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quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Elogio da Loucura - Erasmo de Rotterdam [parte 2]


DECLAMAÇÃO DE ERASMO DE ROTTERDAM
EMBORA os homens costumem ferir a minha reputação e eu saiba muito bem quanto o
meu nome soa mal aos ouvidos dos mais tolos, orgulho-me de vos dizer que esta Loucura,
sim, esta Loucura que estais vendo é a única capaz de alegrar os deuses e os mortais. A
prova incontestável do que afirmo está em que não sei que súbita e desusada alegria brilhou

no rosto de todos ao aparecer eu diante deste numerosíssimo auditório. De fato, erguestes
logo a fronte, satisfeitos, e com tão prazenteiro e amável sorriso me aplaudistes, que na
verdade todos os que distingo ao meu redor me parecem outros tantos deuses de Homero,
embriagados pelo néctar com nepente (8). No entanto, antes, estivestes sentados, tristes e
inquietos, como se há pouco tivésseis saído da caverna de Trofônio (9). Com efeito, como
no instante em que surge no céu a brilhante figura do sol, ou como quando, após um rígido
inverno, retorna a primavera com suas doces aragens e vemos todas as coisas tomarem logo
um novo aspecto, matizando-se de novas cores, contribuindo tudo para de certo modo
rejuvenecer a natureza, assim também, logo que me vistes, transformastes inteiramente as
vossas fisionomias. Bastou, pois, a minha simples presença para eu obter o que valentes
oradores mal teriam podido conseguir com um longo e longamente meditado discurso:
expulsar a tristeza de vossa alma.
Se, agora, fazeis questão de saber por que motivo me agrada aparecer diante de vós com
uma roupa tão extravagante, eu vo-lo direi em seguida, se tiverdes a gentileza de me prestar
atenção; não a atenção que costumais prestar aos oradores sacros, mas a que prestais aos
charlatães, aos intrujões e aos bobos das ruas, numa palavra, a que o nosso Midas (10)
prestava ao canto do deus Pã. E isso porque me agrada ser convosco um tanto sofista: não da
espécie dos que hoje não fazem senão imbuir as mentes juvenis de inúteis e difíceis
bagatelas, ensinando-os a discutir com uma pertinácia mais do que feminina. Ao contrário,
pretendo imitar os antigos, que, evitando o infame nome de filósofos, preferiram chamar-se
sofistas (11), cuja principal cogitação consistia em elogiar os deuses e os heróis. Ireis, pois,
ouvir o elogio, não de um Hércules ou de um Solon, mas de mim mesma, isto é, da Loucura.
Para dizer a verdade, não nutro nenhuma simpatia pelos sábios que consideram tolo e
impudente o auto-elogio. Poderão julgar que seja isso uma insensatez, mas deverão
concordar que uma coisa muito decorosa é zelar pelo próprio nome.
De fato, que mais poderia convir à Loucura do que ser o arauto do próprio mérito e fazer
ecoar por toda parte os seus próprios louvores? Quem poderá pintar-me com mais fidelidade
do que eu mesma? Haverá, talvez, quem reconheça melhor em mim o que eu mesma não
reconheço? De resto, esta minha conduta me parece muito mais modesta do que a que
costuma ter a maior parte dos grandes e dos sábios do mundo. É que estes, calcando o pudor
aos pés, subornam qualquer panegirista adulador, ou um poetastro tagarela, que, à custa do
ouro, recita os seus elogios, que não passam, afinal, de uma rede de mentiras. E, enquanto o
modestíssimo homem fica a escutá-lo, o adulador ostenta penas de pavão, levanta a crista,
modula uma voz de timbre descarado comparando aos deuses o homenzinho de nada,
apresentando-o como modelo absoluto de todas as virtudes, muito embora saiba estar ele
muito longe disso, enfeitando com penas não suas a desprezível gralha, esforçando-se por
alvejar as peles da Etiópia, e, finalmente, fazendo de uma mosca um elefante. Assim, pois,
sigo aquele conhecido provérbio que diz: Não tens quem te elogie? Elogia-te a ti mesmo.
Não posso deixar, neste momento, de manifestar um grande desprezo, não sei se pela
ingratidão ou pelo fingimento dos mortais. É certo que nutrem por mim uma veneração
muito grande e apreciam bastante as minhas boas ações; mas, parece incrível, desde que o
mundo é mundo, nunca houve um só homem que, manifestando o reconhecimento, fizesse o
elogio da Loucura.
