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quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Elogio da Loucura - Erasmo de Rotterdam [parte 3]


piedosamente, com o divino segredo da metamorfose, os que estão prestes a morrer: Fetonte
transforma-se em cisne, Alcion em pássaro, etc. Também eu, até certo ponto, imito essas
benéficas divindades. Quando a trôpega velhice coloca os homens à beira da sepultura,
então, na medida do que sei e do que posso, eu os faço de novo meninos. De onde o
provérbio: Os velhos são duas vezes crianças.
Perguntar-me-eis, sem dúvida, como o consigo. Da seguinte forma: levo essas caducas
cabeças ao nosso Letes (porque, entre parênteses, sabeis que esse rio tem sua nascente nas
ilhas Fortunadas e que um seu pequeno afluente corre nas proximidades do Averno) e
faço-as beber a grandes goles a água do Esquecimento.
E é assim que dissipam
insensívelmente as suas mágoas e recuperam a juventude. Alegar-se-á, contudo, que deliram
e enlouquecem: pois é isso mesmo, justamente nisso consiste o tornar a ser criança. O
delírio e a loucura não serão, talvez, próprios das crianças? Que é que, a vosso ver, mais
agrada nas crianças? A falta de juízo. Um menino que falasse e agisse como um adulto não
seria um pequeno monstro? Pelo menos, não poderíamos deixar de odiá-lo e de ter por ele
um certo horror. Há muitos séculos, é trivial o provérbio: Odeio o menino de saber precoce.
Quem, por outro lado, poderia fazer negócios ou ter relações com um velho, se este aliasse a
uma longa experiência todo o vigor do espírito e a força do discernimento?
Por conseguinte, por obra da minha bondade, o velho se torna criança, devendo-me a
libertação de todas as fastidiosas aflições que atormentam o sábio. Além disso, o meu
criançola não desagrada companhia, nem sente aversão pela vida dificilmente suportada na
idade robusta. Torna a soletrar, muitas vezes, as três letras daquele tolo velho a que alude
Flauto: A. M. O.. Ora, se ele fosse um pouquinho sábio, não é certo que seria o mais infeliz
dos mortais? Mas, por efeito da minha bondade, uma vez isento de todo aborrecimento e
inquietação, recreia os amigos e é agradável na conversação. E não vemos, em Homero, o
velho Nestor falar mais doce do que o mel, enquanto o feroz Aquiles prorrompe em
excessos de furor? O mesmo poeta não nos pinta alguns velhos sentados nos muros e
fazendo lépidos discursos?
Afirmo, pois, de acordo com esse raciocínio, que a felicidade da velhice supera a da
meninice. Não se pode negar que a infância é muito feliz; mas, nessa idade, não se tem o
prazer de tagarelar, de resmungar por trás de todos, como fazem os velhos, prazer que
constitui o principal condimento da vida. Outra prova do meu confronto é a recíproca
inclinação que se nota nos velhos e nos meninos, e o instinto que os leva a manterem entre si
boas relações. Assim é que se verifica que todo semelhante ama o seu semelhante.
De fato, essas duas idades têm uma grande relação entre si, e não vejo nelas outra
diferença senão as rugas da velhice e a porção de carnavais que os primeiros têm sobre a
corcunda. Quanto ao mais, a brancura dos cabelos, a falta dos dentes, o abandono do corpo,
o balbucio, a garrulice, as asneiras, a falta de memória, a irreflexão, numa palavra, tudo
coincide nas duas idades. Enfim, quanto mais entra na velhice, tanto mais se aproxima o
homem da infância, a tal ponto que sai deste mundo como as crianças, sem desejar a vida e
sem temer a morte.
Julgue-me, agora, quem quiser, e confronte o bom serviço que prestei aos homens com a
metamorfose dos deuses. Não preciso recordar, aqui, os horríveis efeitos do seu ódio; falarei
apenas dos seus benefícios. Que graças concedem eles aos que estão para morrer?
Transformam um em árvore, outro em pássaro, este em cigarra, aquele em serpente, etc.,
que são, na verdade, grandes esforços de beneficência! Chega a parecer que a passagem de
um ser para o outro é o mesmo que morrer. Quanto a mim, é o homem em pessoa que eu reconduzo à idade mais bela e mais feliz. Se os mortais se abstivessem totalmente da
sabedoria e só quisessem viver submetidos às minhas leis, é certo que não conheceriam a
velhice e gozariam, felizes, de uma perpétua juventude.
