus padre odeia o seu filho? — Ter-se-ia Deus
unido pessoalmente a uma mulher, ao diabo, a um burro, a uma abóbora, a uma pedra? —
No caso de Deus se ter unido à natureza de uma abóbora, como fez com a natureza humana,
de que maneira essa beata e divina abóbora teria pregado, feito milagres e sido crucificada?
— Como teria ela consagrado São Pedro, se este tivesse dito missa quando o corpo de Jesus
Cristo estava pregado na cruz? — Poder-se-ia dizer, então, que o Salvador era um
verdadeiro homem? — Será permitido comer e beber depois da ressurreição? (Essa dúvida
existe no íntimo dos nossos reverendos, que muito satisfeitos ficariam com uma resposta a
essa pergunta).
Mas, não consiste somente nisso o armazém teológico; há ainda inúmeras outras
argúcias, não menos frívolas e sutis do que as supracitadas. Tais são, por exemplo, o instante
da geração divina, as noções, as relações, as formalidades, os quid, os ecce, e tantas outras
quimeras de natureza semelhante. Duvido que alguém seja capaz de descobri-las, a não ser
que tenha uma vista tão penetrante que lhe permita distinguir, através de densas nuvens,
objetos inexistentes.
Acrescentemos a tudo isso a sua moral estranha e contraditória, diante da qual são um
nada os paradoxos estóicos. Sustentam, por exemplo, que concertar o sapato de um pobre
em dia de domingo é um pecado maior do que estrangular mil pessoas; que seria preferível
deixar cair o mundo no nada de onde veio a proferir a menor mentira, etc. Além disso,
contribuem para sutilizar ainda mais essas sutilíssimas sutilezas todos os diversos
subterfúgios dos escolásticos; e assim é que seria menos difícil sair de um labirinto do que
desembaraçar-se do embrulho dos realistas, dos noministas, dos tomistas, dos albertistas,
dos occanistas, dos scotistas, — ai de mim! já me falta a respiração, e, contudo, só citei as
principais seitas da escola, não falando de muitíssimas outras. Em todas essas facções, são
tantas as erudições e tantas as dificuldades, que, se os próprios apóstolos descessem à terra e
fossem obrigados a discutir com os teólogos modernos sobre essas sublimes matérias, sou
de opinião que teriam necessidade de um novo espírito totalmente diverso daquele que, em

seu tempo, lhes dava a possibilidade de falar. São Paulo tinha fé, mas não deu uma definição
da fé bastante magistral quando disse: A fé é a substância da coisa esperada e o argumento
da que não aparece. No mesmo apóstolo ardia o fogo da caridade, mas ele não se mostrou
bom lógico ao omitir a definição e a divisão dessa virtude no capítulo XIII da sua primeira
epístola aos coríntios. Os apóstolos consagravam com devoção e com piedade o sacramento
da Eucaristia: se tivessem, porém, de explicar como Deus pode passar de um lugar para
outro por meio da consagração; como se dá a transubstanciação; como um mesmo corpo
pode encontrar-se ao mesmo tempo em vários lugares; que diferença existe entre o corpo de
Jesus Cristo no céu, na cruz e na Eucaristia; em que momento se verifica a
transubstanciacão, de vez que a fórmula sacramental, como dizem eles, sendo composta de
sílabas e de palavras, só pode ser pronunciada sucessivamente, — creio eu que, se esses
primeiros teólogos do cristianismo tivessem de dirimir tais dificuldades, teriam necessidade
da agudeza dos scotistas, que são verdadeiros Mercúrios na arte de argumentar e definir.
