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quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Elogio da Loucura - Erasmo de Rotterdam [parte 4]


Quem reanimou e reuniu a plebe romana, quando ameaçava dissolver-se?
Foi, acaso, uma oração filosófica? Decerto que não: foi um ridículo, um pueril apólogo
sobre a revolta dos membros contra o estômago (44). Temístocles (45) produziu o mesmo
efeito com o seu apólogo da raposa e o ouriço. Empregue, pois, o sábio os mais tolos
conceitos da filosofia, e jamais triunfará como um Sertório (46) com sua imaginária corça
ou o engraçado ardil da cauda dos dois cavalos. Não alcançará nunca o seu objetivo como o
alcançaram os dois cães do célebre legislador de Esparta (47). Já não falo de Minos nem de
Numa (48), que por meio de fabulosas invenções souberam tirar proveito da ignorância
popular. É sempre com semelhante puerilidades que se faz mover a grande e estúpida besta
que se chama povo.

Dizei-me se houve uma única cidade que tenha adotado as leis de Platão e de Aristóteles,
ou as máximas de Sócrates (49). Respondei-me: que motivo levou os Décios, pai e filho, a
se consagrarem aos deuses infernais? Que ganhou Cúrcio precipitando-se na voragem (50)?
Tudo foi obra da glória, dessa dulcíssima sereia que, por isso, foi muito condenada por
nossos sábios. É por isso que eles exclamam: — Pode haver maior loucura que a de um
candidato que adula suplicentemente o povo para conquistar honras e que compra o seu
favor à custa de liberalismo? que a daquele que recebe servil e humildemente os aplausos
dos mentecaptos? daquele que fica lisonjeado com as aclamações populares? daquele que se
deixa carregar em triunfo, como uma estátua, para ser visto pelo povo, ou que é efigiado em
bronze no foro? A todas essas loucuras, acrescentai a da adoção dos nomes e sobrenomes;
acrescentai as honras divinas prestadas a um homem sem mérito algum; acrescentai,
finalmente, as cerimônias públicas levadas a efeito para colocar no número dos deuses os
mais celerados tiranos (51). Quem será capaz de negar que não há coisa mais tola? Não
bastaria um Demócrito para rir bastante disso. Mas, não será também verdade que a Loucura
foi a autora de todas as famosas proezas dos valorosos heróis que tantos literatos eloqüentes
elevaram às estrelas? É a Loucura que forma as cidades; graças a ela é que subsistem os
governos, a religião, os conselhos, os tribunais; e é mesmo lícito asseverar que a vida
humana não passa, afinal, de uma espécie de divertimento da Loucura.
Mas, passemos, agora, a falar das artes. Quem anima os homens a descobrir, a transmitir
aos seus pósteros tantas produções, ao parecer excelentes, se não a sede de glória? Acharam
esses homens, na verdade bastante tolos, que não deviam poupar nem velas, nem suor, nem
esforços de fadiga para conquistar não sei que imortalidade, a qual não passa, em última
análise, de uma belíssima quimera. Deveis, pois, à Loucura todos os bens que já se
introduziram no mundo, todos esses bens que estais gozando e que tanto contribuem para a
felicidade da vida.
Pois bem, que direis, senhores, se, depois de vos ter provado que a mim se devem todos
os louvores atribuídos à força e ao engenho humanos, eu vos provar que a mim também
pertencem os que recebe a prudência? — Essa é boa! — dirá, talvez, alguém. — Pretendeis
misturar o fogo com a água, pois a Loucura e a Prudência não são menos opostas que esses
dois elementos contrários. — Não obstante sentir-me-ei lisonjeada por vos convencer disso,
desde que continueis a prestar-me vossa gentil atenção.