Não faltou, contudo, quem, com grande perda de azeite e de sono, exaltasse, com elogios
estudatíssimos, os Busiris (12) e os Falaris (13), a febre quartã e a mosca, a calvície e outras

pestes semelhantes. Ireis, pois, ouvir de mim mesma o meu panegírico, o qual, não sendo
oportuno nem estudado, será, por isso mesmo, muito mais sincero. Não julgueis que assim
vos fale por ostentação de engenho, como costuma fazer a maior parte dos oradores. Estes,
como bem sabeis, depois de se esfalfarem bem uns trinta anos em cima de um discurso,
talvez surrupiado de outrem, são tão impudentes que procuram impingir que o fizeram, por
divertimento, em três dias, ou então que o ditaram. Eu, ao contrário, sempre gostei muito de
dizer tudo o que me vem à boca.
Não espereis que, de acordo com o costume dos retóricos vulgares, eu vos dê a minha
definição e mito menos a minha divisão. Com efeito, que é definir? É encerrar a idéia de
uma coisa nos seus justos limites. E que é dividir? É separar uma coisa em suas diversas
partes. Ora, nem uma nem outra me convém. Como poderia limitar-me, quando o meu poder
se estende a todo o gênero humano? E, como poderia dividir-me, quando tudo concorre, em
geral, para sustentar a minha divindade? Além disso, porque haveria de me pintar como
sombra e imagem numa definição quando estou diante dos vossos olhos e me vedes em
pessoa?
Sou eu mesma, como vedes; sim, sou eu aquela verdadeira dispenseira de bens, a que os
italianos chamam Pazzia e os gregos Mória. E que necessidade havia de vo-lo dizer? O meu
rosto já não o diz bastante? Se há alguém que desastradamente se tenha iludido,
tomando-me por Minerva ou pela Sabedoria, bastará olhar-me de frente, para logo me
conhecer a fundo, sem que eu me sirva das palavras que são a imagem sincera do
pensamento. Não existe em mim simulação alguma, mostrando-me eu por fora o que sou no
coração. Sou sempre igual a mim mesma, de tal forma que, se alguns dos meus sequazes
presumem não passar por tais, disfarçando-se sob a máscara e o nome de sábios, não serão
eles mais do que macacos vestidos de púrpura, do que burros vestidos com pele de leão.
Qualquer, pois, que seja o raciocínio feito para se mostrarem diferentes do que são, dois
compridos orelhões descobrirão sempre o seu Midas.
Para dizer a verdade, não estou nada satisfeita com essa gente ingrata, com esses
perversos velhacos, porque, embora pertençam mais do que os outros ao nosso império, não
só publicamente se envergonham de usar o meu nome, como muitas vezes chegam a
aplicá-lo aos outros como título oprobioso. Portanto, sendo eles loucos e arquiloucos,
embora assumam a atitude de sábios e de Tales (14), não teremos razão de chamá-los
loucamente de sábios?
A esse respeito, pareceu-me igualmente oportuno imitar os retóricos dos nossos dias, que
se reputam outras tantas divindades, uma vez que podem gabar-se de outras línguas como a
sanguessuga (15) e consideram coisa maravilhosa inserir nos seus discursos, de cambulhada,
mesmo fora de propósito, palavrinhas gregas, a fim de formarem belíssimos mosaicos. E,
quando acontece que um desses oradores não conhece as línguas estrangeiras, desentranha
ele de rançosos papéis quatro ou cinco vocábulos, com os quais lança poeira aos olhos do
leitor, de forma que os que o entendem se compadeçam do próprio saber e os que não o
comprendem o admirem na proporção da própria ignorância. Para nós, os tolos, um dos
maiores prazeres não consistirá em admirar, com a máxima surpresa, tudo o que nos vem
dos países ultramontanos? Finalmente, se houver alguns que, embora não entendendo nada
desses velhos idiomas, queiram dar mostras de que os compreendem, nesse caso devem
aparentar uma fisionomia satisfeita, aprovar abanando a cabeça, ou simplesmente as longas
orelhas de burro, e dizer com um ar de importância: Bravo! Bravo! Muito bem! Justamente!

