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quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Elogio da Loucura - Erasmo de Rotterdam [parte 7]


pela quadratura do círculo. E assim por diante. Eu mesma, que vos falo, já ouvi uma vez um
desses pregadores, homem de uma loucura consumada (perdoai-me, atrapalho-me sempre),
queria dizer de uma doutrina consumada.
Esse homem devia explicar o impenetrável mistério da Trindade, mas, para patentear a
sublimidade do seu engenho e para contentar os ouvidos dos teólogos, não quis seguir o
caminho habitual. E que estrada tomou? Era mesmo preciso um homem da sua envergadura
para fazer a escolha. Começou o discurso pelo alfabeto e, depois de ter, com prodigiosa
memória, recitado exatamente o A B C passou das letras às sílabas, das sílabas às palavras,
das palavras à concordância do sujeito com o verbo e do substantivo com o adjetivo.
Enquanto isso, todo o auditório estava suspenso e não poucos perguntavam, com Horácio,
qual poderia ser o objetivo de tantas frioleiras. Mas, o padre pregador tirou logo a dúvida
dos ouvintes mostrando que elementos da gramática eram o símbolo e a imagem da
sacrossanta Trindade. E o mostrou com evidência igual à que mal poderia conseguir um
geômetra nas suas demonstrações. É preciso confessar, aliás, que essa demonstração de
sublime eloqüência custara uma imensa fadiga ao nosso non plus ultra dos teólogos, pois
empregou em sua tarefa nada menos de oito bons meses. O pobre homem, porém,
ressentiu-se, e os extraordinários esforços feitos por tão bela obra-prima tornaram-no mais
cego do que um toupeira, atraída que foi por seu espírito toda a agudeza da vista. Mas, quem
o diria? Muito pouco é o seu desgosto por ter perdido a vista, e até lhe parece ter adquirido a
glória por bom preço.

Tive ainda o prazer de escutar outro pregador da mema têmpera. Era venerável teólogo
de oitenta anos, mas tão corrompido na teologia que todos o teriam tomado pelo próprio
Scot ressuscitado. O bom velho subira ao púlpito para explicar o adorável mistério do
Santíssimo Nome de Jesus.
Ah! saiu-se às maravilhas! Demonstrou o orador, mas com uma sutileza imperceptível,
que tudo quanto se podia dizer para glorificar o Salvador, tudo se achava nas letras
componentes do seu angustíssimo nome. Sabeis todos, senhores, a língua latina? Se houver
alguém que não a saiba, poderá dormir um pouquinho. Em primeiro lugar, fez observar o
velho catedrático que o substantivo Jesus só tem em sua declinação três casos diferentes: o
nominativo, o acusativo e o ablativo. Rara e curiosa doutrina! Como lamento a ignorância
dos que não podem saboreá-la! Mas, que significam esses três casos? E isso é coisa que se
pergunte? Pois não se vêem neles, claramente expressas, as três divinas pessoas da mesma
natureza? Mas, ainda há outra coisa! O primeiro desses três casos, refleti bem, termina em s,
Jesus; o segundo em m, Jesum; e o terceiro em u, Jesu. Grande mistérios, meus irmãos!
Essas três letras finais significam que o Salvador é ao mesmo tempo o Sumo, o Médio e o
Último. Restava, porém, resolver uma dificuldade mais espinhosa que todos os problemas de
matemática, e, não obstante, ele o conseguiu de forma surpreendente. O velho bajoujo teve a
felicidade de separar o vocábulo Jesus em duas partes iguais: Je-Su. Mas, que faremos
daquele s que, tendo perdido o companheiro, está surpreso de se achar sozinho? Um pouco
de paciência e logo repararemos o mal. Os hebreus, em lugar de s, pronunciam syn: ora, em
bom escocês, syn quer dizer pecado. Pois bem! — exclamou o pregador — quem será tão
incrédulo ao ponto de negar que o Salvador tirou os pecados do mundo?
Com essa explicação tão profunda quanto imprevista, todos os ouvintes, sobretudo os
teólogos, foram tomados de tal surpresa que pareciam novas Níobes (90), e eu me pus a rir
com tanta força que pouco faltou para que me sucedesse o mesmo inconveniente que ao irriquieto Príapo, quando teve a curiosidade, que lhe custou caro, de espiar os mistérios
noturnos de Canídia e Ságana (91). Com efeito, quando foi que os oradores gregos e
romanos já se serviram, em suas orações, de uma introdução tão desesperada? Esses grandes
homens julgavam vicioso o exórdio que não tivesse relação alguma com o assunto. A
natureza ensinou tão bem aos homens esse método, que até um tratador de porcos, ao
precisar contar alguma história, não começará decerto com uma coisa estranha, mas entrará
imediatamente no assunto. Os nossos doutíssimos frades, ao contrário, acreditariam passar
por maus retóricos se o preâmbulo, como dizem eles, tivesse a menor conexão com o resto
do argumento, não pondo os ouvintes na necessidade de perguntar: Aonde irá ele chegar por
esse caminho?
Em terceiro lugar, propõem, em forma de narração, algum trecho do Evangelho, mas
superficialmente e de fugida, e, se bem que devesse ser esse o seu principal dever, eles o
tratam de passagem, quase que incidentalmente. Em quarto lugar, como se representassem
uma nova personagem, levantam uma questão teológica, que embora não se coadune muito
com o assunto, é por eles julgada tão necessária que lhes pareceria um pecado contra a arte a
não inclusão dessa digressão. É nessas passagens que os nossos pregadores franzem
soberbamente as teológicas sobrancelhas e atordoam os ouvidos do auditório com
magníficos epítetos dedicados aos seus doutores: solenes, sutis, sutilíssimos, seráficos,
santos, irrefragáveis, etc., etc. É também nessas passagens que, como uma saraivada,
descarregam uma tempestade de silogismos, de maiores, de menores, de conseqüências, de
corolários, de suposições; e, como bons intrujões, impingem essas insípidas e insolentes
bagatelas da sua escola a uma multidão de ignorantes.