Observai, por favor, aquelas fisionomias sombrias, aqueles rostos torturados e sem cor,
mergulhados na contemplação da natureza ou em outras sérias e difíceis ocupações:
parecem envelhecidos antes de terminada a juventude, e isso porque um trabalho mental
assíduo, penoso, violento, profundo, faz com que aos poucos se esgotem os espíritos e a
seiva da vida. Reparai, agora, um pouco, como os meus tolos são gordos, lúcidos e bem
nutridos, ao ponto de parecerem verdadeiros porcos acarnânios (27). Esses felizes mortais
não sentiriam nenhum incômodo na velhice, se nenhum contato tivessem com os sábios.
Infelizmente, porém, isso acontece. Que fazer? Vê-se claramente que o homem não nasceu
para gozar aqui na terra de uma felicidade perfeita.
Tenho ainda em meu favor o importante testemunho de um famoso provérbio que diz: Só
a loucura tem a virtude de prolongar a juventude, embora fugacíssima, e de retardar
bastante a malfadada velhice. Compreende-se, pois, o que em geral se diz dos belgas; ao
passo que em todos os outros homens a prudência cresce na proporção dos anos, neles, ao
contrário, a loucura está na proporção da velhice. Pode-se dizer, portanto, que não há no
mundo nenhuma nação mais jovial nem mais alegre do que essa no comércio da vida, nem
que sinta menos o aborrecimento dos anos. Citemos porém, além dos belgas, os povos que
vivem sob o mesmo clima e cujos costumes são quase os mesmos: quero referir-me aos
meus holandeses, que eu posso gabar-me de ter entre os meus mais fiéis adoradores. Nutrem
por mim tanto afeto e tanto zelo que foram julgados dignos de um epíteto derivado do meu
nome e, muito longe de se envergonharem, o consideram sua glória principal.
Invoquem tudo isso os estultíssimos mortais, invoquem Circe, Medéia, Vênus, a Aurora,
e procurem também aquela não sei que fortuna que tem a virtude de rejuvenescer, virtude
que somente eu, contudo, posso e costumo praticar. Só eu possuo o elixir admirável com o
qual a filha de Menão prolongou a juventude de Titão, seu avô. Fui eu quem rejuvenesceu
Vênus, assim como Faão, por quem Safo andou perdidamente apaixonada. São minhas
aquelas ervas, se é que existem, meus aqueles encantamentos, minha aquela fonte, que não
só restituem a passada juventude, mas, o que é mais desejável, a tornam perpétua. Se,
portanto, concordais que não há nada mais precioso do que a juventude e mais detestável do
que a velhice, posso concluir que reconheceis a dívida que tendes para comigo, sim, para
comigo, pois que, para vos tornar felizes, sei prolongar tamanho bem e retardar um mal tão
grande.
Mas, porque falar ainda mais dos mortais? Percorrei todo o céu, analisai todas as
divindades: ficarei satisfeita por me insultarem o belo nome que tenho a honra de trazer, se
for encontrada uma só divindade que não deva exclusivamente a mim todo o seu poder. Por
favor: por que Baco tem sempre, como um rapazinho, o rosto rubicundo e a longa cabeleira
loura? É porque passa a vida fora de si, embriagado nos banquetes, nos bailes, nas festas,
nos folguedos, recusando qualquer relação com Minerva. E tão alheio é à ambição de trazer
o nome de sábio que gosta de ser venerado com escárnios e zombarias. Nem mesmo se
ofende com o provérbio que lhe dá o sobrenome de Ridículo, sobrenome que mereceu
porque, sentado à porta do templo, e divertindo-se os camponeses em emporcalhá-lo de
mosto e de figos frescos, ele se ria de arrebentar os queixos. E quantos golpes satíricos não
desferiu contra esse deus a Comédia Antiga? (28) — O estólido, o insulso deus! — exclamava-se. — Indigno de nascer no meio da rua! — Mas, dizei-me sem simulação: quem
de vós, a ser esse deus, estólido e insulso, mas sempre alegre, sempre jovem, sempre feliz,
sempre motivo de prazer e alegria gerais, preferiria ser aquele Júpiter simulador, terror do
mundo inteiro, ou o velho Pã, que com o seu barulho espalha temores pânicos, ou o
defeituoso Vulcano, todo enfumarado e cansado do estafante trabalho, ou a própria Palas,
terrível pela lança e pela cabeça de Medusa, e que a todos encara com um olhar feroz?