Tiveram os apóstolos, é verdade, a sorte de conviver com a mãe de Jesus, mas nenhum deles
a conheceu tão bem como os nossos teólogos, que provaram geometricamente ter sido a
Virgem fecunda preservada da mancha do pecado original. São Pedro recebeu as chaves das
próprias mãos do Homem-Deus, sendo de supor-se que este não tivesse tido a intenção de
colocá-las em más mãos; mas, não sei se o beato pescador conhecia bem o significado
daquelas místicas chaves. Nós, porém, sabemos, com certeza, que ele nunca perguntou a
Deus seu mestre como poderia um grosseiro e ignorante pescador ter as chaves da ciência.
Os apóstolos batizavam continuamente, mas, apesar disso, nunca ensinaram a causa formal,
material, eficiente e final do batismo, nem fizeram menção do caráter delével e indelével do
mesmo. Esses fundadores da religião cristã adoravam a Deus, mas a sua adoração
apoiava-se neste princípio fundamental do evangelho: Deus é um espírito puro e é preciso
adorá-lo em espírito e verdade. Parece, igualmente, não ter sido revelado aos apóstolos que
o culto, nas escolas chamado latria, possa prestar-se tanto a Jesus Cristo em pessoa como às
suas imagens rabiscadas na parede com carvão, bastando que representem o filho de Deus
dando a bênção com os dois dedos, índice e médio, da mão direita levantada, e com a cabeça
ornada por uma longa cabeleira e um tríplice círculo de raios. Mas, como poderiam os
apóstolos possuir tão grande e salutar erudição? Eles não encaneceram no fatigante estudo
das ciências físicas e metafísicas de Aristóteles e dos scotistas. Os apóstolos costumam falar
da graça, mas não distinguem a graça gratuita da graça gratificante; exortam às boas obras,
mas não distinguem a obra operante da obra operada; inculcam a caridade, mas não
separam a infusa da adquirida, além de não explicarem se essa amável e divina virtude é
substância ou acidente, criada ou incriada; detestam o pecado, mas eu quisera morrer se
eles já foram capazes de definir cientificamente o que chamamos de pecado, a não ser que
tenham sido inspirados pelo espírito dos scotistas. Se São Paulo, pelo qual devemos julgar
todos os outros apóstolos, tivesse tido uma boa teoria do pecado, teria ele condenado com
tanta insistência as polêmicas, as contendas, as querelas, as discussões em torno de
palavras? Digamos, pois, com franqueza, que São Paulo não conhecia as argúcias e as
qualidades espirituais que distiguem os modernos, tanto mais quanto as controvérsias
surgidas na primitiva Igreja não passavam de pueris mesquinharias diante do refinamento
dos nossos mestres, que, em matéria de sutileza, ultrapassaram de muito o próprio sofista
Crisipo (87). — Façamos, porém, justiça à sua modéstia, pois não condenam o que os
apóstolos escreveram com pouco acerto e precisão, mas se limitam a interpretá-lo de modo favorável, para usar de certa consideração para com a venerável antigüidade e para com o
apostolado. Não seria, aliás, razoável pretender que os apóstolos tratassem dessas difíceis
matérias, quando o seu divino mestre nunca lhes disse uma palavra a respeito.
Já não têm a mesma consideração para com os Crisóstomos, os Basílios, os Jerônimos, os
pais da Igreja, não encontrando dificuldade em pôr em certas passagens de suas obras: Isto
não foi recebido. É preciso considerar que esses antigos doutores deviam refutar os filósofos
pagãos e, naturalmente, os obstinadíssimos judeus: faziam-no, porém, mais pelo exemplo e
pelos milagres do que com argumentos, tanto mais quanto os primitivos inimigos do
cristianismo eram de gênio tão limitado que nunca poderiam conceber um único princípio de
Scot. Mas, adiantem-se agora, se quiserem; e os incrédulos, os pagãos, os judeus, os
hereges, todos, todos sem exceção, deverão converter-se e ceder à forca das ínfimas
sutilezas dos teólogos modernos. É preciso ser estúpido ou impudente para não conhecer o
valor das suas argúcias ou desprezá-las. Acho prudente aconselhar a rendição ao primeiro
assalto ou a aceitação do desafio quando houver igualdade de armas. Mas, nesse caso, seria
o mesmo que lançar um mago contra um mago, ou empregar uma espada encantada contra
outra espada encantada. Seria, em suma, o mesmo que tecer o pano de Penélope (88).