Se a prudência consiste no uso comedido das coisas, eu desejaria saber qual dos dois
merece mais ser honrado com o título de prudente: o sábio que, parte por modéstia, parte por
medo, nada realiza, ou o louco, que nem o pudor (pois não o conhece) nem o perigo (porque
não o vê) podem demover de qualquer empreendimento. O sábio absorve-se no estudo dos autores antigos; mas, que proveito tira ele dessa constante leitura? Raros conceitos
espirituosos, alguns pensamentos requintados, algumas simples puerilidades — eis todo o
fruto de sua fadiga. O louco, ao contrário, tomando a iniciativa de tudo, arrostando todos os
perigos, parece-me alcançar a verdadeira prudência. Homero, embora cego, enxergava
muito bem essas verdades: “O tolo — disse ele — aprende à própria custa e só abre os olhos
depois do fato”. Duas coisas, sobretudo, impedem que o homem saiba ao certo o que deve
fazer: uma é a vergonha, que cega a inteligência e arrefece a coragem; a outra é o medo,
que, indicando o perigo, obriga a preferir a inércia à ação. Ora, é próprio da Loucura dirimir
todas essas dificuldades. Raros são os que sabem que, para fazer fortuna, é preciso não ter
vergonha de nada e arriscar tudo. Quero observar-vos, além disso, que os que preferem a
prudência fundada no julgamento das coisas estão muito longe de possuírem a verdadeira
prudência.
Todas as coisas humanas têm dois aspectos, à maneira dos Silenos de Alcibíades (52),
que tinham duas caras completamente opostas. Por isso é que, muitas vezes, o que à
primeira vista parece ser a morte, na realidade, observado com atenção, é a vida. E assim,
muitas vezes, o que parece ser a vida é a morte; o que parece belo é disforme; o que parece
rico é pobre; o que parece infame é glorioso; o que parece douto é ignorante; o que parece
robusto é fraco; o que parece nobre é ignóbil; o que parece alegre é triste; o que parece
favorável é contrário; o que parece amigo é inimigo; o que parece salutar é nocivo; em
suma, virado o Sileno, logo muda a cena. Estarei falando muito filosoficamente? Pois vou
explicar-me com maior clareza.
Todos vós estais convencidos, por exemplo, de que um rei, além de muito rico, é o
senhor dos seus súditos. Mas, se ele tiver no peito um coração brutal, se for insaciável na
sua cobiça, se nunca se mostrar satisfeito com o que possui, não concordareis comigo que é
miserabilíssimo? Se ele se deixar transportar por seus vícios e por suas paixões, não se
tornará um dos escravos mais vis? O mesmo se poderia dizer de tudo mais. Basta, porém,
esse exemplo. — E com que fim — podeis perguntar-me — nos dizeis tudo isso? — Um
pouco de paciência, e vereis aonde quero chegar. Se alguém se aproximasse de um cômico
mascarado, no instante em que estivesse desempenhando o seu papel, e tentasse arrancar-lhe
a máscara para que os espectadores lhe vissem o rosto, não perturbaria assim toda a cena?
Não mereceria ser expulso a pedradas, como um estúpido e petulante? No entanto, os
cômicos mascarados tornariam a aparecer; ver-se-ia que a mulher era um homem, a criança
um velho, o rei um infeliz e Deus um sujeito à-toa. Querer, porém, acabar com essa ilusão
importaria em perturbar inteiramente a cena, pois os olhos dos espectadores se divertiam
justamente com a troca das roupas e das fisionomias. Vamos à aplicação: que é, afinal, a
vida humana? Uma comédia. Cada qual aparece diferente de si mesmo; cada qual representa
o seu papel sempre mascarado, pelo menos enquanto o chefe dos comediantes não o faz
descer do palco. O mesmo ator aparece sob várias figuras, e o que estava sentado no trono,
soberbamente vestido, surge, em seguida, disfarçado em escravo, coberto por miseráveis
andrajos. Para dizer a verdade, tudo neste mundo não passa de uma sombra e de uma
aparência, mas o fato é que esta grande e longa comédia não pode ser representada de outra
forma.
Prossigamos. Se algum sábio caído do céu surgisse entre nós e se pusesse a gritar: “Não!