Eis-nos chegados, afinal, ao quinto ato da comédia, no qual, mais do que nunca, é mister
que se mostrem valentes na arte. Desentranham, então, do armazém da sua memória, alguma
estranha e portentosa fabulazinha, provavelmente tirada do Espelho Histórico ou dos Feitos
Romanos, e a vão remendando e interpretando no sentido alegórico, tropológico, anagógico,
até que, dessa maneira, terminam o discurso, o qual, com muita propriedade, pela
surprendente variedade de suas partes, se poderia chamar, com Horácio, de verdadeiramente
monstruoso.
Façamos, agora, em conjunto, o exame dos seus sermões. Os nossos reverendos
aprenderam, não sei dizer de quem, que a introdução do discurse deve ser feita devagar e em
voz baixa. Em virtude dessa regra, falam tão baixinho no exórdio que sou capaz de apostar
que nem mesmo eles ouvem o que dizem, como se se dispusessem a falar para não serem
entendidos por ninguém. Além disso, ouviram dizer que, para despertar as emoções, o
orador deve empregar, de vez em quando, a veemência da exclamação. E assim é que, como
fiéis, mas maus observadores desse preceito, quando todos os julgam muitos tranqüilos,
eles, de repente e sem nenhuma razão, começam a gritar como verdadeiros maníacos. É com
toda a sinceridade que vos digo que, ao se mostrarem assim mais doidos do que pregadores,
bem se poderia prescrever-lhes uma boa dose de heléboro, pois bem se pode considerar
louco aquele que grita por gritar. Ao mesmo tempo, convencidos de que o orador deve
animar-se com o desenvolvimento do discurso, dizem pausadamente os primeiros períodos
de cada parte, mas, logo depois, sempre sem haver razão para isso, levantam a voz com
tanta força que, ao terminarem, a impressão é de que vão desmaiar. Finalmente, sabendo que
as regras da retórica prescrevem que, de vez em quando, se despertem os ouvintes com
alguma engraçada pilhéria, esforçam-se os nossos pregadores por motejar, mas — santo Deus! — como o conseguem maravilhosamente! Fazem justamente como o burro da fábula,
ao querer tocar a lira.
Às vezes, esses cães da Igreja também sabem morder, mas sem fazer mal, porque mais
parecem beliscar do que ferir. Ao afetarem uma grande liberdade apostólica, lançando-se
contra os vícios e os maus costumes, é justamente quando revelam maior adulação. Pregam
como os charlatães, e juraríeis que, embora conheçam muito mais que os frades o coração
humano, com estes é que aprenderam a sua arte. Com efeito, é tal a semelhança das suas
declamações que de duas uma: ou os charlatães aprenderam retórica com os nossos
pregadores, ou os nossos pregadores estudaram eloqüência com os charlatães.
Apesar de tudo, nunca faltam os ouvintes, e eu mesma tenho o cuidado de me incluir
entre eles. Há até alguns que os admiram como se fossem Cíceros e Demóstenes. Os que
mais concorrem para ouvi-los são as mulheres e os negociantes, cujo afeto os bons
pregadores procuram conquistar. Os negociantes, vendo-se adulados e justificados,
prestam-lhes de bom grado uma porção de benefícios imerecidos, pois encaram tais
donativos como uma espécie de restituição. Quanto às mulheres, têm elas vários motivos
secretos para amar os religiosos, quando mais não fosse por encontrarem neles um bálsamo
e um consolo contra os desgostos e o enjôo do laço conjugai.
Parece que já demonstrei suficientemente quanto me devem essas cabeças encapuzadas
que, com vãs devoções, com cerimônias ridículas, com berros e ameaças, exercem sobre o
povo uma particular tirania, na ânsia de serem comparados aos Paulos e aos Antônios. Mas,
percebo que já falei muito sobre esses cômicos ingratos, que sabem tão bem dissimular os
meus favores como fingir-se sinceramente religiosos. Deixo-os, pois, com muito prazer.