A propósito de combate, parece-me que os cristãos deveriam mudar as suas tropas na
guerra movida contra os infiéis. Se em lugar da grosseira e material soldadesca, que há tanto
tempo empregam inutilmente nas cruzadas, expedissem, contra os turcos e os sarracenos, os
clamorosos scotistas, os obstinados occanistas, os invencíveis albertistas e toda a milícia dos
sofistas, quem poderia resistir ao assalto dessas tropas coligadas? Bem ridícula seria, a meu
ver, uma tal batalha, e inteiramente nova a vitória. Quem seria tão frio ao ponto de não
acender-se ao fogo das disputas? Quem seria tão poltrão ao ponto de não acorrer aos golpes
dessas esporas? Quem pode gabar-se de ter tão boa vista que não se perturbe com o
esplendor dessas sutilezas?
Pensais que eu esteja brincando? Não vos iludais. Uma tal armada seria ainda menos
numerosa do que se supõe, porque, entre os próprios teólogos, existem homens de uma
doutrina sólida e judiciosa, aos quais causam náuseas essas frívolas e impertinentes
argúcias, e os há ainda de uma consciência tão reta que experimentam por elas horror, como
que por uma espécie de sacrilégio. — Que horrível heresia! — exclamam eles. — Em lugar
de adorarem a impenetrável obscuridade dos nossos mistérios (que justamente por isso são
mistérios), pretendem explicá-los. E de que maneira? Com uma linguagem imunda e
argumentos não menos profanos que os dos gentios. Arrogam-se insolentemente o direito de
definir e discutir verdades incomprensíveis, profanando assim a majestade da teologia com
as palavras e sentenças mais insulsas e triviais.
No entanto, esses insignificantes faladores envaidecem-se com sua vazia erudição e
experimentam tanto prazer em ocupar-se dia e noite com essas suavíssimas nênias que nem
tempo lhes sobra para ler ao menos uma vez o evangelho e as cartas de São Paulo. E o mais
bonito é que, enquanto assim cacarejam em suas escolas, imaginam-se os defensores da
Igreja, que cairia na certa, se cessassem um momento de sustentá-la com a forca dos seus
silogismos, exatamente como Atlante, segundo os poetas, sustenta o céu com as costas.
Contam ainda os nossos discutidores com outro grande motivo de felicidade. As
escrituras são, em suas mãos, como um pedaço de cera, pois costumam dar-lhes a forma e o
significado que mais correspondam ao seu gênio. Pretendem que as suas decisões acerca das
sagradas escrituras, uma vez aceitas por alguns outros escolásticos, devam ser mais respeitadas do que as leis de Solon e antepostas aos decretos dos papas. Erigem-se em
censores do mundo e, se alguém se afasta um pouquinho das suas conclusões, diretas ou
indiretas, obrigam-no logo a se retratar, sentenciando como oráculos: Essa proposição é
escandalosa, esta aqui é temerária, aquela cheira à heresia, aquela outra soa mal. Dessa
forma, nem o evangelho, nem o batismo, nem Paulo, nem Pedro, nem Jerônimo, nem
Agostinho, nem o próprio Tomás de Aquino, embora aristotélico fanático, saberiam fazer
um ortodoxo sem o beneplácito desses bacharéis, tão necessário é a sua sutileza para bem
decidir da ortodoxia. Quem teria suspeitado que não fosse cristão alguém que sustentasse
serem igualmente boas as duas proposições: Sócrates, corres e Sócrates corre, se os
teólogos de Oxford não tivessem querido fazer sabê-lo, fulminando as duas proposições
condenáveis? Como se teria purgado a Igreja de tantos erros, se não tivesse podido
distingui-los antes de ter sido aplicado o grande sigilo da universidade às proposições
condenadas?