Passemos a outras divindades. Sabeis porque Cupido se conserva sempre moço? É
porque só se ocupa com bagatelas, porque está sempre brincando e rindo, sem juízo e sem
reflexão alguma, correndo puerilmente de um lado para outro, sem saber ao menos o que se
faz ou o que se diz. Porque a áurea Vênus mantém sempre florida a sua beleza? Não o
sabeis? É porque é minha parente próxima, conservando sempre no rosto a áurea cor de meu
pai Plutão. Além disso, se devemos prestar fé aos poetas e aos seus rivais os escultores, essa
deusa aparece sempre com uma expressão risonha e satisfeita, sendo com razão chamada
por Homero de áurea Vênus. E Flora, mãe das delícias, não era, talvez um dos principais
objetos da religião dos romanos?
Das divindades dos prazeres já falámos bastante. Fazeis questão, agora, de conhecer a
vida dos deuses tétricos e melancólicos? Interrogai Homero e os outros poetas, e eles
poderão dizer-vos, a esse respeito, belíssimas coisas, fazendo-vos ver que os deuses são pelo
menos tão loucos quanto os mortais. Júpiter deixa os seus raios, abandona as rédeas do
universo, para entregar-se aos amores, o que para vós não constitui novidade. Esquece o seu
sexo a altiva e inacessível Diana, para consagrar-se inteiramente à caça, o que não impede
que se apaixone loucamente por seu ardoroso Endimião, a ponto de se dar, muitas vezes, ao
incômodo de descer do céu, em forma de Lua, para cumulá-lo com seus favores. Mas,
prefiro que as suas indecências sejam reprovadas por Momo (29), cujas censuras são eles os
únicos a ouvir. Foi, pois, bem feito que os deuses, enraivecidos, o precipitassem à terra
juntamente com Ates (30), porque, importuno com a sua sabedoria, ele perturbava sua
felicidade. E, longe de encontrar acolhimento nos paços monárquicos, não acha uma alma
que lhe preste hospitalidade em seu exílio, ao passo que a Adulação, minha companheira,
ocupa sempre o primeiro lugar, essa mesma Adulação que sempre esteve de acordo com
Momo como o lobo com o cordeiro.
E assim, livres da importuna censura de Momo, os deuses se entregaram com maior
liberdade e alegria a toda sorte de prazeres. Com efeito, quantas palavras chistosas não
pronuncia aquele Priapo de uma figa? Quanto não faz rir Mercúrio com suas ladroeiras e
seus feitiços? Que não faz Vulcano (31) nos banquetes dos deuses? Põe-se a correr para
chamar a atenção sobre o seu andar claudicante, brinca, diz asneiras, em suma, faz tudo para
tornar o banquete alegre. E que direi daquele velho imbecil que se apaixonou por Sinele e
gosta de dançar com Polifemo e com as ninfas? E daqueles sátiros semi-bodes que em suas
danças praticam cem atos imodestíssimos? Pã provoca o riso dos deuses com suas insípidas
cantilenas: eles o escutam com grande atenção e preferem cem vezes a sua música à das
musas, principalmente quando os vapores do néctar principiam a perturbar-lhes a cabeça.
Mas, porque não hei de recordar as extravagâncias que fazem as divindades depois dos
banquetes, sobretudo depois de terem bebido muito? Asseguro-vos, por Deus, que, embora
eu seja a Loucura e esteja, por conseguinte, habituada a toda espécie de extravagâncias,
muitas vezes não consigo conter o riso. Mas, é melhor que me cale, porque, se algum deus
desconfiado e prevenido me escutasse, também eu poderia ter a mesma sorte de Momo. Mas, já é tempo de que, seguindo o exemplo de Homero, passemos, alternadamente, dos
habitantes do céu aos da terra, onde nada se descobre de feliz e de alegre que não seja obra
minha.
Primeiro, vós bem vedes com que providência a natureza, esta mãe produtora do gênero
humano, dispôs que em coisa alguma faltasse o condimento da loucura. Segundo a definição
dos estóicos o sábio é aquele que vive de acordo com as regras da razão prescrita, e o louco,
ao contrário, é o que se deixa arrastar ao sabor de suas paixões. Eis porque Júpiter, com
receio de que a vida do homem se tornasse triste e infeliz, achou conveniente aumentar
muito mais a dose das paixões que a da razão, de forma que a diferença entre ambas é pelo
menos de um para vinte e quatro. Além disso, relegou a razão para um estreito cantinho da
cabeça, deixando todo o resto do corpo presa das desordens e da confusão. Depois, ainda
não satisfeito com isso, uniu Júpiter à razão, que está sozinha, duas fortíssimas paixões, que
são como dois impetuosíssimos tiranos: uma é a Cólera, que domina o coração, centro das
vísceras e fonte da vida; a outra é a Concupiscência, que estende o seu império desde a mais
tenra juventude até à idade mais madura. Quanto ao que pode a razão contra esses dois
tiranos, demonstra-o bem a conduta normal dos homens. Prescreve os deveres da
honestidade, grita contra os vícios a ponto de ficar rouca, e é tudo o que pode fazer; mas os
vícios riem-se de sua rainha, gritam ainda mais forte e mais imperiosamente do que ela, até
que a pobre soberana, não tendo mais fôlego, é constrangida a ceder e a concordar com os
seus rivais.