Mas, retomemos o fio do nosso raciocínio. Portanto, sabeis agora o meu nome, homens...
Mas, que epíteto poderei aplicar-vos? Sem dúvida que o de estultíssimos! Que vos parece?
Poderia, acaso, a deusa Loucura dar epíteto mais digno aos seus adoradores, aos iniciados
nos seus mistérios? Como, porém, poucos dentre vós conhecem a minha genealogia, vou
procurar informar-vos a respeito com auxílio das musas (16).
Para dizer a verdade, não nasci nem do Caos (17), nem do Orco, nem de Saturno, nem de
Japeto (NE), nem de nenhum desses deuses rançosos e caducos. É Plutão, deus das riquezas,
o meu pai. Sim, Plutão (sem que o levem a mal Hesíodo, Homero e o próprio Júpiter), pai
dos deuses e dos homens; Plutão, que, no presente como no passado, a um simples gesto,
cria, destrói, governa todas as coisas sagradas e profanas; Plutão, por cujo talento a guerra, a
paz, os impérios, os conselhos, os juizes, os comícios, os matrimônios, os tratados, as
confederações, as leis, as artes, o ridículo, o sério (ai! não posso mais! falta-me a
respiração), concluamos, por cujo talento se regulam todos os negócios públicos e privados
dos mortais; Plutão, sem cujo braço toda a turba das divindades poéticas, falemos com mais
franqueza, os próprios deuses de primeira ordem (18) não existiriam, ou pelo menos
passariam muito mal; Plutão, finalmente, cujo desprezo é tão terrível que a própria Palas
(19) não seria capaz de proteger bastante os que o provocassem, mas cujo favor, ao
contrário, é tão poderoso que quem o obtém pode rir-se de Júpiter e de suas setas. Pois bem,
é justamente esse o meu pai, de quem tanto me orgulho, pois me gerou, não do cérebro,
como fez Júpiter com a torva e feroz Minerva, mas de Neotetes (20), a mais bonita e alegre
ninfa do mundo. Além disso, os meus progenitores não eram ligados pelo matrimônio, nem
nasci como o defeituoso Vulcano, filho da fastidiosíssima ligação de Júpiter com Juno. Sou
filha do prazer e o amor livre presidiu ao meu nascimento; para falar com nosso Homero, foi
Plutão dominado por um transporte de ternura amorosa. Assim, para não incorrerdes em
erro, declaro-vos que já não falo daquele decrépito Plutão que nos descreveu Aristófanes,
agora caduco e cego, mas de Plutão ainda robusto, cheio de calor na flor da juventude, e não
só moço, mas também exaltado como nunca pelo néctar, a ponto de, num jantar com os
deuses, por extravagância, o ter bebido puro e aos grandes goles.
Se, além disso, fazeis questão de saber ainda qual a minha pátria (uma vez que, em
nossos dias, é como uma prova de nobreza notificar ao público o lugar no qual demos os
nossos primeiros vagidos), ficai sabendo que não nasci nem na ilha Natante de Delos, como
Apolo; nem da espuma do agitado Oceano, como Vênus; nem das escuras cavernas. Nasci
nas ilhas Fortunadas, onde a natureza não tem necessidade alguma da arte. Não se sabe, ali,
o que sejam o trabalho, a velhice, as doenças; nunca se vêem, nos campos, nem asfódelo,
nem malva nem lilá, nem lúpulo, nem fava, nem outros semelhantes e desprezíveis vegetais.
Ali, ao contrário, a terra produz tudo quanto possa deleitar a vista e embriagar o olfato:
mólio (21), panacéia, nepente, mangerona, ambrosia, lotus, rosas, violetas, jacintos,
anêmonas. Nascida no meio de tantas delícias, não saudei a luz com o pranto, como quase
todos os homens: mal fui parida, comecei a rir gostosamente na cara de minha mãe. Não
invejo, pois, ao supremo Júpiter, o ter sido amamentado pela cabra Amaltéia, pois que duas
graciosíssimas ninfas me deram de mamar: Mete (22), filha de Baco, e Apedia (23), filha de
Pã. Ainda podeis vê-las, aqui, no consórcio das outras minhas sequazes e companheiras. Se,
por Júpiter, também quereis saber os seus nomes, eu vo-lo direi, mas somente em grego.