Não considerareis felicíssimas essas pessoas? Mas, prossigamos ainda um pouco.
Quantas lindas lorotas não vão esses doutores impingindo a respeito do inferno? Conhecem
tão bem todos os seus apartamentos, falam com tanta franqueza da natureza e dos vários
graus do fogo eterno, e das diversas incumbências dos demônios, discorrem, finalmente,
com tanta precisão sobre a república dos danados, que parecem já ter sido cidadãos da
mesma durante muitos anos. Além disso, quando julgam conveniente, não se poupam o
trabalho de criar ainda novos mundos, como o mostraram formando o décimo céu, por eles
denominado empíreo e fabricado expressamente para os beatos, sendo mais do que justo que
as almas glorificadas tivessem uma vasta e deliciosa morada para aí gozarem de todo o
conforto, divertindo-se juntas e até jogando a péla quando tivessem vontade.
Os nossos finos pensadores têm a cabeça tão cheia, tão agitada por essas bobagens, que
decerto não estava mais cheia a cabeça de Júpiter quando, ao querer parir Minerva, implorou
o socorro do machado de Vulcano. Não vos admireis, pois, ao vê-los aparecer nas defesas
públicas com a cabeça cuidadosamente cingida com tantas faixas, pois não fazem senão
procurar impedir, por meio desses respeitáveis liames, que ela arrebente de todos os lados
em virtude da porção de ciência de que o seu cérebro se acha sobrecarregado. Não posso
deixar de rir (podeis, agora, ver se não se trata de um grande argumento, pois que a Loucura
raramente ri), não posso deixar de rir ao escutar essas célebres personagens, que nem sequer
falam, mas balbuciam. Só se reputam teólogos quando perfeitos senhores de sua bárbara e
porca linguagem, que só pode ser entendida pelos da arte; gabam-se disso, chamando-lhe
agudeza e dizendo com arrogância que não falam para o vulgo profano; e acrescentam que a
dignidade das santas escrituras não permite subordiná-las às regras gramaticais. Admiremos
a majestade dos teólogos! Somente a eles é permitido falar incorretamente e, quando muito,
se concede que o vulgo lhes dispute essa prerrogativa. Finalmente, os teólogos se colocam
imediatamente depois dos deuses e quando, por uma espécie de religiosa veneração, se
ouvem chamar nossos mestres, imaginam ver nesse título alguma coisa daquele inefável
nome composto de seis letras e tão adorado pelos judeus. Nessa presunção, querem que se
escreva MESTRE NOSSO, com letras maiúsculas, sendo esse título tão misterioso que, se em
latim se modificasse a ordem das duas palavras e se pusesse o Nosso antes do Mestre, tudo
estaria perdido, ou pelo menos sofreria um grande vexame a majestade do nome teológico.