Aquele que venerais vosso Deus e Senhor (53) não é sequer um homem, não passando de
um animal dominado pelo impulso do instinto, de um escravo dos mais abjetos, pois serve a tantos vis tiranos quantas são as suas paixões”, — se esse sábio, dirigindo-se a alguém que
chorasse a morte do pai, o exortasse a rir, dizendo-lhe que esta vida não passa, na realidade,
de uma contínua morte e que, por conseguinte, seu pai só fez cessar de morrer; se,
enfurecendo-se com algum vaidoso soberbo de sua genealogia, o tratasse de ignóbil e de
bastardo por estar totalmente afastado da virtude, que é a única e exclusiva fonte da
verdadeira nobreza; e, se dessa maneira o nosso filósofo fosse falando de todas as outras
coisas humanas, pergunto eu que resultado obteria ele de suas declamações. Passaria,
decerto, para todos, por louco furioso. Portanto, ficai certos de que, assim como não há
maior estupidez do que querer passar por sábio fora do tempo, assim também não há nada
mais ridículo e imprudente do que uma prudência mal compreendida e inoportuna. Na
verdade, nós nos enganamos redondamente quando queremos distinguir-nos no gênero
humano, recusando-nos a nos adaptar aos tempos. Nunca se deveria esquecer esta lei que os
gregos estabeleceram para os seus banquetes: Bebei e ide-vos embora (54). O contrário seria
pretender que a comédia deixasse de ser comédia. Além disso, se a natureza vos fez homens,
a verdadeira prudência exige que não vos eleveis acima da condição humana. Em poucas
palavras, de duas uma: ou dissimular intencionalmente com os seus semelhantes, ou correr
ingenuamente o risco de se enganar com eles. E não será esta — indagam os sábios — outra
espécie de loucura? — Quem o nega? Que me concedam, porém, que é essa a única maneira
de cada qual fazer a sua pessoa aparecer na comédia do mundo.
Quanto ao resto... Deuses imortais! Devo falar? Devo calar-me? E porque devo calar-me,
se tudo o que quero dizer é mais verdadeiro do que a própria verdade? Ajudai-me, porém,
em assunto de tão relevante importância, a me dirigir às Musas e pedir-lhes que me
auxiliem, dispondo-se a vir do seu Helicão até a mim, tanto mais quanto os poetas tantas
vezes cometem a indiscrição de fazê-las descer por meras frioleiras. Vinde, pois, por um
instante, oh filhas de Júpiter, pois quero provar que essa sabedoria tão gabada e que
enfaticamente se chama o baluarte da felicidade, só é acessível aos que são orientados pela
Loucura.
Antes de mais nada, sustento que, em geral, as paixões são reguladas pela Loucura. Com
efeito, que é que distingue o sábio do louco? Não será, talvez, o fato do louco se guiar em
tudo pelas paixões, e o sábio pelo raciocínio? É por isso que os estóicos afastam do sábio
toda e qualquer perturbação de ânimo, considerando-a um verdadeiro mal. Aliás, se é que
nos merecem fé os peripatéticos, as paixões fazem as vezes de pedagogos aos que se
encaminham para o porto da sabedoria: são como estímulos e incentivos para a satisfação
dos deveres da vida e para uma conduta virtuosa. É verdade que Sêneca, duas vezes estóico,
isenta o seu sábio de toda sorte de paixões. Oh! bela obra-prima! Decerto, esse sábio não é
mais homem, mas uma espécie de deus que nunca existiu. Falemos mais claramente: o que
ele fez foi uma fria estátua de mármore, privada de todo senso humano.
Que os senhores estóicos apreciem e amem à vontade o seu sábio e vão passar a vida na
cidade de Platão (55), ou, se acharem melhor, na região das idéias, ou nos jardins de Tântalo
(56). Que espécie de homem é um estóico? Quem poderá deixar de evitá-lo como a um
monstro, de temê-lo como um fantasma? Eis o retrato fiel de um estóico: surdo à voz dos
sentidos, não sente paixão alguma; o amor e a piedade não impressionam absolutamente o
seu coração duro como o diamante; nada lhe escapa, nunca se perde, pois tem uma vista de
lince; tudo pesa com a máxima exatidão, nada perdoa; encontra em si mesmo toda a
felicidade e se julga o único rico da terra, o único sábio, o único livre, numa palavra, pensa que só ele é tudo, e o mais interessante é que é o único a se julgar assim. Amigos. É a sua
ultima preocupação, pois não possui nenhum. Sem nenhum escrúpulo, chega a insultar os
deuses e a condenar como verdadeira loucura tudo o que se faz no mundo, ridicularizando
todas as coisas.