De resto, tendo o homem nascido para o manejo e a administração dos negócios, era
justo aumentar um pouco, para esse fim, a sua pequeníssima dose de razão, mas, querendo
Júpiter prevenir melhor esse inconveniente, achou de me consultar a respeito, como, aliás,
costuma fazer quanto ao resto. Dei-lhe uma opinião verdadeiramente digna de mim: —
Senhor, — disse-lhe eu — dê uma mulher ao homem, porque, embora seja a mulher um
animal inepto e estúpido, não deixa, contudo, de ser mais alegre e suave, e, vivendo
familiarmente com o homem, saberá temperar com sua loucura o humor áspero e triste do
mesmo.
Quando Plutão pareceu hesitar se devia incluir a mulher no gênero dos animais racionais
ou no dos brutos, não quis com isso significar que a mulher fosse um verdadeiro bicho, mas
pretendeu, ao contrário, exprimir com essa dúvida a imensa dose de loucura do querido
animal. Se, porventura, alguma mulher meter na cabeça a idéia de passar por sábia, só fará
mostrar-se duplamente louca, procedendo mais ou menos como quem tentasse untar um boi,
malgrado seu, com o mesmo óleo com que costumam ungir-se os atletas. Acreditai-me, pois,
que todo aquele que, agindo contra a natureza, se cobre com o manto da virtude, ou afeta
uma falsa inclinação, ou não faz senão multiplicar os próprios defeitos. E isso porque,
segundo o provérbio dos gregos, o macaco é sempre macaco, mesmo vestido de púrpura.
Assim também, a mulher é sempre mulher, isto é, é sempre louca, seja qual for a máscara
sob a qual se apresente.
Não quero, todavia, acreditar jamais que o belo sexo seja tolo ao ponto de se aborrecer
comigo pelo que eu lhe disse, pois também sou mulher, e sou a Loucura. Ao contrário, tenho
a impressão de que nada pode honrar tanto as mulheres como o associá-las à minha glória,
de forma que, se julgarem direito as coisas, espero que saibam agradecer-me o fato de eu as
ter tornado mais felizes do que os homens.
Antes de tudo, têm elas o atrativo da beleza, que com razão preferem a todas as outras
coisas, pois é graças a esta que exercem uma absoluta tirania mesmo sobre os mais bárbaros  tiranos. Sabereis de que provém aquele feio aspecto, aquela pele híspida, aquela barba
cerrada, que muitas vezes fazem parecer velho um homem que se ache ainda na flor dos
anos? Eu vo-lo direi: provém do maldito vício da prudência, do qual são privadas as
mulheres, que por isso conservam sempre a frescura da face, a sutileza da voz, a maciez da
carne, parecendo não acabar nunca, para elas, a flor da juventude. Além disso, que outra
preocupação têm as mulheres, a não ser a de proporcionar aos homens o maior prazer
possível? Não será essa a única razão dos enfeites, do carmim, dos banhos, dos penteados,
dos perfumes, das essências aromáticas, e tantos outros artifícios e modas sempre diferentes
de vestir-se e disfarçar os defeitos, realçando a graça do rosto, dos olhos, da cor? Quereis
prova mais evidente de que só a loucura constitui o ascendente das mulheres sobre os
homens? Os homens tudo concedem às mulheres por causa da volúpia, e, por conseguinte, é
só com a loucura que as mulheres agradam aos homens. Para confirmar ainda mais essa
conclusão, basta refletir nas tolices que se dizem, nas loucuras que se fazem com as
mulheres, quando se anseia por extinguir o fogo do amor.
Já vos revelei, portanto, a fonte do primeiro e supremo prazer da vida. Concordo que
alguns existam (sobretudo certos velhos mais bebedores que mulherengos) cujo supremo
prazer seja a devassidão. Deixo indecisa a questão de saber se é possível um bom banquete
sem mulheres. O que é certo é que mesa alguma nos pode agradar sem o condimento da
loucura. E tanto isso é verdade que, quando nenhum dos convidados se julga maluco ou,
pelo menos, não finge sê-lo, é pago um bobo, ou convidado um engraçado filante que, com
suas piadas, suas brincadeiras, suas bobagens, expulse da mesa o silêncio e a melancolia.