Depois desses, segue-se imediatamente a espécie melhor do gênero animal, isto é, os que
vulgarmente se chamam monges ou religiosos. Seria, porém, abusar grosseiramente dos
termos chamá-los, ainda hoje, por tais nomes. Com efeito, por via de regra, não há pessoas mais irreligiosas do que essas e, como a palavra monge significa solitário, parece-me não se
poder aplicá-la mais ironicamente as pessoas que se encontram em toda parte,
acotovelando-se a cada passo. Sem o meu socorro, que seria desses pobres porcos dos
deuses? São de tal forma odiados que, quando por acaso são vistos, costuma-se tomá-los por
aves de mau agouro. Isso não impede que cuidem escrupulosamente da sua conservação e se
considerem personagens de alta importância. A sua principal devoção consiste em não fazer
nada, chegando ao ponto de nem ler. Sem dar-se ao trabalho de entender os salmos, já se
julgam demasiados doutos quando lhes conhecem o número, e, quando os cantam em coro,
imaginam enlevar o céu com a asnática melodia. Entre esse variegado rebanho, alguns se
encontram que se gabam da própria imundície e da própria mendicidade, indo de casa em
casa esmolar, mas com uma fisionomia tão descarada que parecem mais exigir um crédito
do que pedir a esmola. Albergues, botequins, carros, diligências, todos, em suma, são por
eles importunados, com grande prejuízo dos verdadeiros necessitados. É dessa forma que
pretendem ser, como dizem eles, os nossos apóstolos, com toda a sua imundície, toda a sua
ignorância, toda a sua grosseria, todo o seu descaramento. Nada mais ridículo do que a
ordem exata e precisa que observam em todos os seus atos: tudo é feito por eles a compasso
e à medida. Os sapatos devem ter tantos nós, o cíngulo deve ser de tal cor, a roupa composta
de tantas peças, a cinta de tal qualidade e de tal largura, o hábito de tal forma e de tal
tamanho, a coroinha de tantas polegadas de diâmetro. Além disso, devem comer a tal hora,
tal qualidade e tal quantidade de alimento, dormir somente tantas horas, etc. Ora, todos
podem compreender muito claramente que é impossível conciliar tão precisa uniformidade
com a infinita variedade de opiniões e de temperamentos. Pois é nessa metódica
exterioridade que os monges encontram argumento para desprezar os que eles chamam de
seculares. Muitas vezes, dá causa a sérias contendas entre as diferentes ordens, a ponto
dessas santas almas que se vangloriam de professar a caridade apostólica se destruírem
mutuamente. E porque? Por causa de um cíngulo diverso ou da cor mais carregada da roupa.
Alguns desses reverendos mostram, contudo, o hábito de penitência, mas evitam que se
veja a finíssima camisa que trazem por baixo; outros, ao contrário, trazem externamente a
camisa e a roupa de lã sobre a pele. Os mais ridículos, a meu ver, são os que se horrorizam
ao verem dinheiro, como se se tratasse de uma serpente, mas não dispensam o vinho nem as
mulheres. Não podeis, enfim, imaginar quanto se esforçam por se distinguirem em tudo uns
dos outros. Imitar Jesus Cristo? É o último dos seus pensamentos. Muito se ofenderiam se
lhes dissésseis que obtiveram isto ou mais aquilo deste ou daquele instituto. Julgais que a
enorme variedade de sobrenomes e de títulos não deleite muito os seus ouvidos? Há os que
se gabam de chamar-se franciscanos, tronco que se subdivide nos seguintes ramos: os
reformados, os menores observantes, os mínimos, os capuchinhos; outros se dizem
beneditinos; estes se chamam bernardinos e aqueles de Santa Brígida; outros são de Santo
Agostinho; estes se denominam guilherminos e aqueles jacobitas, etc. Como se não lhes
bastasse o nome de cristãos. Quase todos confiam tanto em certas cerimônias e em certas
tradiçõezinhas humanas, que um só paraíso lhes parece um prêmio muito modesto para os
seus méritos. No entanto, Jesus Cristo, desprezando todas essas macaquices, só julgará os
homens pela caridade, que é o primeiro dos seus mandamentos. Em vão, tremendo no dia do
juízo final, apresentarão eles a Deus um corpo bem nutrido por tudo quanto é peixe; em vão
lhe oferecerão o canto dos salmos e os inúmeros jejuns; em vão sustentarão que arrumaram
a barriga com uma única refeição; em vão produzirão uma porção de práticas fradescas,
capazes de carregar pelo menos sete navios; em vão se gabará este de ter passado sessenta

anos sem tocar em dinheiro, a não ser com dois dedos muitos sujos; em vão mostrará aquele
o seu hábito tão sórdido que até um barqueiro se recusaria a vesti-lo; em vão se gabará outro
de ter vivido cinqüenta e cinco anos sempre encerrado em seu claustro, como uma esponja;
em vão aquele fará ver que perdeu a voz de tanto cantar, e este que a longa solidão lhe
perturbou o cérebro; em vão dirá um outro que o perpétuo silêncio entorpeceu-lhe a língua.