Já é tempo de dizer alguma coisa sobre os príncipes e os grandes, que são justamente o
oposto dos velhacos e impostores de que acabei de falar, pois me prestam o seu culto sem
nenhuma reserva e com a franqueza própria do seu estado. Se esses felizes semideuses
tivessem na cachola meio grama apenas de cérebro, que haveria no mundo de mais triste e
miserável que a sua condição? Quem quer que se desse ao trabalho de refletir atentamente
sobre os deveres de um bom monarca, bem longe de querer usurpar uma coroa com o falso
juramento, o parrícidio, o liberticídio, em suma, com os mais execrandos delitos, tremeria
ante o aspecto de um cargo tão enorme. Com efeito, observemos em que consistem as
obrigações de um homem que é posto à testa de uma nação. Deve dedicar-se dia e noite ao
bem público e nunca ao seu interesse privado; pensar exclusivamente no que é vantajoso
para o povo; ser o primeiro a observar as leis de que é autor e depositário, sem desviar-se
nunca de nenhuma delas; observar, com firmeza e com os próprios olhos, a integridade dos
secretários e dos magistrados; ter sempre presente que todos têm os olhares fixos na sua
conduta pública e privada, podendo ele, à maneira de um astro salutar, influir beneficamente
sobre as coisas humanas, ou, como um infausto cometa, causar as maiores desolações. Não
deve esquecer-se nunca de que os vícios e os delitos dos súditos são infinitamente menos
contagiosos que os do senhor, e repetir diariamente, a si mesmo, que o príncipe se acha
numa elevação, razão por que, quando dá maus exemplos, a sua conduta é uma peste que se
comunica rapidamente, fazendo enormes estragos; refletir que a fortuna de um monarca o
expõe continuamente ao perigo de abandonar o justo caminho; resistir aos prazeres, à
impureza, à adulação, ao luxo, pois nunca estará suficientemente preparado para reprimir
tudo o que pode seduzi-lo. Deve, finalmente, conservar sempre na memória que, além das
insídias, dos ódios, dos temores, de todos os males a que o príncipe se acha exposto a cada
momento por parte dos seus súditos, deverá ele, mais cedo ou mais tarde, apresentar-se

perante o tribunal do Rei dos reis, no qual lhe serão pedidas contas exatas de todos os seus
menores atos, sendo ele julgado com rigor proporcional à extensão do seu domínio. Repito,
pois, mais uma vez, que, se um príncipe refletisse bem sobre tudo isso, como o teria feito se
fosse um pouquinho sábio, decerto não poderia comer nem dormir tranqüilamente um só dia
em sua vida. Mas, não vos arreceeis, pois consegui um remédio para isso. Com o favor da
minha inspiração, os príncipes descansam traqüilos sobre o seu destino e sobre os seus
ministros, vivendo na ociosidade e só mantendo relações com pessoas que possam contribur
para diverti-los de qualquer aflição ou aborrecimento. Acham eles que cumprem bastante os
deveres de um bom rei divertindo-se diariamente nas caçadas, possuindo belíssimos cavalos,
vendendo em benefício próprio os cargos e os empregos, servindo-se de expedientes
pecuniários para devorar as energias do povo e engordar à custa do sangue dos escravos.
Não se pode negar que usem de cautela na aplicação dos impostos, pois alegam sempre
títulos de necessidade, pretestos de urgência, e, embora essas exações não passem, no fundo,
de mera ladroeira, esforçam-se, todavia, por encobrí-las com o véu do interesse público, da
justiça e da eqüidade. Dirigem ao povo belas palavras, chamando de bons, fiéis,
afeiçoadíssimos os seus súditos, e, enquanto furtam com uma das mãos, acariciam com a
outra, prevenindo assim os seus lamentos e acostumando-os, aos poucos, a suportar o jugo
da tirania. Dito isso, quero fazer uma suposição: imaginai no trono (coisa que, aliás,
acontece freqüentemente), imaginai no trono, dizia eu, um homem ignorante das leis, quase
inimigo do bem público, que só tem em mira o seu interesse pessoal, escravo dos prazeres,
menosprezador das ciências, que despreza a verdade, que não pode escutar uma linguagem
sincera, que tem a felicidade dos escravos como último dos prazeres, que não segue senão
suas paixões, que mede cada coisa pela própria utilidade. Colocai nesse homem a
gargantilha de ouro, ornamento que significa o complexo e a união de todas as virtudes;
colocai-lhe na cabeça a coroa enriquecida de pedras preciosas, o que o adverte de estar na
obrigação de superar todos os outros em toda sorte de heróicas virtudes; ponde-lhe o cetro
na mão, cetro que é o símbolo da justiça e de uma alma perfeitamente incorruptível; vestí-o,
finalmente, com a minha púrpura, que denota um vivo amor ao povo e um ardentíssimo zelo
por sua felicidade. Sou de parecer que, se esse monarca comprasse os seus ornamentos reais
com a sua viciosa conduta, não poderia deixar de sentir vergonha e rubor, e estou
convencida de que teria bastante receio de ser posto a ridículo, com os seus simbólicos
enfeites, por algum lépido e sensato glosador.
Passemos, agora, aos grandes da corte. Não há escravidão mais vil, mais repulsiva, mais
desprezível do que aquela a que se submete essa ridícula espécie de homens, que, não
obstante, costuma ganhar para si, de alto a baixo, o resto dos mortais. Convenhamos, porém,
que são modestíssimos num único ponto: é que, satisfeitos de possuir o ouro, as pedras, a
púrpura e todos os outros símbolos da sabedoria e da virtude, cedem facilmente aos outros o
cuidado da sabedoria e da virtude. Para eles, a maior felicidade consiste em ter a honra de
falar ao rei, de chamá-lo de Senhor e Mestre absoluto, de fazer-lhe um breve e estudado
cumprimento, de poder prodigalizar-lhe os títulos faustosos de Vossa Majestade, Vossa
Alteza Real, Vossa Serenidade, etc. etc. Toda a habilidade dos cortesãos consiste em
trajar-se com propriedade e magnificência, em andar sempre bem perfumados e, sobretudo,
em saber adular com delicadeza. Quanto ao espírito e aos costumes, são verdadeiros Feácios
(92), verdadeiros amantes de Penélope, a esse respeito, sabeis o que diz Homero (93), e,
melhor do que eu, vo-lo repetirá a ninfa Eco. O vil escravo do monarca, quando não deva fazer a corte ao senhor (pois nesse caso se levantaria ao primeiro canto do galo), costuma
dormir até ao meio-dia, e, mal desperta, o mercenário capelão, que já esperava por esse
momento, resmunga-lhe às pressas uma missa. Em seguida, passa a cuidar do almoço, e daí
a pouco, do jantar, ao qual sucedem imediatamente os jogos de dados e de xadrez, os bobos,
as cortesãs, os divertimentos inconvenientes e todos os outros prazeres chamados
passatempos. Esses devotos exercícios não se fazem sem uma ou duas merendas; depois,
vem a ceia, e se passa a noite no meio das garrafas. E assim, sem pensar que se nasce para
morrer, a vida passa rapidamente. As horas, os dias, os meses, os anos, os lustros
transcorrem para eles sem nenhum aborrecimento, como um relâmpago. Tenho a impressão
de sair de um banquete, ao vê-los gabaram-se de suas ridicularias. Aquela ninfa se julga
mais próxima dos deuses, por arrastar atrás de si uma cauda mais longa do que as outras;
esse fidalgo, por ter recebido do príncipe uma cotovelada no estômago, ao tentar penetrar na
multidão, fica satisfeito e acredita haver menor distância entre ele e o soberano; aquele
cortesão pavoneia-se com a corrente de ouro que lhe pende do pescoço, por ser muito mais
pesada que a dos outros e servir, assim, não só para mostrar opulência como também sua
robustez de carregador.
