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quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Elogio da Loucura - Erasmo de Rotterdam [parte 8]

Salomão julgava ter chegado a tanta perfeição, dizendo no capítulo XXX: Eu sou o mais louco de todos os homens. São Paulo,esse evangelista, esse apóstolo das gentes, não passou sem atribuir-se o meu nome, pois disse aos coríntios: Como louco, eu afirmo que sou o maior de todos (de tal maneira
considerava ele vergonhoso ser superado em loucura). Mas, enquanto isso, insurgem-se
contra mim certos teólogos grecistas, impingindo como novidades coisas rançosas e antigas
e se esforçando por cegar o vulgo com anotações que, além do mais, são pensamentos
roubados aqui e ali: entre eles, encontra-se, se não em primeiro, pelo menos em segundo
lugar o meu caro Erasmo, que freqüentemente cito para lhe prestar uma homenagem (98).

— Oh Loucura! — exclamam eles, — tu te mostras verdadeiramente digna do teu nome,
tanto em tuas interpretações como em tudo mais! O pensamento do apóstolo é bem diverso
daquele que tu sonhas: não há a intenção de persuadir que ele seja mais louco que os outros;
depois de ter dito que eles são ministros de Cristo e eu também o sou, como se não bastasse
igualar-se aos outros, acrescenta, corrigindo-se: E o sou mais do que eles, sentindo-se não
somente igual aos outros apóstolos no ministério do evangelho, mas ainda um tanto
superior. Para evitar o escândalo que semelhante declaração poderia provocar, São Paulo
chama-se louco, pois só os loucos têm o direito de dizer tudo sem risco de ofender alguém.
Mas, seja qual for a interpretação que se dê ao que escreveu São Paulo, deixo que o discuta
quem quiser. Quanto a mim, prefiro ser atacada pelos fogos desses grandes, desses enormes,
desses gordos, desses célebres teologastros, com os quais a maior parte dos doutores prefere
correr o risco de enganar-se a conhecer a verdade ocultada por esses séquito de pessoas de
três línguas (99), às quais se dá tanta importância como às gralhas. Além disso, tenho em
meu favor glorioso teólogo, que prudentemente julgo não dever nomear, pois sei muito bem
que as nossas gralhas não deixariam de me citar a fábula do Asinus ad lyram (100). Esse
doutor assim explica magistralmente, teologicamente, essa passagem: Eu o digo com menor
sabedoria, eu o sou mais do que eles. Faz disso um novo capítulo — e assim é quem exige
uma dialética consumada — que vos acrescenta uma nova secção. Eis, não só quanto à
forma, mas também quanto ao fundo, as palavras do meu teólogo: Eu o digo com menor
sabedoria, isto é, se vos pareço louco quando me igualo aos falsos apóstolos, mais tolo vos
parecerei ainda se quiser preferir-me a eles. Depois, como que divagando, passa de repente a
outro assunto.
Mas, como sou louca ao querer atormentar meu cérebro com a interpretação de um só
teólogo! Pois não conquistaram os nossos teólogos o direito público de esticar o céu, isto é,
as escrituras, como se fossem uma pele? Se devemos dar crédito ao douto São Jerônimo, que
possuía cinco línguas, o próprio São Paulo usava do referido direito, encontrando-se em suas
obras coisas que parecem opostas às sagradas escrituras. Por essa pia fraude do apóstolo das
gentes, podemos julgar todas as outras. Tendo São Paulo observado, certa vez, uma
inscrição que os atenienses tinham posto sobre um altar, na qual se lia: Aos deuses da Ásia,
da Europa e da África, aos deuses ignotos e estranhos, — trancou a inscrição e, tomando
somente a parte julgada vantajosa à religião cristã, suprimiu o resto. E até as palavras: ao
deus ignoto, que formam o texto do seu discurso, bem se vê que não foram citadas com
fidelidade. Os teólogos modernos mostram ter aproveitado bastante esse exemplo, pois
freqüentemente, da passagem de um autor costumam tirar cinco ou seis palavras e
alterar-lhes o sentido, como lhes convém. E assim é que, ao se confrontar a cópia com o
original, ou quando se compara a citação com o desenvolvimento do raciocínio, fica

patenteado que o autor citado não teve a intenção de dizer o que se pretende, ou então disse
justamente o contrário. Pois é o que fazem os nossos mestres, e o fazem com tão feliz
impudência que os próprios legistas, que tanto se divertem em citar a torto e a direito, ficam
com muita inveja deles.