Vede o belo quadro desse animal que nos apresentam como o modelo acabado da
sabedoria. Dizei-me, por favor: se a questão pudesse ser posta a votos, que cidade desejaria
semelhante magistrado? Que exército reclamaria um tal general? Quem o convidaria à sua
mesa? Estou igualmente convencida de que não acharia, sequer, uma mulher ou servo que
quisessem e pudessem suportá-lo. E quem, ao contrário, não preferiria um homem qualquer,
tirado da massa dos homens estúpidos; que, embora estúpido, soubesse mandar ou obedecer
aos estúpidos, fazendo-se amar por todos; que, sobretudo, fosse complacente para com a
mulher, bom para os amigos, alegre na mesa, sociável com todos os que convivesse; que,
finalmente, não se achasse estranho a tudo o que é próprio da humanidade? Mas, para falar a
verdade, chego a ter nojo de falar dessa espécie de sábios. Passo, por isso, a tratar dos outros
bens da vida.
***
Quando se reflete atentamtente sobre o gênero humano, e quando se observam como de
uma alta torre (justamente a maneira pela qual Júpiter costuma proceder, segundo dizem os
poetas), todas as calamidades a que está sujeita a vida dos mortais, não se pode deixar de
ficar vivamente comovido. Santo Deus! Que é, afinal, a vida humana? Como é miserável,
como é sórdido o nascimento! Como é penosa a educação! A quantos males está exposta a
infância! Como sua a juventude! Como é grave a velhice! Como é dura a necessidade da
morte! Percorramos, ainda uma vez, esse deplorável caminho. Que horrível e variada
multiplicidade de males! Quantos desastres, quantos incômodos se encontram na vida!
Enfim não há prazer que não tenha o amargor de muito fel. Quem poderia descrever a
infinita série de males que o homem causa ao homem, como sejam a pobreza, a prisão, a
infâmia, a desonra, os tormentos, a inveja, as traições, as injúrias, os conflitos, as fraudes,
etc.? Eu não saberia dizer-vos que delito teria o homem cometido para merecer tão grande
quantidade de males, nem que deus furioso o teria constrangido a nascer em tão horrível
vale de misérias. Assim, pois, quem quer que examine a fundo a miserabilíssima condição
do gênero humano, não poderá, decerto, deixar de aprovar o exemplo das virgens de Mileto
(57), embora seja um exemplo digno de toda a compaixão.
Quais foram os mais célebres desgostosos da vida que procuraram espontaneamente a
morte? Não foram, porventura, os amigos mais próximos da sabedoria? Para não falar de
Diógenes, Xenócrates, Catão, Cássio, Bruto, lembro apenas o famoso Quirão (58), que
preferiu a morte à imortalidade. Já sei que logo compreendereis quanto o mundo duraria
pouco, se a sabedoria fosse comum entre os mortais. Sou mesmo de opinião que, em breve,
haveria necessidade de uma nova argila e de um novo Prometeu (59). Mas, também nesse
caso, sou eu quem providencia, mantendo os homens na ignorância, na irreflexão, no
esquecimento dos males passados e na esperança de um futuro melhor. Misturando as
minhas doçuras com as da volúpia, eu amenizo o rigor do seu destino. Amam a vida não só
quase todos os homens, como até aqueles cujo fio da existência está prestes a ser cortado
pela morte, aqueles que devem deixar a vida depois de um bom número de anos. Eles não mostram nenhuma pressa de passar para o número dos mortos. Quanto mais motivos têm os
homens para viver contra a própria vontade, tanto menos se enojam da vida, evidenciando
que não acham excessivamente longos os seus dias. São um efeito da minha bondade esses
velhos que vedes alcançar a nestória decrepitude e que de humano só possuem a figura. Por
isso é que são gagos, delirantes, desdentados, encanecidos, calvos, ou, para descrevê-los
melhor, com as palavras de Aristófanes, enrugados, corcundas, sem nenhum resto de
virilidade. E, não obstante, amam com transporte a vida. Não se limitam esses velhotes
insensatos aos prazeres da existência, mas se esforçam ainda por imitar, o quanto podem, a
juventude: um enegrece os cabelos brancos; outro esconde com uma cabeleira a cabeça
calva; outro põe dentes tomados de empréstimo de algum porco; outro se apaixona
loucamente por uma moça e faz por ela loucuras que envergonhariam um rapazinho.