A vida dos príncipes e dos fidalgos leva-me, naturalmente, a falar também da dos papas,
cardeais e bispos. Faz tanto tempo que essa sagrada gente, com surpreendente emolução,
imita os reis e os sátrapas, que não tenho dúvida alguma em dizer que chegou a superá-los.
Imaginai, agora, que um bispo, por divertimento, se pusesse a considerar o seu cortejo e
ornamentos pontificais. Se um bispo refletisse que a candidez do retoque significa uma vida
completamente imaculada; que a mitra bicórnia, cujas extremidades se unem em um nó,
denota profundo conhecimento do Velho e do Novo Testamento; que as mãos enluvadas
exprimem um coração depurado de todo contágio mundano na administração dos
sacramentos; que a cruz dos sapatos o adverte de que deve velar continuamente pelo
rebanho sob a sua guarda; que a cruz prelatícia que lhe pende do peito é sinal de vitória
completa sobre as paixões humanas, — se o nosso prelado, repito, refletisse sobre todas
essas belas coisas e muitas outras que eu suprimo, não será verdade que se tomaria magro,
pensativo, macilento, hipocondríaco? Chegaria a causar piedade! Mas, não, não duvideis, eu
remediei tudo. Aconselhei a esses pretensos sucessores dos apóstolos que seguissem um
caminho inteiramente oposto, e ninguém jamais soube aproveitar melhor os meus conselhos.
Com efeito, o principal objetivo dos nossos Ilustríssimos e Reverendíssimos consiste em
viver alegremente, e, quanto ao rebanho, que dele cuide Jesus Cristo. Aliás, já não possuem
os arcediagos, os vigários gerais, os confessores, os frades e mil outros fiéis mastins, que
estão sempre em guarda contra o lobo do inferno? Os bispos chegaram a esquecer que o seu
nome, tomado ao pé da letra, significa trabalho, zelo, solicitude pela redenção da almas. Mas
— por Baco! — não se esquecem nunca das honrarias e do dinheiro.
Gabam-se os veneráveis cardeais de descenderem em linha reta dos apóstolos, mas eu
desejaria que filosofassem um pouco sobre os seus hábitos, e fizessem a si mesmos esta
apóstrofe: “Se eu descendo dos apóstolos, porque não faço, então, o que eles fizeram? Não
sou senhor, mas simples distribuidor das graças espirituais, e muito breve terei de prestar
contas da minha administração. Que significa esta nívea candidez do meu roquete, se não
uma suma pureza de costumes? Que quer dizer esta sotaina de púrpura, se não um ardente
amor a Deus? Que denota esta capa da mesma cor (tão ampla e espaçosa que bastaria para
cobrir não somente a mula do eminentíssimo, mas até um camelo junto com o cardeal), se
não uma caridade ilimitada e sempre pronta a socorrer o próximo, isto é, a instruir, a exortar, a acalmar o furor das guerras, a resistir aos maus princípios, a dar de boa vontade o próprio
sangue e as riquezas pelo bem da Igreja? Para que tantos tesouros? Aqueles que pretendem
representar o antigo colégio dos apóstolos não deveriam, antes de tudo, imitar a sua
pobreza?” Afirmo que, se os cardeais fizessem a si mesmos semelhante apóstrofe, refletindo
seriamente sobre todos esses pontos, de duas uma: ou devolveriam imediatamente o chapéu,
ou levariam uma vida laboriosa, cheia de desgostos e de desejos, justamente como faziam os
primeiros apóstolos da Igreja.
Prosternemo-nos, agora, aos pés do Sumo Pontífice, e beijemos-lhes religiosamente as
santas pantufas. Os papas dizem-se vigários de Jesus Cristo, mas, se procurassem
conformar-se à vida de Deus seu mestre; se sofressem pacientemente os seus padecimentos
e a sua cruz, mostrando o mesmo desprezo pelo mundo; se refletissem seriamente sobre o
belo nome de papa, isto é, de pai, e sobre o santíssimo epíteto com, que são honrados, —
quem seria mais infeliz do que eles? Quem desejaria comprar, com todos os haveres, esse
cargo eminente, ou quem, uma vez elevado ao mesmo, desejaria, para sustentar-se nele,
empregar a espada, os venenos e toda sorte de violências? Ai! quantos bens perderiam eles
se a sabedoria se apoderasse por um instante do seu ânimo! A sabedoria?! Bastaria que
tivessem um grãozinho apenas daquele sal de que fala o Salvador. Perderiam, então, aquelas
imensas riquezas, aquelas honras divinas, aquele vasto domínio, aquele gordo patrimônio;
aquelas faustosas vitórias, todos aqueles cargos, aquelas dignidades e aqueles ofícios de que
participam; todos aqueles impostos que percebem, quer nos próprios Estados, quer nos
alheios; o fruto de todos aqueles favores e de todas aquelas indulgências, com as quais vão
traficando tão vantajosamente; aquela numerosa corte de cavalos, de mulas, de servos;
aquelas delícias e aqueles prazeres de que gozam continuamente. Observai, observai quantas
coisas precisariam perder, sendo que isso é apenas uma sombra da felicidade pontifícia.