E como poderiam deixar de sair-se bem com essa astúcia os guerreiros espirituais? Tudo
podem esperar depois do primeiro sucesso do grande teólogo de que há pouco vos falei. Oh!
que bom! Estou com o nome na ponta da língua! Receio, porém, que me citem outra vez o
provérbio grego do Asinus ad lyram.
Esse doutor, no evangelho de São Lucas, interpretou tão bem uma passagem, que o seu
senso, como o de Jesus Cristo, desperta como o fogo com a água. Julgai-o, pois. Por ocasião
de um extremo perigo, ocasião em que os bons clientes mais assiduamente se acham em
torno dos seus protetores, oferecendo-lhes todo os seus serviços, o Salvador, querendo
tornar os seus discípulos superiores à esperança de qualquer socorro humano, fez aos
mesmos a seguinte pergunta: — “Quando vos enviei pelo mundo, faltou-vos alguma coisa?”
— Eles não tinham nem dinheiro para a viagem, nem sapatos para garantir-se contra as
pedras e os espinhos, nem alforges a que pudessem recorrer em caso de fome. Como os
apóstolos lhe respondessem que tinham sempre encontrado o necessário, o Salvador
acrescentou: — “Agora, aquele de vós que tiver um saco, pequeno ou grande, deve deixá-lo;
e aquele que não tiver espada, venda a túnica para comprá-la”. Como toda a doutrina
evangélica aconselha a mansidão, a tolerância e o desprezo pela vida, seria preciso ser cego
para não perceber o sentido e a intenção de Cristo nessa passagem, O divino legislador
queria preparar os seus convidados para o ministério do apostolado e, por isso, impunha-lhes
que se destacassem de todas as coisas desta terra. Não bastava largar os sapatos e os
alforges. Eles deviam ainda despojar-se dos hábitos, o que significa, sem dúvida, o perfeito
desprendimento de coração com que deviam entrar na carreira do apostolado.
É verdade que Jesus Cristo mandou que os apóstolos arranjassem uma espada, mas não
das que servem de instrumento fatal nas mãos dos ladrões e dos parricidas, e sim de uma
espada espiritual que penetrasse até ao fundo do coração, que extirpasse todas as paixões
mundanas, a fim de que só a piedade reinasse e dominasse no ânimo. Observai agora, por
favor, como o nosso célebre Asinus ad lyram esticou o sentido dessa passagem: por espada,
entende ele o direito de defesa contra a perseguição; por alforges, entende a provisão de
víveres, como se o Salvador, tendo percebido que sem essa medida não atenderia bastante
ao esplendor e à dignidade dos seu missionários, tivesse mudado de parecer e se retratado da
sua determinação.
Não se recordava o nosso legislador da sua moral? Pois declarou formalmente aos seus
discípulos que seriam beatos se sofressem pacientemente a infâmia, os ultrajes, os suplícios;
disse-lhes que a verdadeira felicidade era reservada aos brandos de coração, e não aos
soberbos; exortou-os, enfim, com o exemplo dos pássaros e dos lírios, a se abandonarem à
Providência. Esquecera-se, então, o Salvador dessas suas máximas quando, por um espírito
inteiramente oposto, mandou que os apóstolos trouxessem uma espada, vendessem o hábito
para comprar uma, e preferissem andar nus a andar desarmados? Assim como o nosso sutil
comentador encerra na espada tudo o que pode servir para repelir a força, assim também
entende por alforges tudo o que diz respeito à comodidade da vida. Dessa forma, esse
intérprete do espírito de Deus faz com que os apóstolos apareçam no teatro do mundo, para
pregar Jesus crucificado, todos armados de lanças, balistas, fundas e bombardas. E assim
também, para não viajarem em jejum, carrega-os de dinheiro, malas e embrulhos

Mas, porque Jesus Cristo, depois de ter mandado que os seus discípulos vendessem a
própria camisa (por honestidade, creio que foi só) para comprar uma espada, ordenou em
seguida, com ar de severidade e desdém, que a pusessem na bainha? Porque os apóstolos, ao
que saibamos, nunca desembainharam a espada contra a violência dos tiranos? Seriam
obrigados a fazê-lo, em sã consciência, se Cristo expressamente o tivesse determinado. O
nosso teólogo, porém, não se atrapalhou diante dessa dificuldade.
