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quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Elogio da Loucura - Erasmo de Rotterdam [parte 1]


ERASMO A THOMAS MORE, SAÚDE.

ACHANDO-ME, dias atrás, de regresso da Itália à Inglaterra, a fim de não gastar todo o
tempo da viagem em insípidas fábulas, preferi recrear-me, ora volvendo o espírito aos
nossos comuns estudos, ora recordando os doutíssimos e ao mesmo tempo dulcíssimos
amigos que deixara ao partir. E foste tu, meu caro More, o primeiro a aparecer aos meus
olhos, pois que malgrado tanta distância, eu via e falava contigo com o mesmo prazer que
costumava ter em tua presença e que juro não ter experimentado maior em minha vida.
Não desejando, naquele intervalo, passar por indolente, e não me parecendo as circunstâncias
adequadas aos pensamentos sérios, julguei conveniente divertir-me com um elogio da
Loucura. Porque essa inspiração? (1) — perguntar-me-ás. Pelo seguinte: a princípio,
dominou-me essa fantasia por causa do teu gentil sobrenome, tão parecido com a Mória (2)
quanto realmente estás longe dela e, decerto, ainda mais longe do conceito que em geral dela
se faz. Em seguida, lisonjeou-me a idéia de que essa engenhosa pilhéria pudesse merecer a
tua aprovação, se é verdade que divertimentos tão artificiais, não me parecendo plebeus,
naturalmente, nem de todo insulsos, te possam deleitar (3), permitindo que, como um novo
Demócrito, observes e ridicularizes os acontecimentos da vida humana. Mas, assim como,
pela excelência do gênio e de talentos, estás acima da maioria dos homens, assim também,
pela rara suavidade do costume e pela singular afabilidade, sabes e gostas, sempre e em toda
parte, de habituar-te a todos e a todos parecer amável e grato.
Por conseguinte, gostarás agora, não só de aceitar de bom grado esta minha pequena
arenga, como um presente do teu bom amigo, mas também de colocá-la sob o teu patrocínio,
como coisa sagrada para ti e, na verdade, mais tua do que minha. Já prevejo que não faltarão
detratores para insurgir-se contra ela, acusando-a de frivolidade indigna de um teólogo, de
sátira indecente para a moderação cristã, em suma, clamando e cacarejando contra o fato de
eu ter ressuscitado a antiga comédia (4) e, qual novo Luciano (5), ter magoado a todos sem
piedade. Mas, os que se desgostarem com a ligeireza do argumento e com o seu ridículo
devem ficar avisados de que não sou eu o seu autor, pois que com o seu uso se
familiarizaram numerosos grandes homens. Com efeito, muitos séculos antes, Homero
escreveu a sua Batraquiomaquia, Virgílio cantou o mosquito e a amoreira, e Ovídio a
nogueira; Polícrates chegou a fazer o elogio de Busiris, mais tarde impugnado e corrigido
por Isócrates; Glauco enalteceu a injustiça, o filósofo Favorino louvou Tersites e a febre
quartã; Sinésio a calvície e Luciano a mosca parasita; finalmente, Sêneca ridicularizou a
apoteose de Cláudio, Plutarco escreveu o diálogo do grilo com Ulisses, Luciano e Apuleio
falaram do burro; e um tal Grunnio Corocotta fez o testamento do porco, citado por São
Jerônimo. Saibam, pois, esses censores que também, para divertir-me, já joguei xadrez e
montei em cavalo de pau (6), como um menino. Na verdade, haverá maior injustiça do que,

sendo permitida uma brincadeira adequada a cada idade e condição, não poder pilheriar um
literato, principalmente quando a pilhéria tem um fundo de seriedade, sendo as facécias
manejadas apenas como disfarce, de forma que quem as lê, quando não seja um solene
bobalhão, mas possua algum faro, encontre nelas ainda mais proveito do que em profundos
e luminosos temas? Que dizer, então, de alguém que, com um longo discurso, depois de
muito estudar e fatigar as costas elogiasse a retórica ou a filosofia? ou de alguém que
escrevesse o elogio de um príncipe, outro uma exortação contra os turcos, outro fizesse
horóscopos e predições baseado nos planetas, outro questões de lana caprina (7) e
investigações futilíssimas? Portanto, assim como não há nada mais inepto do que abordar
graves argumentos puerilmente, assim também é bastante agradável e plausível tratar de
igual forma as pilhérias, não têm aqui outro objetivo senão o de pilheriar.
Quanto a mim, deixo que os outros julguem esta minha tagarelice; mas, se o meu
amor-próprio não deixar que eu o perceba, contentar-me-ei de ter elogiado a Loucura sem
estar inteiramente louco. Quanto à imputação de sarcasmo, não deixarei de dizer que há
muito tempo existe a liberdade de estilo com a qual se zomba da maneira por que vive e
conversa o homem, a não ser que se caia no cinismo e no veneno. Assim, pergunto se se
deve estimar o que magoa, ou antes o que ensina e instrui, censurando a vida e os costumes
humanos, sem pessoalmente ferir ninguém. Se assim não fosse, precisaria eu mesmo fazer
uma sátira a meu respeito, com todas as particularidades que atribuo aos outros. Além disso,
quem se insurge em geral contra todos os aspectos da vida não deve ser inimigo de ninguém,
mas unicamente do vício em toda a sua extensão e totalidade. Se houver, pois, alguém que
se sinta ofendido por isso, deverá procurar descobrir as suas próprias mazelas, porque, do
contrário, se tornará suspeito ao mostrar receio de ser objeto da minha censura. Muito mais
livre e acerbo nesse gênero literário foi São Jerônimo, que nem sequer perdoava os nomes
das pessoas! Nós, porém, além de calarmos absolutamente os nomes, temperamos o estilo,
de forma que o leitor honesto verá por si mesmo que o meu propósito foi mais divertir do
que magoar. Seguindo o exemplo de Juvenal, em nenhum ponto tocamos na oculta cloaca de
vícios da humanidade, nem revelamos as suas torpezas e infâmias, limitando-nos a mostrar o
que nos pareceu ridículo. Se, apesar de tudo, ainda houver ranzinzas e descontentes, que ao
menos observem como é bonito e vantajoso ser acusado de loucura. Com efeito, na boca da
que trouxemos à cena e fizemos falar, foi necessário pôr os juízos e as palavras que mais se
coadunam com o seu caráter. Mas, para que hei de te dizer todas essas coisas, se és emérito
advogado, capaz de defender egregiamente mesmo as causas menos favoráveis?
Sem mais, eloquentíssimo More, estimo que estejas são e tomes animosamente a parte de
tua loucura.
Vila, 10 de junho de 1508.

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