Todos esses bens seriam logo sucedidos pelas vigílias, pelos jejuns, pelas lágrimas, pelas
preces, pelos sermões, pelas meditações, pelos suspiros e mil outros trabalhos de natureza
semelhante. Acrescentemos ainda que tantos escritores, tantos copistas, tantos notários,
tantos advogados, tantos promotores, tantos secretários, tantos banqueiros, tantos
escudeiros, tantos palafreneiros, tantos rufiões (silêncio neste ponto, pois é preciso respeitar
os ouvidos castos), em suma, toda aquela prodigiosa turba de pessoas de toda classe, que
arruinam (que honram, queria eu dizer) a sé de Roma, — sim, digamos também que toda
essa turba só poderia esperar morrer de fome. Seria o mais bárbaro, o mais abominável, o
mais detestável de todos os delitos querer reduzir à sacola e ao bastão os supremos monarcas
da Igreja, os verdadeiros luminares do mundo. Dizem eles que a Pedro e a Paulo competia
viver de esmolas, ficando com todo o peso do pontificado, mas eles podem comodamente
sustentá-lo, reservando-se eles, para si, somente o que no mesmo existe de esplêndido e de
agradável. Agora, pergunto: não fazem muito bem? Graças a mim, por conseguinte, é que
nunca houve um papa que vivesse no ócio e na moleza. Como as funções episcopais (94)
consistem em ornamentos misteriosos e quase teatrais, em cerimônias, em títulos faustosos
de beatíssimo, reverendissimo, santíssimo, em bênçãos e maldições, julgam eles que já
fazem bastante a vontade de Jesus Cristo, sem suspeitarem o que lhes poderá este dizer-lhes
um dia. Agora não é mais necessário fazer milagres; instruir o povo dá muito trabalho;
ensinar as escrituras cheira à escolástica; para pregar, seria preciso tempo; chorar convém
somente às mulheres; ser pobre, oh! que coisa feia! deixar-se vencer é vergonhoso demais e
indigno de um homem que mal admite que lhe beijem o beatíssimo pé os reis mais poderosos; finalmente, morrer, oh! é a mais amarga de todas as coisas! ser crucifcado —
irra! — é uma infâmia horrível!
Assim, pois, as armas dos papas não consistem todas naquelas doces bênçãos de que fala
São Paulo (95) e das quais são eles tão avaros. Consistem elas em interdições, suspensões,
gravames, anátemas, pinturas vingadoras (96) e naqueles terribilíssimo castigo pelo qual um
beatíssimo padre pode mandar à vontade qualquer alma para o inferno. Os nossos
Santíssimos Pais de Cristo e o seus vigários gerais nunca empregam com maior zelo esse
espantoso castigo do que no caso daqueles que, à instígação do demônio, tentam diminuir ou
danificar o patrimônio de São Pedro. Dizia este bom apóstolo ao seu Mestre: — Deixámos
tudo para seguir-te. — Compreendereis que grande sacrifício fez o pobre pescador! Foi a
fortuna o que ele conseguiu em virtude dessa renúncia; é por isso que Sua Santidade
glorificada possui terras, cidades, domínios, e percebe impostos e taxas. E é sobretudo para
defender e conservar essa rica aquisição que os pontífices romanos costumam condenar as
almas. É verdade que nem ao menos poupam os corpos, e, inflamados pelo zelo de Jesus
Cristo, desfraldam a bandeira de Marte e, sem piedade, empregam o ferro e o fogo para
sustentar as suas razões. Bem vedes que não se pode fazer semelhante guerra sem derramar
o sangue cristão. — Mas, que importa? — respondem os papas — Estamos defendendo
apostolicamente a causa da Igreja e só deporemos as armas quando tivermos vingado a
esposa de Jesus Cristo contra os seus inimigos. — Eu desejaria saber, porém, se haverá para
a Igreja inimigos mais perniciosos do que esses ímpios pontífices, os quais, em lugar de
pregar Jesus Cristo, deixam no esquecimento o seu nome e o põem de lado com leis
lucrativas, alteram a sua doutrina com interpretações forçadas e, finalmente, o destroem com
exemplos pestilentos.