Um outro doutor, cujo nome discretamente deixo de citar, deu o mais belo salto do
mundo. O profeta Abacuc disse: “As peles da terra de Madian serão revolvidas”. Ora, é
claro como o sol que o profeta quer referir-se às tendas dos mandianitas; mas, firmando-se o
bom teólogo no termo peles, disse que a referida passagem era, sem dúvida alguma, uma
alusão ao esfolamento de São Bartolomeu.
Não faz muito que intervim numa discussão teológica, pois quase nunca falto a esse
gênero de combate. Tendo alguém perguntado como se poderia provar, com as sagradas
escrituras, que contra os herejes deviam ser empregados o ferro e o fogo, em lugar da
discussão e do raciocínio, logo se levantou um velho, cujo aspecto severo e temerário
facilmente indicava tratar-se de um teólogo, e, franzindo as sobrancelhas, respondeu com
uma voz altisonante: “Foi o próprio São Paulo que fez esta sábia lei: Evita (devita) o herege
depois de uma ou duas admoestações”. Como fosse repetindo muitas vezes e em voz alta
essas palavras, todos o julgaram dominado por um acesso frenético. Mas, ele acabou
explicando o enigma: “Sereis — exclamou — tão ignorantes que não noteis que esse
vocábulo devita (evita), é formado, em latim, pela preposição de, mais o nome substantivo
vita, significando fora da vida? Portanto, São Paulo mandou queimar os hereges e jogar suas
cinzas ao vento”.
Alguns puseram-se a rir ante tão nova e inesperada etimologia, mas outros acharam-na
profunda e verdadeiramente teológica. Percebendo o barbado que não eram por ele todos os
sufrágios da assembléia, lançou mão do argumento decisivo: “Está escrito, — disse ele, —
está escrito: Não permitirás que viva o malfeitor; ora, o herege é malfeitor, por conseguinte,
etc.”. Então, todos admiraram o talento do doutor, e o seu juízo por conseguinte é
universalmente aplaudido. Não passa pela cabeça de ninguém que a citada lei dizesse
respeito unicamente aos feiticeiros, aos bruxos, aos magos e a todas as pessoas que os
hebreus chamavam de malfeitores, porque, do contrário, seria preciso ainda condenar ao
fogo a embriaguez e a fornicação. Mas, é uma tolice perder-me em semelhantes frioleiras,
cujo número é tão grande que nem Dídimo nem Crisipo disseram tantas, embora tenham
publicado uma enorme quantidade de volumes, o primeiro tratando da dialética e o segundo
da gramática.
Apenas vos peço que me façais justiça numa coisa: se é permitido que esses divinos
mestres se afastem tanto do bom senso e da verdade, não condenais, com mais forte razão, a
minha insensatez nas citações, pois não passo, afinal, de uma sombra em confronto com os
teólogos.
Volto de novo a São Paulo. Falando de si mesmo, diz esse apóstolo: Suportai
pacientemente os tolos... Considerai-me também um tolo... Não falo segundo Deus, mas
como se fosse tolo... Somos tolos por Jesus Cristo. Que glória para mim é o fato de um autor
de tanto peso referir-se tão favoravelmente à Loucura! No entanto, o mesmo São Paulo, não
contente com isso, passa a recomendar a loucura como coisa sumamente necessária à
salvação. Aquele, dentre vós, — diz ele, — que quiser parecer sábio, deve tomar-se louco,
para poder fazer-se sábio. Não chamou Jesus Cristo loucos, em São Lucas, àqueles dois

discípulos com os quais se encontrou na estrada, depois da resurreição? Não obstante, isso
não me causa tanta surpresa como o que disse o apóstolo das gentes: A loucura de Deus é
melhor que a loucura dos homens. Ora, de acordo com a interpretação de Orígenes, não se
pode aplicar essa loucura à opinião dos homens. Do mesmo gênero é esta passagem: O
mistério da cruz é uma loucura para os que perecem.