Estamos tão habituados a ver um homem todo curvado ao peso dos anos e que já não
enxerga a terra em que está para descer, a vê-lo, repito, casar-se com uma mocinha sem
dote, e casar-se, certamente, mais para o de outrem do que para o próprio uso, que isso se
torna quase um motivo de louvor.
Eis, porém, um quadro ainda mais divertido: aquelas velhas apaixonadas, aqueles
cadáveres semivivos que parecem ter saído do Érebo e já estão fedendo à carniça, ainda
sentem arder o coração. Lascivas como cadelas no cio, só respiram uma porca sensualidade
e dizem descaradamente que sem volúpia a vida não vale nada. Essas velhas cabras ainda
fazem o amor e, quando encontram algum Faão (60), costumam remunerar generosamente a
repugnância que causam. Então, mais do que nunca, se esmeram na pintura do rosto, passam
a vida diante do espelho, arrancam fios brancos de barba, ostentam dois seios flácidos e
enrugados, cantam com voz rouquenha e hesitante para despertar a lânguida concupiscência,
bebem à grande, intrometem-se nas danças das moças, escrevem cartas amorosas, — eis os
meios que essas velhas raposas empregam para dar coragem aos seus custosos campeões.
Enquanto isso, a sociedade exclama: — Que velhas malucas! Que velhas malucas! — Mas,
se a sociedade tem razão, elas se riem e, imersas nos prazeres, aproveitam a felicidade que
lhes proporciono. Eu desejaria que esses censores indiscretos soubessem dizer-me o que será
mais estúpido: viver alegre e satisfeito, ou eternamente desesperado até se enforcar com
uma corda. Poderão dizer-me que é uma verdadeira infâmia a vida desses velhos e dessas
velhas. Não o nego; mas, que importa isso aos meus loucos? Ou são inteiramente insensíveis
à desonra, ou então, quando a sentem, sufocam facilmente o remorso. Os meus bons e fiéis
súditos têm uma filosofia especial, que lhes faz distinguir muito bem os males imaginários
dos males reais. Cai-vos uma pedra na cabeça? Oh! isso, sim, é na realidade um mal! Mas, a
desonra, a infâmia, as censuras, as maldições só nos fazem mal quando queremos sentir:
desde que não pensemos nisso, deixam de ser um mal. Que mal pode fazer o que murmura a
sociedade, quando é certo que intimamente vos aplaudis? Ora, somente eu tenho a virtude
de sublimar os homens a esse alto grau de perfeição, e é esse um dos meus maiores
predicados. Parece-me, contudo, ouvir alguns filósofos dizerem que uma das maiores
desgraças para um homem consiste em ficar louco, em viver no erro, na ilusão e na
ignorância. Oh! como estão redondamente enganados! Respondo-lhes, ao contrário, que é
justamente nisso que consiste ser homem. Confesso-vos que não sei explicar como podem
tratar de infelizes os meus loucos, sendo a loucura, como é, patrimônio universal da
humanidade, e quando todos os mortais nascem, educam-se e se conformam com ela.
Parece-me bastante ridículo lastimar um ser que se acha no seu estado normal. Considerareis deplorável o fato do homem não ter asas para voar como os pássaros, ou
quatro pés como os quadrúpedes, ou a fronte armada de chifres como o touro? Lamentareis
a sorte de um belo cavalo, pelo fato de não ter aprendido gramática ou de não comer bem?