Com efeito, que nos adiantaria encher o estômago com tão suntuosas, esquisitas e apetitosas
iguarias, se os olhos, os ouvidos, o espírito e o coração não se nutrissem também de
diversões, risadas e agradáveis conceitos? Ora, sou eu a inventora exclusiva de tais delícias.
Teriam sido, porventura, os sete sábios da Grécia os descobridores de todos os prazeres de
um banquete, como sejam tirar a sorte para se saber quem deve ser o rei da mesa, jogar
dado, beberem todos no mesmo copo, cantar um de cada vez com o ramo de murta na mão
(32), dançar, pular, ficar em várias atitudes? Decerto que não: somente eu podia inventá-los,
para a felicidade do gênero humano. Todas as coisas são de tal natureza que, quanto mais
abundante é a dose de loucura que encerram, tanto maior é o bem que proporcionam aos
mortais. Sem alegria, a vida humana nem sequer merece o nome de vida. Mergulharíamos
na tristeza todos os nossos dias, se com essa espécie de prazeres não dissipássemos o tédio
que parece ter nascido conosco.
Talvez haja pessoas que, à falta de tais passatempos, limitem toda a sua felicidade às
relações com verdadeiros amigos, repetindo sem cessar que a doçura de uma terna e fiel
amizade ultrapassa todos os outros prazeres, sendo tão necessária à vida como o ar, a água, o
fogo. — Tão agradável é a amizade, — acrescentam, — que afastá-la do mundo eqüivaleria
a afastar o sol; em suma, é ela tão honesta (vocábulo sem significado para mim) que os
próprios filósofos não hesitam em incluí-la entre os principais bens da vida. — Mas, que se
dirá, quando eu provar que sou também a única fonte criadora de semelhante bem? Vou,
pois, demonstrá-lo, não com sofismas, nem com caprichosos argumentos tão ao gosto de
retóricos, mas à boa maneira e com toda a clareza.
Coragem, vamos! Dissimular, enganar, fingir, fechar os olhos aos defeitos dos amigos,
ao ponto de apreciar e admirar grandes vícios como grandes virtudes, não será, acaso,
avizinhar-se da loucura? Beijar, num transporte, uma mancha da amiga, ou sentir com prazer o fedor do seu nariz, e pretender um pai que o filho zarolho tenha dois olhos de
Vênus (33), não será isso uma verdadeira loucura? Bradem, pois, quando quiserem ser uma
grande loucura, e acrescentarei que essa loucura é a única que cria e conserva a amizade.
Falo aqui unicamente dos homens, dos quais não há um só que tenha nascido sem defeitos, e
admitindo que, para nós, o homem melhor seja o que tem menores vícios. É por isso que os
sábios, pretendendo divinizar-se com sua filosofia, ou não contraem nenhuma amizade ou
tornam a sua uma ligação áspera e desagradável. Além disso, só costumam gostar
sinceramente de raríssimas pessoas, de forma que nenhum escrúpulo me impede de
asseverar que não gostam absolutamente de ninguém, pela razão que vou apresentar. Quase
todos os homens são loucos; mas, porque quase todos? Não há quem não faça suas loucuras
e, a esse respeito, por conseguinte, todos se assemelham; ora, a semelhança é justamente o
principal fundamento de toda estreita amizade.
Quando, porventura, nasce entre esses austeros filósofos uma recíproca benevolência,
decerto que não é sincera nem durável. Todos eles são de humor volúvel e intratável, além
de serem penetrantes demais: têm olhos de lince para descobrir os defeitos dos amigos, e de
toupeira para ver os próprios. Portanto, como os homens estão sujeitos a muitas
imperfeições (e podeis acrescentar a estas a diferença de idade e de inclinações, os
numerosos erros, passos em falso e vicissitudes da vida humana), como poderia por um só
instante subsistir entre esses Argos o laço da amizade, se a evithia, como a chamam os
gregos, que em latim eqüivale a estupidez ou conivência, não o reforçasse? Servi-vos do
amor para julgar da amizade, que é mais ou menos a mesma coisa. Não traz Cupido, esse
autor, esse pai de toda ternura, uma venda nos olhos, que lhe faz confundir o belo com o
feio? Não é ele, porventura, que faz cada um achar belo o que é seu, de forma que o velho é
tão apaixonado por sua velha quanto o jovem por sua donzela? Essas coisas se verificam em
toda parte, mas em toda parte são motivo de riso. Pois são justamente essas coisas ridículas
que formam o principal laço da sociedade e que, mais do que tudo, contribuem para a
alegria da vida.