Mas, porque hei de me cansar invocando tantos testemunhos? O homem-Deus,
voltando-se para o seu Pai, já lhe disse nos salmos: Conheces minha loucura? Não é, pois,
sem motivo, ou melhor é visivelmente por essa razão que os loucos são os prediletos de
Deus. Nesse particular, o Ser Supremo assemelha-se aos príncipes da terra, pois que, em
geral, essas divindades imortais não gostam nada das pessoas sensatas e honestas. Com
efeito, César temia mais Cássio e Bruto do que ao glutoníssimo Antônio (101); Nero não
podia tolerar Sêneca (102); Platão disiludiu-se com Dionísio, o tirano (103). No entanto,
apreciaram muito os estúpidos, os simples e os imbecis.
O Homem-Deus, igualmente, condena sempre e detesta os sábios que só confiam na
própria filosofia. São Paulo disse nítida e claramente: Deus escolheu tudo o que há de tolo
no mundo... Deus julgou conveniente salvar o mundo da loucura. E assim o fez, decerto,
porque não teria podido fazê-lo com a sabedoria.
O próprio Deus diz pela boca do profeta Isaías: Eu confundirei a sabedoria dos sábios e
reprovarei a prudência dos prudentes. E a humanidade de Jesus não dá graças a Deus por
ter ocultado aos sábios o mistério da salvação, para revelá-lo aos pequenos, isto é, aos
maluquinhos, com toda a força e energia do vocábulo grego? Pela mesma razão, podemos
explicar ainda a contínua guerra que, segundo o evangelho, fez o Salvador aos doutores da
lei, aos escribas e aos fariseus, ao mesmo tempo que tomava o partido do vulgo ignorante.
Desgraçados de vós, — dizia ele, — oh escribas e fariseus! Não significará essa imprecação
o mesmo que desgraçados de vós, oh sábios? Finalmente, o Senhor do universo só
costumava conversar com os meninos, as mulheres e os pescadores. Também Jesus Cristo
preferia, entre tantas espécies de animais, os que mais se afastavam da sagacidade da raposa:
escolheu um burrinho para o seu carro de triunfo, quanto teria podido cavalgar um soberbo
leão. O Espírito Santo desceu sobre a segunda pessoa da Santíssima Trindade, não em forma
de águia ou de gavião, mas de pomba, que é o mais simples dos pássaros. Além disso, as
sagradas escrituras falam freqüentemente de animais que têm um instinto muito limitado,
que são os veados, os enhos e os cordeiros. E não é de ovelhas que Jesus Cristo chama os
que são eleitos para gozar com ele do reino dos céus? Ora, onde haverá animal mais
estúpido do que a ovelha? Antigamente, por desprezo e injúria, costumava-se dar esse nome
às pessoas estúpidas e idiotas. Ainda mais: em virtude da comparação dos eleitos com as
ovelhas, Jesus Cristo vangloria-se do título de pastor e gosta muitíssimo do nome de
Cordeiro. De fato, é com esse nome que São João Batista o faz conhecer, quando diz: Eis o
Cordeiro de Deus! E sob essa forma é ele igualmente representado em diversas visões do
Apocalipse.
Mas, quais são as nossas conclusões do que aqui fica dito? Ei-las:
Os homens são malucos, sem excetuar mesmo os que fazem profissão de piedade. Jesus
Cristo, que é a sabedoria do Pai, procede como tolo ao unir-se à natureza humana da forma
por que o fez, isto é, tornando-se pecador para redimir o pecado. Observai como o Salvador
executou dignamente o seu projeto. Tendo estabelecido, em seus decretos, que salvaria os
homens com a loucura da cruz, utilizou nessa tarefa apóstolos grosseiros e idiotas,recomendando-lhes calorosamente que evitassem a sabedoria e seguissem a loucura, e
indicando-lhes o exemplo dos meninos, das gralhas, e dos pássaros, seres sem nenhum
artifício e sem inquietações que só se orientam pelas leis da natureza e pelo mecanismo do
instinto.