Estais vendo esta, de olhar altivo? É Filavtia, isto é, o amor-próprio. E esta, de olhos
risonhos, que aplaude batendo palmas? É Kolaxia, isto é, a adulação. E, a outra, de

pálpebras cerradas parecendo dormir? É Lethes, isto é, o esquecimento. E aquela, que se
acha apoiada nos cotovelos, com as mãos cruzadas? É Misoponia, isto é, o horror à fadiga. E
esta, que tem a cabeça engrinaldada de rosas, exalando essências e perfumes? É Idonis, isto
é, a volúpia. E a outra, que está revirando os olhos lúbricos e incertos e parece dominada por
convulsões? É Ania, isto é, a irreflexão. Finalmente, aquela, de pele alabastrina, gorducha e
bem nutrida, é Trofís, isto é, a delícia. Entre essas ninfas, podeis distinguir ainda dois
deuses: um é Komo, isto é, o riso e o prazer da mesa; o outro é Nigreton hypnon, isto é, o
sono profundo.
Acompanhada, pois, e servida fielmente por esse séquito de criados, estendo o meu
domínio sobre todas as coisas, e até os monarcas mais absolutos estão submetidos ao meu
império. Já conheceis, portanto, o meu nascimento, a minha educação e a minha corte.
Agora, para que ninguém julgue não haver razão para eu usurpar o nome de deusa, quero
demonstrar-vos quanto sou útil aos deuses e aos homens e até onde chega o meu divino
poder, desde que me presteis ouvidos com bastante atenção.
Já escreveu sensatamente alguém que ser deus consiste em favorecer os mortais. Ora, se
com razão foram incluídos no rol dos deuses os que introduziram na sociedade o vinho, a
cerveja e outras tantas vantagens proporcionadas ao homem, porque não serei eu
proclamada e venerada como a primeira das divindades, eu, que a todos, prodigamente,
dispenso sozinha tantos bens?
Antes de tudo, dizei-me: haverá no mundo coisa mais doce e mais preciosa do que a
vida? E quem, mais do que eu, contribui para a concepção dos mortais? Nem a lança
poderosa de Palas, nem a égide (24) do fulminante Júpiter, nada valem para produzir e
propagar o gênero humano. O próprio pai dos deuses e rei dos homens, a um gesto do qual
treme todo o Olimpo, faria bem em depor o seu fulmíneo trissuleo, em deixar aquele ar
terrível e majestoso com o qual aterroriza toda aquela multidão de deuses, e em
apresentar-se, o pobrezinho, como bom cômico, sob uma forma inteiramente nova, quando
quiser desempenhar a função, por ele já tantas vezes desempenhada, de procriar pequenos
Júpiters.
Vejamos, agora, os bobalhões dos estóicos, que se reputam tão próximos e afins dos
deuses. Mostrai-me apenas um, dentre eles, que, mesmo sendo mil vezes estóico, nunca
tendo feito a barba, distintivo da sabedoria (se bem que tal distintivo seja também comum
aos bodes): precisará deixar o seu ar cheio de orgulho, assumir uns ares de fidalgo,
abandonar a sua moral austera e inflexível, fazer asneiras e loucuras. Em suma, será forçoso
que esse filósofo se dirija a mim e se recomende, se quiser tornar-se pai.
E porque, segundo o meu costume, não hei de vos falar mais livremente? Dizei-me, por
favor: serão, talvez, a cabeça, a cara, o peito, as mãos, as orelhas, como partes do corpo
reputadas honestas, que geram os deuses e os homens? Ora, meus senhores, eu acho que
não: o instrumento propagador do gênero humano é aquela parte, tão deselegante e ridícula
que não se lhe pode dizer o nome sem provocar o riso. Aquela, sim, é justamente aquela a
fonte sagrada de onde provêm os deuses e os mortais.
Pois bem, quem desejaria sacrificar-se ao laço matrimonial, se antes, como costumam
fazer em geral os filósofos, refletisse bem nos incômodos que acompanham essa condição?