Deplorareis um touro, pelo fato de não ser adestrado na palestra? Portanto, assim como o
cavalo não é infeliz por ignorar a gramática, assim também não o é o louco, pois a loucura é
natural no homem. Mas, os sutis disputadores meus antagonistas continuam a perseguir-me
com novos sofismas. Dentre todos os animais — dizem eles — só o homem goza do
privilégio de aprender as artes e as ciências, a fim de suprir com os seus conhecimentos às
lacunas da natureza. Como se houvesse sombra de verdade em que a natureza, tão
previdente e vigilante quanto ao pernilongo e até quanto às ervas ou às florzinhas do campo,
fosse esquecer-se unicamente do homem, deixando de lhe fornecer tudo aquilo de que
precisa! Oh! que absurdo! Não! As ciências e as artes que tanto decantais não são obra da
natureza: foi um certo gênio chamado Teuto (61), grande inimigo do gênero humano, que,
por cúmulo da desventura dos homens, as inventou. Eis porque, muito longe de
contribuírem para essa felicidade que se pretende apresentar como razão de sua descoberta,
as ciências são, ao contrário, extremamente nocivas. Tinha decerto bom faro aquele sábio e
prudente rei (62) que, com tanta finura, segundo Platão, reprovou a invenção do alfabeto.
Digamos, pois, francamente, que a ciência e a indústria se introduziram no mundo com
todas as outras pestes da vida humana, tendo sido inventadas pelos mesmos espíritos que
deram origem a todos os males, isto é, pelos demônios, que por final tiraram da ciência o
seu nome (63). Nada disso se conhecia no século de ouro, em que, sem método, sem regra,
sem instrução, os homens viviam felizes, guiados pela natureza e pelo próprio instinto. Com
efeito, que utilidade teria, naquele tempo, a gramática? Havia apenas a linguagem, e, ainda
assim, só era falada para exprimir o pensamento. Não havia necessidade de lógica, porque,
tendo todos os mesmos raciocínios, as divergências de opinião não provocavam discussão
alguma. Não se conhecia a retórica naquela idade pacífica, em que não havia nem processos,
nem conflitos, nem discursos. Nessa época, os legisladores eram inúteis, porque, reinando os
bons costumes, não havia necessidade de leis (64). Além disso, aqueles mortais eram
religiosíssimos, motivo por que não ansiavam por investigar com ímpia curiosidade os
segredos da natureza. Convencidos de que a um pequeno inseto como o homem não é lícito
ultrapassar os estreitos limites de sua capacidade, não quebravam a cabeça com a pesquisa
das dimensões, dos movimentos, dos efeitos, das origens ocultas dos astros. Também não
lhes passava pela imaginação a impertinente idéia de querer saber o que se acha além dos
céus.
Mas, aos poucos, foi desaparecendo a inocência do século de ouro, de forma que os maus
gênios, como já disse, logo descobriram as artes, mas ainda em pequeno número e muito
pouco exercitadas. Em seguida, a superstição dos caldeus (65) e a ociosa leviandade dos
gregos criaram mil outras, todas muito oportunas e excelentes para atormentar o espírito. Só
a gramática é mais do que suficiente para nos aborrecer durante toda a vida. De todas essas
artes, são tidas em maior apreço as que mais se aproximam do bom senso, isto é, da loucura.
Mas, que vantagem proporcionam aos que delas fazem profissão? Morrem de fome os
teólogos, definham os físicos, caem no ridículo os astrólogos, são desprezados os dialéticos.
E só o médico faz fortuna.
A principal vantagem da medicina está em que, quanto mais ignorante, ousado e
temerário é quem a exerce, tanto mais estimado é pelos senhores laureados. Além disso, essa profissão, da maneira por que muitos a exercem hoje em dia, se reduz a uma espécie de
adulação, quase como a eloqüência.