Esse legislador proibiu-lhes que se preparassem para comparecer perante os tribunais dos
reis e os presídios, e não quis que pensassem no dia seguinte nem observassem a medida do
tempo, com receio de que, fiando-se na própria sabedoria, se abandonassem inteiramente à
sua providência. E foi por essa razão que o grande Arquiteto do universo proibiu que o
primeiro e lindo par de esposos, por ele feitos e unidos em matrimônio, provassem o fruto
da árvore da ciência do bem e do mal, sob pena de sua desgraça e morte. É a melhor prova
de que a ciência é o veneno da felicidade. São Paulo rejeita-a como perniciosa, ao dizer que
ensoberbece o coração, e creio que São Bernardo exprimiu o mesmo sentimento desse
apóstolo, ao chamar monte do saber àquele monte no qual o soberbo Lúcifer fixou sua
morada.
Não me parece que deva silenciar sobre o sumo crédito de que gozo no céu, pois que aí
facilmente se obtém o perdão com o meu nome, ao passo que não é favorável o da
sabedoria. Pecou um homem com conhecimento de causa? Não penseis que procure alegar
suas luzes, pois pode considerar-se feliz quando pode cobrir-se com o manto da loucura. É
por isso que Adão, no livro XII dos Números, se não me engano, querendo implorar o
perdão para si e para a sua mulher, exclama: Rogo-vos, Senhor, que não nos condeneis por
esse pecado que tolamente cometemos! O mesmo fez Saul, para desculpar-se com Davi.
Logo se vê — diz ele — que agi como louco! O próprio Davi procurando evitar a vingança
divina, exclamou: Senhor! Suplico-vos que canceleis a iniqüidade da partida do vosso
servo, pois agimos como loucos! Bem vedes que não podia esperar ser favorecido, se não
aduzisse como desculpa a sua tolice e a sua ignorância.
Mas, de todas as provas, a que corta a cabeça do touro é a prece do Salvador na cruz
pelos seus crucificadores: — Perdoai-lhes, Pai, — disse ele, e o Deus moribundo não
aduziu em favor deles outra desculpa senão a da loucura, acrescentando: porque não sabem
o que fazem. Disse São Paulo a Timóteo: Deus usou de misericórdia para comigo porque a
minha incredulidade era efeito da minha ignorância. Mas, que significa essa ignorância?
Não significará mais estultice do que malícia? Qual é o sentido destas palavras: Deus usou
de misericórdia para comigo porque, etc? Não será, talvez, o de demonstrar claramente que,
sem o crédito e a recomendação da loucura, São Paulo não teria obtido nenhuma
misericórdia?
O místico salmista mostrou-se, igualmente, da minha opinião naquela passagem que eu
me esqueci de pôr no seu lugar: Dignai-vos Senhor, esquecer os delitos da minha juventude
e das minhas ignorâncias. Refletistes bem sobre esse divino cantor? Escusa-se por dois
títulos: um, pela juventude, idade de que sou a fiel e inseparável companheira; outro, pela
ignorância, e notai que exprime a sua ignorância no plural, o que mostra a força imensa da
sua loucura.
Para terminar logo uma enumeração que por natureza não acabaria nunca, quero vos
fazer ver, sucintamente, que a religião cristã se coaduna perfeitamente com a loucura e não
tem a menor relação com a sabedoria. Como essa proposição pareça um verdadeiro
paradoxo, não serei tão irrazoável que pretenda me acrediteis baseados apenas em minha
boa fé. Vamos, pois, às provas.