Interrompendo todas essas gabolices (pois do contrário seria um nunca mais acabar), Jesus
Cristo dirá: — De que país vem essa nova raça de judeus? Pois não dei aos homens uma lei
única? Sim, e somente essa eu reconheço como verdadeiramente minha. E esses malandros
não dizem sequer uma palavra a respeito? Abertamente e sem parábolas, eu prometi,
outrora, a herança do meu Pai, não às túnicas, nem às oraçõezinhas, nem à inédia, mas à
observância da caridade. Não, não reconheço pessoas que apreciam demais as suas pretensas
obras meritórias e querem parecer mais santas do que eu próprio. Procurem, se quiserem,
um céu aparte. Mandem construir um paraíso por aqueles cujas frívolas tradições eles
preferiram à santidade dos meus preceitos. — Qual não será a consternação de todos eles, ao
ouvirem tão terrível sentença e ao verem que se lhes antepõem os barqueiros e os
carroceiros? No entanto, a despeito de tudo isso, são sempre felizes com suas vãs
esperanças, o que, em substância, não é senão o efeito da minha bondade para com eles.
Não posso deixar de vos dar, aqui, um conselho salutar: nunca desprezeis essa vaga
geração bastarda (os mendigos, sobretudo), embora ela viva separada da república. É que os
frades, por meio do canal que se chama a confissão, estão ao par de todos os mais íntimos
segredos das pessoas. Não se pode dizer que ignorem ser um delito capital a revelação das
coisas ouvidas no tribunal da penitência. Isso, porém, não impede que o façam em diversas
circunstâncias, sobretudo quando, alegres e esquentados pelo vinho, querem divertir-se
contando histórias engraçadas. É verdade que, para isso, usam das maiores cautelas, pois em
geral não citam os nomes das pessoas. Desgraçado daquele que irritar esses zangões da
sociedade! A vingança vem pronta como um raio do céu. Subitamente, no primeiro discurso
ao povo, lançam os seus dardos contra o inimigo, tão bem pintado pelo padre pregador com
suas caridosas invectivas que seria preciso ser cego para não saber a quem visam atingir. E o
mastim só deixará de ladrar quando, a exemplo do que fez Enéias com o Cérbero, lhe
taparem a boca com fogaças. Já que falamos desses bons apóstolos no púlpito, dizei-me se
não é verdade que abandonaríeis qualquer charlatão, qualquer saltimbanco, para ouvir os
seus ridículos discursos. Bem poderiam eles chamar-se, com toda a honra, os macacos dos
retóricos, tal é o prazer que experimentam ao imitar as regras estabelecidas pelos retóricos
sobre a arte de falar. Santo Deus! observai como gesticulam, corno são mestres em modular
a voz, como cantam, como se remexem, como ficam senhores do assunto, como fazem
retumbar toda a igreja com os seus socos e os seus berros. É no silêncio do claustro que eles
apreendem essa veemente maneira de evangelizar, que passa de um fradeco a outro como
um segredo de suma importância. Sendo eu apenas uma divina mulherzinha, não me é lícito
iniciar-me em tão profundos mistérios, mas não quero deixar de vos dizer o que tenho
podido anotar por bom preço.
Principiam sempre as suas mixórdias com uma invocação tomada de empréstimo aos
poetas, e fazem um exórdio sem relação alguma com o assunto que devem abordar. Devem,
por exemplo, pregar a caridade? Começam pelo rio Nilo. Devem pregar sobre o mistério da
cruz? Começam pelo Belo, o fabuloso dragão da Babilônia (89). Devem pregar o jejum
quaresmal? Começam pelas doze constelações do zodíaco. Devem pregar a fé?



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