Além disso, assim como a Igreja cristã foi fundada com sangue, confirmada com sangue,
dilatada com sangue, assim também os papas a governam com sangue, como se nunca Jesus
Cristo tivesse existido para protegê-la e sustentá-la. A guerra é, por natureza, tão cruel, que
muito mais conviria às feras do que aos homens; tão insensata que os poetas a atribuíram às
fúrias do inferno; tão pestilenta que corrompe todos os costumes; tão iníqua que a fazem
melhor perversos ladrões do que homens probos e virtuosos; finalmente, tão ímpia que
nenhuma relação possui com Jesus Cristo nem com sua moral. Isso não impede que alguns
pontífices abandonem todas as funções pastorais para consagrar-se inteiramente a esse
flagelo da humanidade. Entre esses papas guerreiros, encontram-se até velhos (97) que agem
com todo o vigor da juventude, que nenhuma consideração têm pelo dinheiro, que suportam
corajosamente a fadiga e não têm o menor escrúpulo em fazer subverter as leis, a religião e a
humanidade. Mas, não faltam eruditos aduladores para dar a esse manifestíssimo delírio o
nome de zelo, piedade, valor. E acham razões para provar que desembainhar a espada e
cravá-la no coração de um irmão não é absolutamente infringir o grande mandamento da
caridade para com o próximo. Na verdade, ainda não sei se os papas, em matéria de guerra,
seguiram o exemplo de alguns bispos da Alemanha, ou se estes bispos é que se julgaram
autorizados, pela conduta dos papas, a empreender a guerra. O que é certo é que os prelados
alemães agem com maior liberdade, porque, desprezando inteiramente o serviço divino, as
bênçãos e todas as outras cerimônias do bispado, como verdadeiros sátrapas só respiram a
guerra, chegando a sustentar que é dever de um bispo entregar a alma a Deus para defender
a honra da sua dignidade. Os padres também estão, em geral, animados pelo mesmo espírito,
não querendo de modo algum degenerar da santidade dos prelados. Assim, não podeis imaginar com que coragem empunham as armas toda a vez que se trata dos seus dízimos:
espadas, fuzis, pedras, nada lhes escapa. Esses ministros do altar não cabem em si de alegria
quando descobrem, nas obras dos antigos, alguma passagem com que possam aterrar as
consciências e provar ao vulgo que lhes deve ainda muito mais do que os dízimos. Não há
mais perigo de que lhes entre na cabeça o que leram em muitíssimos lugares sobre os seus
deveres para com o povo. Deveriam ao menos lembrar-se de que a tonsura significa a
obrigação de viverem livres de qualquer paixão humana, para se consagrarem totalmente às
coisas do céu. Muito longe de fazerem tais reflexões, incidem em toda sorte de volúpia e
julgam cumprir plenamente os seus deveres e as obrigação de praticar o bem, como dizem
eles, quando murmuram, às pressas e entre os dentes, o ofício divino. Santo Deus! aposto
que não há nenhuma divindade que queira escutá-los e, muito menos, que possa
compeendê-los. Nenhuma divindade?! Estou convencida de que nem eles próprios se
entendem entre si quando ornejam em coro. Mas, tanto os sacerdotes como os profanos
sabem muito bem quais são os seus direitos e os seus emolumentos. Sabe-se mesmo, pelas
mulheres, que quem serve o altar deve viver do altar. O que é incômodo os senhores padres
costumam, prudentemente, descarregar sobre as costas alheias, numa devolução recíproca,
como na péla. Os eclesiásticos costumam proceder mais ou menos como os príncipes
seculares: assim como estes abandonam as rédeas do governo nas mãos dos primeiros
ministros, que confiam a administração do Estado aos numerosos subalternos que se acham
sob as suas ordens, assim também os ministros dos santuários costumam, modestamente,
descarregar sobre o povo o peso da devoção e da piedade, e o povo, por sua vez, passa-o aos
que denomina pessoas religiosas, como se não tivesse nenhuma relação com a Igreja e não
tivesse feito nenhum voto no batismo. Em seguida, os padres, como se fossem iniciados no
mundo e não em Cristo, dizem-se seculares e deixam aos regulares o pesado encargo da
piedade; os regulares julgam-na especialmente destinada aos monges; os monges relaxados
atribuem-na aos reformados; finalmente, todos se põem de acordo e pretendem que a
devoção pertença aos mendicantes, que acabam por enviar a péla aos cartuxos, em cujo
retiro se pode afirmar, efetivamente, que a piedade está sepultada, de tal forma se esforçam
eles por viverem escondidos do mundo. Conduta semelhante têm os generais da milícia
clerical. Os papas, sempre ativos e incansáveis em sua tarefa de receber dinheiro,
descarregam sobre os bispos tudo o que há de incômodo no apostolado; os bispos sobre os
párocos; os párocos sobre os vigários; os vigários sobre os frades mendicantes; e os
mendicantes, finalmente, enviam as ovelhas aos pastores espirituais, que sabem tosquiá-las e
tirar-lhes proveito da lã.
Mas, até onde me levou o assunto? O meu propósito não é investigar e satirizar a vida
dos prelados e dos padres, mas fazer o meu elogio: que ninguém pense que, ao louvar os
maus princípios, queira eu censurar os bons. Por conseguinte, só vos dei uma idéia
superficial de todas as condições para vos demonstrar, à evidência, que nenhum homem
pode viver feliz sem ser iniciado nos meus mistérios e sem participar dos meus favores.
Invoco o testemunho da Fortuna, essa deusa da felicidade e da desgraça que, embora
caprichosa ao extremo, tom sempre o prazer de secundar as minhas intenções. Com efeito,
exatamente como eu, não será ela inimiga capital dos sábios? Em compensação, confere
seus bens aos loucos e, por fim, ao vê-los dormindo, derrama-lhes no seio os seus tesouros.
Decerto já ouvistes falar de um certo Timóteo, capitão ateniense, cuja fortuna foi tal que,
mesmo dormindo, conquistou e saqueou cidades. Quando, porém, começou a atribuir tanta
fortuna ao próprio mérito, foi abandonado pela deusa e caiu na maior miséria. Pois não se costuma dizer que os tolos são felizes e que até o mal se converte para eles num bem? No
entanto, é justamente o contrário o que costuma suceder aos sábios. Já diz o provérbio:
Quem, como Hércules, nasceu no quarto dia da lua, só pode esperar sofrimentos: montado
no cavalo de Sejano, quebrará a perna; tendo dinheiro de Tolosa, pouco proveito terá. Mas,
deixemos os provérbios, pois pode parecer que me apropriei de todos os comentários do
meu Erasmo.
Volto, pois, ao meu assunto, e digo que a Fortuna só ama as pessoas que não pensam em
nada, gostando de beneficiar os aturdidos e os temerários, isto é, os que dizem como César
no Rúbicão: Alea jacta est. A sabedoria só pode inspirar temor, o que faz com que a
condição de um verdadeiro filósofo chegue a causar piedade aos homens de bom senso.