Em primeiro lugar, vemos os que, com maior solicitude, intervém nos sacrifícios e outras

cerimônias do culto, não são as pessoas mais sensatas, mas os meninos, os velhos as
mulheres e os ignorantes. E de onde lhes vêm o desejo de se aproximarem tanto do altar e o
transporte que experimentam pela devoção? Vêm de um impulso totalmente mecânico da
natureza. Em segundo lugar, os fundadores da religião cristã, fazendo profissão de uma
maravilhosa simplicidade, eram os inimigos mais declarados do estudo das ciências.
Finalmente, é impossível achar loucos mais extravagantes que os que se abandonam
inteiramente ao ardor da piedade cristã. Jogam fora o dinheiro como a água, desprezam as
injúrias, deixam-se enganar, não vêem nenhuma diferença entre os amigos e os inimigos,
sentem horror pela volúpia: a abstinência, as vigílias, as lágrimas, os padecimentos, os
ultrajes, eis todas as suas delícias; além disso, odeiam a vida e desejam a morte, ao ponto de
parecerem absolutamente privados de senso comum, não passando de corpos sem alma e
sem sentimento. Que nome lhes daremos, se o de loucos não lhes fica bom? Não devemos,
pois, estranhar que os judeus tenham considerado os apóstolos como borrachos. O juiz Festo
não teria razão ao tomar São Paulo por um extravagante.
Uma vez que, sem o perceber, me arvorei em sábia e em raciocinadora, quero ir até ao
fim do assunto. Coragem, meu belíssimo espírito! Sustentemos, diante desses ouvintes,
diante dessa ilustre sociedade de loucos, uma tese inteiramente nova e inesperada. Sim,
meus caros senhores, quero mostrar-vos que a felicidade dos cristãos, essa felicidade
almejada com tantas penas e tantos trabalhos, não é senão uma espécie de loucura e de furor.
Como! vós me olhais de soslaio e com desdém? Devagar, devagar: não nos apeguemos às
palavras, que não passam de sons articulados e arbitrários. Limitemo-nos ao exame da coisa.
Entro no assunto.
O sistema do cristianismo, acerca da felicidade da vida, muito se avizinha aquela dos
platônicos. Segundo o princípio fundamental desses dois sistemas, a alma está encarcerada
no corpo, ligada pelos nós da matéria e de tal modo oprimida pelo peso da máquina orgânica
que muito dificilmente pode descobrir e apreciar a verdade. É por essa razão que Platão
definiu a filosofia como sendo a meditação da morte, porque tanto a filosofia como a morte
destacam nossa alma das coisas visíveis e corporais. Por isso, quando a alma emprega os
órgãos do corpo de acordo com a economia natural, costuma dizer-se sábia e sã; mas,
quando, rompendo os liames, procura fugir do cárcere, pôr-se em liberdade, então se diz em
estado de loucura. Quando essa desordem provém de enfermidade ou alteração dos órgãos,
dão-lhe todos o nome de furor. Por outro lado, vemos esses felicíssimos loucos que
predizem o futuro, que conhecem línguas e ciências sem nunca as terem aprendido, e que
mostram ter em si mesmos algo de divino. E de onde provém esse prodígio? Creio não haver
dúvida de que provém da alma, que, tornando-se um pouco mais livre da servidão do corpo,
começa a utilizar sua força natural.
Creio provir igualmente dessa causa a faculdade que têm os moribundos de dizer coisas
prodigiosas, como que inspirados. O amor e o zelo da piedade produzem também essa
alienação dos sentidos, que não parece ser, é verdade, o mesmo gênero de loucura, mas
desta se aproxima de tal forma que em geral se lhe dá o mesmo nome.
Com efeito, quem não trataria como loucos, e como loucos em último grau, aqueles
homenzinhos que levam uma vida totalmente diversa da dos outros mortais? E aqui vem
muito a propósito a idéia de Platão. Imaginou ele uma caverna repleta de pessoas presas, da
qual conseguiu fugir um dos prisioneiros. Este, depois de levar muito tempo vagando sem
destino, voltou e gritou em altas vozes aos companheiros: — Meus caros amigos! Como me
inspirais piedade! Só vedes sombras e fantasmas, em suma, sois verdadeiramente tolos. Bem

diversa é a minha situação, pois só vi coisas sensíveis existentes, reais. — Então, do seu
canto, os encarcerados, que nunca mais saíram do subterrâneo, entreolhando-se com
surpresa, exclamaram: — Que nos quer dizer com isso esse louco? Com certeza perdeu o
juízo. — O mesmo costuma suceder com homens: os mais sensuais têm maior admiração
pelas coisas materiais, quase acreditando que não existam outras; os que se consagram à
piedade, ao contrário, quanto mais relação com o corpo tem um objeto, tanto menos lhe dão
valor e passam a vida sempre imersos na contemplação das coisas invisíveis.