Depois dos médicos, vêm, imediatamente, os rábulas ou jurisconsultos. Eu não saberia
dizer-vos ao certo se esses supostos filhos de Têmis precederam os sequazes de Esculápio:
disputam a precedência entre si. O que é fora de dúvida é que os filósofos, quase que por
consenso unânime, ridicularizam os advogados e, com muita propriedade, qualificam essa
profissão de ciência de burro. Mas, burros ou não, serão sempre eles os intérpretes das leis e
os reguladores de todos os negócios. Ao passo que esses senhores estendem os seus
latifúndios, o pobre teólogo, depois de ter revistado todas as arcas da divindade, é obrigado
a comer favas e a viver numa eterna guerra com os insetos nojentos.
De tudo quanto dissemos acerca das disciplinas, pode-se concluir que as artes mais
vantajosas são as que mais se relacionam com a loucura. Por conseguinte, são perfeitamente
felizes os homens que, sem ter qualquer relação com as ciências especulativas e práticas,
têm como único guia a natureza, a qual não possui nenhum defeito e nunca deixa que se
percam os que seguem fiel e exatamente os seus passos, sem a pretensão de sair dos limites
da condição humana. A natureza é inimiga de todo artifício, e, de fato, vemos crescer mais
felizes as coisas não contaminadas por nenhuma arte.
Permiti que me detenha um pouco sobre o mesmo argumento. Não será verdade que,
entre tantas espécies de animais, os que vivem mais felizes são os que não têm nenhuma
disciplina e que só a natureza reconhecem como mestra? Quem será mais feliz e admirável
do que as abelhas? No entanto, nem sequer possuem todos os sentidos do corpo. Apesar
disso, quando é que a arquitetura encontrará alguém que as iguale na construção dos
edifícios? Qual foi o filósofo que já instituiu uma república semelhante? Já o cavalo, por
estar mais próximo dos sentimentos do homem e sendo por este dominado, participa
consideravelmente das calamidades humanas. Acontece, muitas vezes, que esse animal
doméstico, em lugar de fugir da batalha, se atira ao perigo, e, na ambição da vitória, um
golpe mortal estende-o por terra, obrigando-o a comer poeira junto com o cavaleiro. Já não
falo das cruéis mordeduras, das esporadas agudas, da prisão que é a estrebaria, das rédeas,
do pesado cavaleiro, em suma, de toda a trágica escravidão a que ele, a exemplo do homem,
se sujeitou espontaneamente, na ânsia excessiva de se vingar do veado seu inimigo. Bem
mais desejável é a vida das moscas e dos pássaros, por nascerem livres e tomar a natureza o
encargo de nutrí-los. Seriam mesmo perfeitamente felizes e tranqüilos se não devessem
temer as insídias dos homens. Não imaginais quanto perdem os pássaros da sua primitiva
beleza, quando aprendem, nas gaiolas, os nossos cantos. E tanto isso é verdade, sob todos os
aspectos, que as produções da natureza ultrapassam de muito as da arte.
Por tudo isso, nunca terei louvado bastante a Pitágoras por se ter transformado em galo.
Esse filósofo, em virtude da metempsicose, passou por todos os estados: filósofo, homem,
mulher, rei, confidente, peixe, cavalo, rã e creio até que esponja. E, depois de todas essas
transmigrações, declarou que o homem era o mais infeliz de todos os animais, pois todos os
outros estão satisfeitos de ficar nos limites prefixados pela natureza, enquanto só o homem
se esforça por ultrapassá-los. Aiém disso, Pitágoras costumava antepor os tolos aos sábios e
aos grandes. Tal era, também, a opinião de Grilo, um dos companheiros do sensato Ulisses,
o qual, tendo sido transformado em porco pela bruxa Circe, preferia grunhir tranqüilo e à
vontade num chiqueiro a andar na pista de novos perigos e novas aventuras com o seu
general. Parece-me, também, que o próprio Homero, o célebre pai da mitologia, não diverge
dessa opinião, pois que, em geral, considera miseráveis todos os mortais e diz que a morte os cerca por toda a parte. Nem mesmo Ulisses, o seu famoso herói e modelo de sabedoria,
constitui para ele uma exceção, pois chega a lhe aplicar, várias vezes, o epíteto de infeliz.