O que dissemos da amizade também pensamos e com mais razão dizemos do
matrimônio. Trata-se (como deveis estar fartos de saber) de um laço que só pode ser
dissolvido pela morte. Deuses eternos! Quantos divórcios não se verificariam, ou coisas
ainda piores do que o divórcio, se a união do homem com a mulher não se apoiasse, não
fosse alimentada pela adulacão, pelas carícias, pela complacência, pela volúpia, pela
simulação, em suma, por todas as minhas sequazes e auxiliares? Ah! como seriam poucos os
matrimônios, se o noivo prudentemente investigasse a vida e os segredos de sua futura cara
metade, que lhe parece o retrato da discrição, da pudicícia e da simplicidade! Ainda menos
numerosos seriam os matrimônios duráveis, se os maridos, por interesse, por complacência
ou por burrice, não ignorassem a vida secreta de suas esposas. Costuma-se achar isso uma
loucura, e com razão; mas é justamente essa loucura que torna o esposo querido da mulher,
e a mulher do esposo, mantendo a paz doméstica e a unidade da família. Corneia-se um
marido? Toda a gente ri e o chama de corno, enquanto o bom homem, todo atencioso, fica a
consolar a cara-metade, e a enxugar com seus ternos beijos as lágrimas fingidas da mulher
adúltera. Pois não é melhor ser enganado dessa forma do que roer-se de bílis, fazer barulho,
pôr tudo de pernas para o ar, ficar furioso, abandonando-se a um ciúme funesto e inútil?
Afinal de contas, nenhuma sociedade, nenhuma união grata e durável poderia existir na
vida, sem a minha intervenção: o povo não suportaria por muito tempo o príncipe, nem o patrão o servo, nem a patroa a criada, nem o professor o aluno, nem o amigo o amigo, nem o
marido a mulher, nem o hospedeiro o hóspede, nem o senhorio o inquilino, etc., se não se
enganassem reciprocamente, não se adulassem, não fossem prudentemente cúmplices,
temperando tudo com um grãozinho de loucura. Não duvido que tudo o que até agora vos
disse vos tenha parecido da máxima importância. E de que duvida a Loucura? Mas, muitas
outras coisas deveis ainda escutar de mim. Redrobrai, pois, vossa gentil atenção.
Dizei-me por obséquio: um homem que odeia a si mesmo poderá, acaso, amar alguém?
Um homem que discorda de si mesmo poderá, acaso, concordar com outro? Será capaz de
inspirar alegria aos outros quem tem em si mesmo a aflição e o tédio? Só um louco, mais
louco ainda do que a própria Loucura, admitireis que possa sustentar a afirmativa de tal
opinião. Ora, se me excluirdes da sociedade, não só o homem se tornará intolerável ao
homem, como também, toda vez que olhar para dentro de si, não poderá deixar de
experimentar o desgosto de ser o que é, de se achar aos próprios olhos imundo e disforme, e,
por conseguinte, de odiar a si mesmo. A natureza, que em muitas coisas é mais madrasta do
que mãe, imprimiu nos homens, sobretudo nos mais sensatos, uma fatal inclinação no
sentido de cada qual não se contentar com o que tem, admirando e almejando o que não
possui: daí o fato de todos os bens, todos os prazeres, todas as belezas da vida se
corromperem e reduzirem a nada. Que adianta um rosto bonito, que é o melhor presente que
podem fazer os deuses imortais, quando contaminado pelo mau cheiro? De que serve a
juventude, quando corrompida pelo veneno de uma hipocondria senil? Como, finalmente,
podereis agir em todos os deveres da vida, quer no que diz respeito aos outros, quer a vós
mesmos, como, — repito — podereis agir com decoro (pois que agir com decoro constitui o
artifício e a base principal de toda ação), se não fordes auxiliados por esse amor próprio que
vedes à minha direita e que merecidamente me faz as vezes de irmã, não hesitando em tomar
sempre o meu partido em qualquer desavença? Vivendo sob a sua proteção, ficais
encantados pela excelência do vosso mérito e vos apaixonais por vossas exímias qualidades,
o que vos proporciona a vantagem de alcançardes o supremo grau de loucura. Mais uma vez
repito: se vos desgostais de vós mesmos, persuadi-vos de que nada podereis fazer de belo,
de gracioso, de decente. Roubada à vida essa alma, languesce o orador em sua declamação,
inspira piedade o músico com suas notas e seu compasso, ver-se-á o cômico vaiado em seu
papel, provocarão o riso o poeta e as suas musas, o melhor pintor não conquistará senão
críticas e desprezo, morrerá de fome o médico com todas as suas receitas, em suma Nereu
(34) aparecerá como Tersites, Faão como Nestor, Minerva como uma porca, o eloqüente
como um menino, o civilizado como um bronco. Portanto, é necessário que cada qual
lisonjeie e adule a si mesmo, fazendo a si mesmo uma boa coleção de elogios, em lugar de
ambicionar os de outrem. Finalmente, a felicidade consiste, sobretudo, em se querer ser o
que se é. Ora, só o divino amor próprio pode conceder tamanho bem. Em virtude do amor
próprio, cada qual está contente com seu aspecto, com seu talento, com sua família, com seu
emprego, com sua profissão, com seu país, de forma que nem os irlandeses desejariam ser
italianos, nem os trácios atenienses, nem os citas habitantes das ilhas Fortunadas. Oh
surpreendente providência da natureza! Em meio a uma infinita variedade de coisas, ela
soube pôr tudo no mesmo nível. E, se não se mostrou avara na concessão de dons aos seus
filhos, mais pródiga se revelou ainda ao conceder-lhes o amor próprio. Que direi dos seus
dons? É uma pergunta tola. Com efeito, não será o amor próprio o maior de todos os bens?