A principal ocupação dos mundanos é acumular sempre riquezas e contentar em tudo e
por tudo o próprio corpo, pouco ou nada se importando com a alma, cuja existência, por ser
ela invisível, muitos chegam mesmo a pôr em dúvida. Já as pessoas inflamadas pelo fogo da
religião seguem um caminho totalmente oposto e depositam toda a sua confiança em Deus,
que é o mais simples de todos os seres: depois dele e dependendo dele, pensam na alma,
como sendo a coisa que mais próxima está às divindades. É assim que não pensam no corpo
e não só desprezam os bens da fortuna como até os recusam. E quando, por dever, são
obrigados, como pais de família, a pensar nos interesses temporais, por aí enveredam contra
a vontade e experimentam um vivo pesar, porque têm como se não tivessem e possuem
como se não possuíssem.
Existem ainda muitos outros graus de diferença entre os que se ocupam somente com o
corpo e os que se entregam inteiramente à pia cultivação da alma. Para melhor distinguirmos
esses graus, estabeleçamos um princípio incontestável.
Embora todos os sentimentos da alma tenham uma correspondência necessária com o
corpo, há contudo duas espécies: uns são materiais, como o tato, a audição, a vista, o olfato
e o paladar; outros têm menor relação com os órgãos, como sejam a memória, o intelecto e a
vontade. Disso resulta que a alma tem maior ou menor forca à proporção que se aplica mais
ou menos a esses diversos sentimentos. Raciocinemos, agora, sobre essa suposição. Assim
como os que se abandonam totalmente à piedade se tornam o quanto podem superiores aos
sentidos do corpo, mortificando-o a tal ponto que acabam perdendo toda sensibilidade, —
como São Bernardo, por exemplo, que, segundo a lenda, bebia óleo por vinho sem perceber,
— assim também os sensuais têm um grande vigor de ânimo pelos sentidos do corpo e uma
fraqueza extrema pelos da alma. Além disso, há algumas paixões que afetam o corpo mais
de perto, como o amor, a fome, a sede, o sono, a cólera, a soberbia, a inveja, contra as quais
movem os verdadeiros devotos, se é que os há, uma perpétua guerra, ao passo que os
adeptos da natureza acham que não podem viver sem essas coisas. Existem ainda outras que
têm um lugar intermédio e são consideradas naturais, como sejam: amar a pátria, os
parentes, os filhos diletos, os vizinhos, os amigos. Quase todos os homens possuem algo
dessas paixões, mas as pessoas pias fazem tudo para extirpá-las do coração ou ao menos
espiritualizá-las. Um filho, por exemplo, ama seu pai: julgais que ele honre a paternidade e
ame de fato aquele de quem recebeu a vida? — Ora essa! Que foi que me deu meu pai, —
diz o devoto, — a não ser esse corpo miserável, que é o meu pior inimigo? Aliás, também
isso eu o devo a Deus, único e verdadeiro autor do meu ser. Amo meu pai como um homem
em quem resplende a imagem daquela suprema inteligência que é o bem supremo e fora da
qual nada existe de amável nem de desejável. — É também com essa regra que as pessoas
de mortificação misturam todos os deveres da vida, de modo que, quando não desprezam em
geral todas as coisas visíveis, pelo menos as põem infinitivamente abaixo das invisíveis.