No entanto, não diz o mesmo de Paris, de Ajax e de Aquiles, que eram loucos. Pelo
contrário: como Ulisses fosse engenhoso e astuto e seguisse os conselhos de Minerva,
preferindo-os a tudo mais, Homero deplorou a infelicidade desse rei de Ítaca.
Voltando, pois, ao meu assunto, afirmo que os que se aplicam ao estudo das ciências
estão muito longe da felicidade e são duplamente loucos, porque, esquecendo-se de sua
condição natural e querendo viver como outros tantos deuses, fazem à natureza, com as
máquinas de arte, uma guerra de gigantes. De tudo isso, infiro que os verdadeiros felizardos
são os que mais se aproximam da índole e da estupidez dos brutos, sem empreenderem nada
que esteja acima das forças humanas.
Pois bem! Tratemos de defender esse argumento, não com as antinomias dos estóicos,
mas com um exemplo palmar. Deuses imortais, julgai-o! Quem no mundo viverá mais feliz
do que os vulgarmente chamados bobos, tolos insensatos e imbecís? Ah! como acho bonitos
esses nomes! Quero dizer-vos uma coisa que, à primeira vista, talvez tomeis por
extravagante e absurda. Mas, que importa? Apesar disso, não quero deixar de vo-la dizer,
tanto mais quanto é superior a qualquer outra verdade.
Respondei-me: é ou não exato que os homens que se julgam privados de sentimento
nenhum medo têm da morte? E esse medo — por Baco! — não é um mal indiferente! Além
disso, estão isentos dos terríveis remorsos da consciência; não temendo nem fantasmas nem
trevas, não são atormentados pela perpétua perspectiva dos males; não são enganados pela
vã esperança de futuros bens. Em suma os seus dias não são envenenados pela infinita série
de cuidados a que está sujeita a vida. A desonra, o temor, a ambição, a inveja, o amor, a
amizade, são coisas inteiramente estranhas para eles, pois gozam da incomparável vantagem
de só na forma diferirem dos animais. Mas, isso não basta, pois que, segundo a opinião dos
teólogos, chegam a ser impecáveis. Isso posto, tornai a consultar ainda uma vez o vosso
íntimo, oh insensatos partidários da sabedoria! Ponderai, examinai atentamente quantas
aflições do espírito vos atormentam dia e noite; reuni em bloco, sob os vossos olhos, todos
os diversos males da vida; e julgai finalmente, por vós mesmos, quanto é grande a felicidade
que proporciono aos meus insensatos. Não gozam eles apenas de um contínuo prazer, rindo,
jogando e cantando, mas me parece, além disso, que a alegria, o prazer, a chacota, o riso,
seguem-lhes os passos por toda parte. Dir-se-ia que os deuses tiveram a bondade de
misturá-los com os homens para edulcorar a tristeza da vida humana. Eu desejaria que
notásseis ainda um privilégio que honra muitíssimo os meus súditos. Diversa é a disposição
do coração humano de indivíduo para indivíduo; mas, quanto aos meus loucos, todos os
homens sentem prazer em possuí-los, como se soubessem que eles são da sua natureza.
Desejam-nos com transporte, abraçam-nos, lisonjeiam-nos, alimentam-nos, socorrem-nos
em suas necessidades, em suma, permitem-lhes dizer e fazer todo mal que lhe aprouver. Não
só não se encontra ninguém que se atreva a contrariá-los, como parece que até as próprias
feras, por um natural sentimento da sua inocência, contêm diante deles a sua inata
ferocidade. São sagrados para os deuses, para mim sobretudo, motivo porque é muito justo
que todos usem para com eles do mesmo respeito.
Que diremos, em seguida, de tantas outras prerrogativas de que gozam os meus
sequazes? Os maiores monarcas de tal forma concentraram neles as suas delícias, que
muitos não podem nem jantar, nem passear, nem ficar longe deles por uma hora sequer. Que
diferença não acharão, pois, entre os seus bobos e os sábios melancólicos, dos quais talvez

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