Mas, para vos mostrar que tudo quanto entre os homens existe de célebre, estupendo, de glorioso, é tudo obra minha, quero começar pela guerra. Não se pode negar que essa grande
arte seja a fonte e o fruto das mais estrepitosas ações. No entanto, que coisa se poderia
imaginar de mais estúpido que a guerra? Dois exércitos se batem (sabe Deus por que
motivo) e da sua animosidade obtêm muito mais prejuízo do que vantagem. Os que morrem
inutilmente na guerra são incontáveis como os megareses (35). Além disso, dizei-me: que
serviço poderiam prestar os sábios, quando os exércitos se estendem em ordem de combate e
reboam no espaço o rouco som das cometas e o rufar dos tambores, ao passo que eles,
definhados pelo estudo e pela meditação, arrastam com dificuldade uma vida que se tornou
enferma pelo pouco sangue, frio e sutil, que lhes circula nas veias? (36) São necessários
homens troncudos e grosseiros, robustos e audazes, mas de muito pouco talento, sim, são
necessárias justamente semelhantes máquinas para o mister das armas. Quem poderá conter
o riso ao ver Demóstenes fardado, para que, seguindo o sábio conselho de Arquíloco (37),
mal aviste inimigo, jogue fora o escudo e se ponha a correr sem parar, pouco lhe importando
que se revele, assim, um soldado tão covarde quanto excelente orador?
Podereis dizer-me que a guerra exige grande prudência. Concordo convosco, mas
somente quanto aos generais e feita a ressalva de que se trata apenas de uma prudência toda
especial, relativa ao mister das armas e que nenhuma relação tem com a sabedoria filosófica.
É por isso que os parasitas, os proxenetas, os ladrões, os sicários, os boçais, os estúpidos, os
falidos e, em geral, toda a escória social pode aspirar muito mais à imortalidade da guerra do
que os homens que vivem dia e noite absorvidos na contemplação. Quereis um grande
exemplo da inutilidade desses filósofos? Tomai o incomparável Sócrates, declarado pelo
oráculo de Apolo como o primeiro e único sábio. Estúpida declaração! Mas, não importa:
não sabendo eu o que tenha esse filósofo empreendido em beneficio público, deveis deixá-la
abandonada ao escárnio universal. É que esse homem não era de todo louco, tendo
constantemente recusado o título de sábio e respondido que semelhante título só era
conveniente à divindade. Era também de opinião que qualquer que desejasse passar por
sábio devia abster-se totalmente do regime da república. Se, porém, tivesse acrescentado que
quem deseja ser tido em conta de homem deve abster-se de tudo o que se chama sabedoria,
então eu teria concebido a seu respeito alguma opinião. Mas, afinal de contas, porque é que
esse grande homem foi acusado perante os magistrados? Porque foi ele condenado a beber
cicuta? Não teria sido, talvez, a sua sabedoria a causa de todos os seus males e, finalmente,
de sua morte? Tendo passado toda a vida a raciocinar em torno das nuvens e das idéias,
ocupando-se em medir o pé de uma pulga e se perdendo em admirar o zumbido do
pernilongo, descuidou-se esse filósofo do estudo e do conhecimento dos homens, bem como
da arte sumamente necessária de se adaptar a eles. Aí tendes, nesse retrato, o que também
diz respeito a muitos dos nossos. Platão, que foi discípulo de Sócrates, ao ver o mestre
ameaçado do último suplício, empenhou-se em tratar a sua causa como valente defensor,
abriu a boca para realizar o seu digno papel, mas, perturbado pelo barulho da assembléia,
perdeu-se na metade do primeiro período. Que direi de Teofrasto, discípulo de Aristóteles,
que mereceu tal nome por sua eloqüência? Ao pretender falar ao povo, perdeu a voz, de tal
forma que se diria “ter visto o lobo”. Pergunto, agora, se esses homens seriam capazes de
encorajar os soldados. Isócrates, que sabia compor tão belas orações, desejou, acaso, falar
em público? O próprio Cícero, pai da eloqüência romana, costumava tremer e gaguejar
como um menino no início de suas orações. É verdade que Fábio interpreta essa timidez
como o traço distintivo do orador penetrante e que conhece o perigo a que se acha exposto;mas, esse simples fato não será a confissão de que a filosofia é absolutamente incompatível
com os negócios públicos? Como, pois, poderiam esses sábios sustentar o ferro e o fogo da
guerra, se morrem de medo toda a vez que não se trata de combater apenas com a língua?