Com o cérebro repleto de belíssimas e sólidas especulações, quer físicas, quer morais, sente
o estômago doer de fome e nem sequer sabe onde encontrar o necessário. Além disso, é
abandonado, desprezado, odiado, evitado por todos, enquanto os tolos, verificando que o
precioso metal que os anima constitui o móvel maior da sociedade civilizada, são elevados
aos empregos públicos e em tudo favorecidos pela fortuna. Eis porque os que se consideram
felizes quando acolhidos pelos grandes e quando conversam com esses deuses queridos, que
são os meus escravos diletos, não têm necessidade alguma da sabedoria, que é a coisa mais
detestada nas cortes e nos paços. Quereis enriquecer-vos no comércio? Renunciai à
sabedoria, porque, do contrário, como poderíeis fazer um falso juramento sem vos sentirdes
dilacerar por um horrível remorso? Como poderíeis deixar de enrubescer quando
surpreendidos numa mentira? Como sufocaríeis os ásperos e tormentosos escrúpulos que
sentem os sábios pelo furto e pela usura? Como poderíeis deixar de travar convosco uma
contínua guerra íntima? Ambicionais as dignidades e os bens eclesiásticos? Um burro e um
búfalo poderiam consegui-los mais facilmente que um filósofo. Amais a volúpia? As
mulheres que a têm como principal escopo procuram os tolos e fogem dos sábios como dos
escorpiões. Quem, finalmente, deseje gozar os prazeres da vida, deve cortar qualquer
relação com os sábios e preferir tratar com a escória popular. Em suma, para resumir tudo
numa única idéia, voltai-vos para todos os lados, e verieis que os papas, os príncipes, os
juízes, os magistrados, os amigos, os inimigos, os grandes, os pequenos, todos, sem exceção,
agem em virtude do ouro sonante. E, como o filósofo, fora do estritamente necessário,
considere como esterco esse metal, não é de admirar que todos desprezem a sua intimidade.
***
Mas, embora o meu elogio seja uma fonte inesgotável, não é justo abusar da vossa
paciência entretendo-vos ainda mais com esta minha declamação, razão por que vos livrarei
logo da fadiga de vossa atenção. Apenas vos peço um pequeno favor, necessário à minha
glória. Talvez haja aqui presentes (uma vez que os maus costumam imiscuir-se sempre entre
os bons), alguns sábios que digam ser eu bela somente aos meus próprios olhos, e não
faltarão senhores legistas que aleguem o fato de eu não haver citado nenhum texto em meu
favor. Citemos, pois, como fazem eles, a torto e a direito.
Antes de mais nada, não se pode pôr em dúvida o conhecido provérbio que diz: Quando
falta uma coisa, é preciso representá-la, o que é inteiramente confirmado por esta sentença
que se costuma ensinar até aos meninos: Procura-se muita sabedoria para se poder passar
por louco. Julgai, pois, se a loucura deve ou não ser incluída entre os maiores bens, quando
os próprios sábios tributavam louvores à sua imagem e à sua sombra falaz. Mas, Horácio, que a si mesmo se chama o lúcido e bem nutrido porco de Epicuro, exprime a coisa com
maior naturalidade, quando aconselha a temperar a loucura com a sabedoria. Ele desejaria, é
certo, que essa loucura fosse de curta duração, mas, a esse respeito, revela, a meu ver, pouco
critério. O mesmo poeta diz nas suas Odes: É um grande prazer ser louco quando se deseja
sê-lo. Em outro lugar, diz preferir parecer estranho e ignorante a parecer sábio e furioso.
Homero, que por toda a parte louva muitíssimo o seu Telêmaco, não deixa de o chamar
várias vezes de menino tolo; e os trágicos gostam de dar aos jovens o epíteto de tolo e
imprudente, como um epíteto de bom augúrio. Qual é o argumento da divina Ilíada? Não
serão, talvez, os furores e as loucuras dos reis e dos povos? Cícero nunca se orientou tão
bem, por mim, como quando disse: Todas as coisas estão cheias de loucura. Ora, convireis
que, quanto mais extenso é um bem tanto mais excelente é ele.
Mas, é possível que os autores citados tenham pouca autoridade para os cristãos. Pois
bem: apoiarei, se julgais conveniente, ou, para exprimir-me teologicamente, fundarei o meu
elogio no testemunho das sagradas escrituras. Permiti que o faça, senhores nossos mestres, é
o que vos peço humildemente. A empresa é bastante difícil e exigiria pelo menos uma boa
invocação às musas; mas, por outro lado, seria uma indiscrição fazer descer pela segunda
vez, do monte Helicão, essas nove virgenzinhas, pois bem vedes que o caminho é muito
longo. Além disso, a matéria que devo abordar nada tem que ver com Apolo. Portanto, seria
melhor que, dispondo-me eu a me arvorar em teóloga e a correr sobre os espinhos teologais,
se dignasse o espírito de Scot a passar da sua Sorbonne para o meu ânimo. Ah! queira Deus
que esse beato espírito, mais pungente que o ouriço e mais agudo que o porco-espinho,
inflame a minha mente! Depois, quando eu tiver acabado, que voe por onde mais lhe
agradar, inclusive entre os corvos. Praza igualmente aos céus que me seja permitido mudar
de aspecto, vestindo um hábito teologal! Vou, porém, experimentar, e, quando me ouvirdes
impingir tanta teologia, não suspeiteis que eu tenha forçado e espoliado as arcas dos nossos
mestres. Mas, afinal, não me parece surpreendente que, tendo mantido por tantos séculos
uma estreita amizade com os teólogos, tenha eu sido atacada por um pouquinho da sua
sublime ciência. E porque não poderia acontecer-me tal coisa? Não será, talvez, verdade que
até o irrequieto Príapo, embora sendo um deus de curto entendimento, ao escutar o mestre
ler grego em voz alta, guardou algumas palavras na memória e as reteve como um doutor? E
que diríamos do galo de Luciano? Como se sabe, depois de ter vivido longo tempo com os
homens, articulou inesperadamente a lingua e falou como eles. Mas, dito isso, comecemos
sob os auspícios da Fortuna.