Qual é a mulher que se submeteria ao dever conjugai, se todas conhecessem ou tivessem em
mente as perigosas dores do parto e as penas da educação? Se, portanto, deveis a vida ao
matrimônio e o matrimônio à Irreflexão, que é uma das minhas sequazes, avaliai quanto me

deveis. Além disso, uma mulher que já passou uma vez pelos espinhos do indissolúvel laço,
e que anseia por tornar a passar por eles, não o fará, talvez, em virtude da assistência da
ninfa Esquecimento, minha cara companheira? É preciso dizer, pois, a despeito do poeta
Lucrécio, e a própria Vênus não ousaria negá-lo, que sem a nossa pujança e a nossa
proteção, a sua força e a sua virtude langueceriam e se desvaneceriam completamente (25).
Foi, por conseguinte, dessa agradável brincadeira, por mim temperada com o riso, o
prazer e a amorosa embriaguez, que saíram os carrancudos filósofos, agora substituídos
pelos homens vulgarmente chamados frades, os purpúreos monarcas, os pios sacerdotes e os
pontífices três vezes santíssimos. Finalmente, dessa brincadeira é que também surgiu toda a
turba das divindades poéticas; turba tão imensa que o céu, embora muito espaçoso, mal pode
contê-la. Mas, pouco amiga seria eu da verdade, se, depois de vos provar que de mim
tivestes o gérmen e o desenvolvimento da vida, não vos demonstrasse ainda que provêm da
minha liberalidade todos os bens que a vida encerra.
Que seria esta vida, se é que de vida merece o nome, sem os prazeres da volúpia? Oh!
Oh! Vós me aplaudis? Já vejo que não há aqui nenhum insensato que não possua esse
sentimento. Sois todos nuito sábios, uma vez que, a meu ver, loucura é o mesmo que
sabedoria. Podeis, pois, estar certos de que também os estóicos não desprezam a volúpia,
embora astutamente se finjam alheios a ela e a ultrajem com mil injúrias diante do povo, a
fim de que, amendontrando os outros, possam gozá-la mais freqüentemente. Mas, admitindo
que esses hipócritas declamem de boa fé, dizei-me, por Júpiter, sim, dizei-me se há, acaso,
um só dia na vida que não seja triste, desagradável, fastidioso, enfadonho, aborrecido,
quando não é animado pela volúpia, isto é pelo condimento da loucura. Tomo Sóflocles por
testemunho irrefragável, Sóflocles (26) nunca bastante louvado. Oh! nunca se me fez tanta
justiça! Diz ele, para minha honra e minha glória: “Como é bom viver! mas, sem sabedoria,
porque esta é o veneno da vida”. Procuremos explicar essa proposição.
Todos sabem que a infância é a idade mais alegre e agradável. Mas, que é que torna os
meninos tão amados? Que é que nos leva a beijá-los, abraçá-los e amá-los com tanta
afeição? Ao ver esses pequenos inocentes, até um inimigo se enternece e os socorre. Qual é
a causa disso? É a natureza, que, procedendo com sabedoria, deu às crianças um certo ar de
loucura, pelo qual elas obtêm a redução dos castigos dos seus educadores e se tornam
merecedoras do afeto de quem as tem ao seu cudado. Ama-se a primeira juventude que se
sucede à infância, sente-se prazer em ser-lhe útil, iniciá-la, socorrê-la. Mas, de quem recebe
a meninice os seus atrativos? De quem, se não de mim, que lhe concedo a graça de ser
amalucada e, por conseguinte, de gozar e de brincar? Quero que me chamem de mentirosa,
se não for verdade que os jovens mudam inteiramente de caráter logo que principiam a ficar
homens e, orientados pelas lições e pela experiência do mundo, entram na infeliz carreira da
sabedoria. Vemos, então, desvanecer-se aos poucos a sua beleza, diminuir a sua vivacidade,
desaparecerem aquela simplicidade e aquela candura tão apreciadas. E acaba por
extinguir-se neles o natural vigor.
Por tudo isso, observai, senhores, que, quanto mais o homem se afasta de mim, tanto
menos goza dos bens da vida, avançando de tal maneira nesse sentido que logo chega à
fastidiosa e incômoda velhice, tão insuportável para si como para os outros. E, já que
falámos de velhice, não fiqueis aborrecidos se por um momento chamo para ela a vossa
atenção. Oh! como os homens seriam lastimáveis sem mim, no fim dos seus dias! Mas,
tenho pena deles e estendo-lhes a mão. Não raro, as divindades poéticas socorrem






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