Chegam mesmo a dizer que, nos sacramentos e nas outras funções do culto, não existiria
a matéria sem o espírito. Nos dias de jejum, acreditam que seja quase nada a abstinência das

diversa é a minha situação, pois só vi coisas sensíveis existentes, reais. — Então, do seu
canto, os encarcerados, que nunca mais saíram do subterrâneo, entreolhando-se com
surpresa, exclamaram: — Que nos quer dizer com isso esse louco? Com certeza perdeu o
juízo. — O mesmo costuma suceder com homens: os mais sensuais têm maior admiração
pelas coisas materiais, quase acreditando que não existam outras; os que se consagram à
piedade, ao contrário, quanto mais relação com o corpo tem um objeto, tanto menos lhe dão
valor e passam a vida sempre imersos na contemplação das coisas invisíveis.
A principal ocupação dos mundanos é acumular sempre riquezas e contentar em tudo e
por tudo o próprio corpo, pouco ou nada se importando com a alma, cuja existência, por ser
ela invisível, muitos chegam mesmo a pôr em dúvida. Já as pessoas inflamadas pelo fogo da
religião seguem um caminho totalmente oposto e depositam toda a sua confiança em Deus,
que é o mais simples de todos os seres: depois dele e dependendo dele, pensam na alma,
como sendo a coisa que mais próxima está às divindades. É assim que não pensam no corpo
e não só desprezam os bens da fortuna como até os recusam. E quando, por dever, são
obrigados, como pais de família, a pensar nos interesses temporais, por aí enveredam contra
a vontade e experimentam um vivo pesar, porque têm como se não tivessem e possuem
como se não possuíssem.
Existem ainda muitos outros graus de diferença entre os que se ocupam somente com o
corpo e os que se entregam inteiramente à pia cultivação da alma. Para melhor distinguirmos
esses graus, estabeleçamos um princípio incontestável.
Embora todos os sentimentos da alma tenham uma correspondência necessária com o
corpo, há contudo duas espécies: uns são materiais, como o tato, a audição, a vista, o olfato
e o paladar; outros têm menor relação com os órgãos, como sejam a memória, o intelecto e a
vontade. Disso resulta que a alma tem maior ou menor forca à proporção que se aplica mais
ou menos a esses diversos sentimentos. Raciocinemos, agora, sobre essa suposição. Assim
como os que se abandonam totalmente à piedade se tornam o quanto podem superiores aos
sentidos do corpo, mortificando-o a tal ponto que acabam perdendo toda sensibilidade, —
como São Bernardo, por exemplo, que, segundo a lenda, bebia óleo por vinho sem perceber,
— assim também os sensuais têm um grande vigor de ânimo pelos sentidos do corpo e uma
fraqueza extrema pelos da alma. Além disso, há algumas paixões que afetam o corpo mais
de perto, como o amor, a fome, a sede, o sono, a cólera, a soberbia, a inveja, contra as quais
movem os verdadeiros devotos, se é que os há, uma perpétua guerra, ao passo que os
adeptos da natureza acham que não podem viver sem essas coisas. Existem ainda outras que
têm um lugar intermédio e são consideradas naturais, como sejam: amar a pátria, os
parentes, os filhos diletos, os vizinhos, os amigos. Quase todos os homens possuem algo
dessas paixões, mas as pessoas pias fazem tudo para extirpá-las do coração ou ao menos
espiritualizá-las. Um filho, por exemplo, ama seu pai: julgais que ele honre a paternidade e
ame de fato aquele de quem recebeu a vida? — Ora essa! Que foi que me deu meu pai, —
diz o devoto, — a não ser esse corpo miserável, que é o meu pior inimigo? Aliás, também
isso eu o devo a Deus, único e verdadeiro autor do meu ser. Amo meu pai como um homem
em quem resplende a imagem daquela suprema inteligência que é o bem supremo e fora da
qual nada existe de amável nem de desejável. — É também com essa regra que as pessoas
de mortificação misturam todos os deveres da vida, de modo que, quando não desprezam em
geral todas as coisas visíveis, pelo menos as põem infinitivamente abaixo das invisíveis.
Chegam mesmo a dizer que, nos sacramentos e nas outras funções do culto, não existiria
a matéria sem o espírito. Nos dias de jejum, acreditam que seja quase nada a abstinência das









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