O Eclesiastes, capítulo primeiro, versículo... versículo... esperai um pouco... oh! meu
Deus! não me recordo mais, e assim também a página, a linha, etc. (pois que, para citar
teologicamente, é preciso dizer tudo). Mas, no Eclesiastes está escrito que o número dos
loucos é infinito. Ora esse número infinito não abrangerá a todos os homens, com poucas
exceções, se é que já houve alguns? Mais ingenuamente, porém, o confessa Jeremias: Todos
os homens — diz ele no capítulo X — tornaram-se loucos à força de sabedoria. E atribui a
sabedoria somente a Deus, deixando aos homens a loucura como predicado. Um pouco
antes, diz ele: O homem não deve gabar-se da sua sabedoria. Mas, porque dizeis isso, oh
santo, oh divino oráculo do futuro? É porque (assim me parece ouvi-lo responder) o homem
não tem nenhuma idéia da sabedoria. Voltemos ao Eclesiastes. Quando Salomão, esse
grande monarca iluminado do céu, faz aquela patética exclamação moral: Vaidade das
vaidades, tudo é vaidade! — não vedes, senhores, que, sem gaguejar, ele declara que a vida
humana, como também eu já vos disse tantas vezes, não é outra coisa senão um divertimento da Loucura? E não foi também isso o que Cícero, com grande honra para mim, repetiu
muito depois, isto é, que tudo está cheio de loucura? E quando o citado Eclesiastes diz ainda
que o louco muda como a lua e o sábio é estável como o sol, — que imaginais que isso
signifique? Não significará, talvez, que todos os homens são loucos e que somente a Deus
pertence o título de sábio? Com efeito, por lua entendem os intérpretes a natureza humana, e
por sol a fonte da verdadeira luz, que é Deus. Também o Salvador apoia essa verdade
quando diz, no Evangelho, que o epíteto de bom só cabe a Deus. Ora, segundo os estóicos,
sábio e bom são dois sinônimos; portanto, todos os homens, sendo maus, são também, por
uma conseqüência necessária, todos malucos.
Diz ainda Salomão no capítulo XV: A tolice é a alegria do tolo, o que significa que, sem
a loucura, nada se acha de agradável na vida. E em outra passagem: Progredir na ciência é
o mesmo que progredir na dor, e, onde há muito sentimento, há também muita
contrariedade. Não repetirá esse mesmo excelente pregador, no capítulo VII, o mesmo
pensamento? — A tristeza — diz ele — mora no coração do sábio, e a alegria no do tolo.
Não contente de ter conhecido a fundo a sabedoria, teve ele o desejo de conhecer também a
mim. Pensais que eu esteja gracejando? Ouvi o oráculo, capitulo I: Apliquei-me ao
conhecimento da prudência e da doutrina, dos erros e da loucura. É preciso notar que,
nessa passagem, sou citada em último lugar, a fim de me ser conferida a honra que mereço,
como posso prová-lo. De fato, foi o Eclesiastes que o escreveu: ora, na ordem eclesiástica,
segundo o cerimonial em uso, o primeiro em dignidade é o que ocupa o último posto, de
acordo com o preceito de Cristo.
Que a loucura é realmente superior em dignidade à sabedoria prova-o, à evidência, o
autor do Eclesiastes, seja ele quem for, no capitulo XLIV. Mas, meus caros ouvintes, antes
de citar essa passagem, quero fazer um pacto convosco: juro-vos por Hércules que nunca
mais vos falarei disso, se não responderdes favoravelmente às minhas perguntas, a exemplo
daqueles que, segundo Platão, discutiam com Sócrates. Dou, pois, início à minha indução.
Dizei-me, por favor, o que será melhor ocultar: as coisas raras e preciosas, ou as vis e
triviais. Como, não respondeis? Porque permaneceis imóveis como se não passásseis de
estátuas? Mas, não será o vosso silêncio que me fechará a boca. Os gregos responderão por
vós e dirão que a bilha se deixa sem receio à porta, ao passo que as coisas preciosas se
conservam escondidas. Receando, porém, que profaneis essa sentença, rejeitando-a, acho
conveniente advertir-vos que é de Aristóteles, o deus dos nossos mestres. Continuemos:
haverá aqui alguém bastante louco que, de bom grado, seja capaz de abandonar na rua o seu
dinheiro e as suas jóias? Não o creio, naturalmente! Todos vós, ao contrário, me pareceis, se
não me engano, desses homens que costumam ocultar muito bem tudo o que possuem de
precioso e que só se descuidam das coisas que pouco ou nada importa perder. Assim, pois,
exigindo a prudência que se escondam as coisas de valor e que não se deixem expostas
senão as coisas de pouca valia, a minha causa venceu, triunfou! O Eclesiastes ordena que se
manifeste a sabedoria e se oculte a loucura. Textualmente: O homem que esconde a própria
loucura é melhor que o que esconde a própria sabedoria. Mas, isso não basta. As sagradas
escrituras atribuem ainda ao louco a candura de ânimo, da qual não é suscetível o sábio,
embora se julgue sempre melhor do que os outros. É, pelo menos, como interpreto a
seguinte passagem do Eclesiastes, capítulo X: Ao passear, o louco supõe que todos os que
encontra sejam loucos como ele. Quem pode deixar de admirar essa candura e essa
sinceridade? Naturalmente, todos os homens fazem um alto conceito de si mesmos, mas a homens e comunicar-lhes a glória do seu mérito.
loucura torna o homem tão humilde que procura dividir a sua virtude com todos os outros

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