E, depois de tudo quanto dissemos, será possível decantar a célebre máxima de Platão,
segundo a qual “as repúblicas seriam felizes se governadas pelos filósofos ou se os príncipes
filosofassem”? Tenho a honra de vos dizer que a coisa é justamente o oposto. Se
consultardes os historiadores, verificareis, sem dúvida, que os príncipes mais nocivos à
república foram os que amaram as letras e a filosofia. Parece-me que os dois Catões (38)
bastam como prova do que afirmo: um perturbou a tranqüilidade de Roma com numerosas
delegações estúpidas, e o outro, por ter querido defender com excessiva sabedoria os
interesses da república, destruindo pela base a liberdade do povo romano. Acrescentai a
estes os Brutos (39), os Cássios, os Gracos, e o próprio Cícero, que não causou menor dano
à república de Roma do que Demóstenes à de Atenas (40). Quero lembrar que Antonino foi
um bom príncipe, embora haja fortes indícios em contrário e justamente porque, tendo sido
excessivamente filósofo, acabou se tornando importuno e odioso aos cidadãos; mas, ao
lembrar que foi bom, devo recordar, sem me contradizer, que foi ainda mais nocivo ao
império, por ter deixado como sucessor o seu filho Cômodo, do que o favoreceu com sua
administração. Os homens que se consagram ao estudo da ciência são, em geral,
infelicíssimos em tudo, sobretudo com os filhos. Suponho que isso provenha de uma
precaução da natureza, que dessa forma procura impedir que a peste da sabedoria se difunda
em excesso entre os mortais. O filho de Cícero degenerou, e, quanto aos dois filhos do sábio
Sócrates, mais se pareciam com a mãe do que com o pai, isto é, como foi acertadamente
interpretado por alguém, eram ambos idiotas.
Isso não seria nada se esses filósofos só fossem incapazes de exercer os cargos e
empregos públicos; o pior, porém, é que estão longe de ser melhores para as funções e os
deveres da vida. Convidai um sábio para um banquete, e vereis que ou conservará um
profundo silêncio ou interromperá os demais convidados com frívolas e importunas
perguntas. Convidai-o para um baile, e dançará com a agilidade de um camelo. Levai-o a
um espetáculo, e bastará o seu aspecto para impedr que o povo se divirta. Por se ter recusado
obstinadamente a abandonar sua imponente gravidade, é que o sábio Catão (41) foi
constrangido a retirar-se. Entra o sábio em alguma palestra alegre? Logo todos se calam,
como se tivessem visto o lobo. Trata-se, porém, de comprar, de vender, de concluir um
contrato, em suma, de fazer uma dessas coisas que diariamente sucedem a cada um?
Tomareis o sábio mais por uma estátua do que por um homem, a tal ponto se mostra ele
embaraçado em cada negócio. Assim, o filósofo não é bom, nem para si, nem para o seu
país, nem para os seus. Mostrando-se sempre novo no mundo, em oposição às opiniões e aos
costumes da universalidade dos cidadãos, atrai o ódio de todos com sua diferença de
sentimentos e de maneiras.
Tudo o que fazem os homens está cheio de loucura. São loucos tratando com loucos. Por
conseguinte, se houver uma única cabeça que pretenda opor obstáculo à torrente da
multidão, só lhe posso dar um conselho: que, a exemplo de Timão (42), se retire para um
deserto, a fim de aí gozar à vontade dos frutos de sua sabedoria.
Mas, voltando ao assunto: que virtude, que poder já reuniu, no recinto de uma cidade,
homens naturalmente rudes, indômitos e selvagens? Quem já pôde humanizar esses ferozes
animais? A adulação. Nesse sentido é que se devem entender a fábula de Anfião (43) e a citara de Orfeu.

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