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quarta-feira, 31 de outubro de 2012

A Política - Aristóteles [parte 24 b]

Enfim, a comunidade de mulheres e de crianças produz necessariamente o
efeito contrário ao que se deve propor todo legislador, e que o próprio Sócrates
pretendeu. O maior bem que se possa fazer à sociedade política é preservá-la
de toda sedição e cultivar a benevolência mútua. A unidade tão recomendada
por Sócrates é, como ele diz, segundo Aristófanes, obra do amor ou da
amizade. Aqueles que se amam procuram unir-se de maneira a tornar-se um; é
preciso que desapareça um dos dois, ou ambos ao mesmo tempo. Ora, a
amizade, numa tão vasta comunidade, onde o pai não sabe qual é o seu filho
nem o filho quem é seu pai, não passa de uma gota de licor que se torna
insípida numa grande quantidade de água. O pai não mais se preocupa com o
filho, o filho desdenha seu pai, os irmãos são indiferentes um para com o outro;
pois sobretudo duas coisas despertam a solicitude e a afeição entre os homens:
um objeto digno de ser amado e sua propriedade, o que não pode existir com
semelhantes instituições.
Quanto às transferências dos filhos de lavradores ou de artesãos para a
classe dos guerreiros, ou da dos filhos destes para a classe daqueles, não
podem realizar-se sem grandes problemas. Aqueles que dão os filhos querem
saber para quem, e esta é outra fonte de querelas, de assassínios ou de
amores ilícitos. Os transferidos não chamam mais de irmãos, filhos, pais ou
mães os que os entregam a outros cidadãos, e perdem todas as considerações
devidas à consangüinidade. Eis o que tinha a dizer sobre a comunidade das
mulheres e dos filhos. 
O objeto que, numa boa Constituição, deve ser regulado imediatamente a
seguir é o dos bens. Devem ou não ser comuns? Este problema é
independente da mesma questão sobre os filhos e as mulheres. Admitindo a
atribuição distinta destes últimos a cada pai de família (o que acontece hoje em
toda parte), o que é melhor? Que os bens e seu uso permaneçam em comum?
Que os campos sejam possuídos separadamente e os frutos sejam comuns,
como em certas nações? Ou, pelo contrário, que o terreno seja comum e os
frutos divididos para o uso próprio de cada um, como, segundo dizem, se faz
entre alguns bárbaros? Ou, finalmente, que os frutos sejam comuns?
Se não fossem os cidadãos que lavrassem os campos, a questão seria
mais fácil de resolver, mas se são os cidadãos que lavram para eles próprios, a
questão das propriedades fica mais difícil. Existindo desigualdade entre o
trabalho e o usufruto, os que trabalham muito e recebem pouco protestarão
contra os que trabalham pouco e ganham muito. Em geral, é difícil viver junto e
possuir em comum as coisas que são de uso dos homens, sobretudo estas que
tocam de perto à vida. Não quero outra prova ou outro exemplo disso que não as
caravanas de viajantes que brigam a cada instante, por coisas insignificantes, e
as altercações perpétuas que é preciso tolerar no serviço alternado desses
domésticos que têm vários senhores. A comunidade de posse gera
naturalmente todas estas dificuldades.
A maneira como se vive hoje, principalmente se somarem os benefícios dos
bons costumes e das boas leis, é muito preferível, por ser capaz de nos
proporcionar a um só tempo estas duas vantagens: a da comunidade e a da
propriedade. Com efeito, é preciso que sob certos aspectos os bens sejam
comuns, mas que em geral pertençam a particulares. Por um lado, a repartição e
separação dos campos evita toda ocasião de disputa entre os cultivadores, e os
bens não param de se valorizar quando cada um os explora por sua conta; por
outro lado, conforme o provérbio, a virtude torna o uso comum entre amigos.
Esta maneira de viver não é nem impraticável nem carece de exemplos. Nos
Estados mais bem constituídos, ela existe de fato, ou então pode ser facilmente
introduzida. Na Lacedemônia, por exemplo, embora cada um tenha suas
próprias propriedades, elas são partilhadas com os amigos e se faz uso dos
bens deles como dos seus próprios. Da mesma forma, servem-se dos escravos,
dos cavalos e dos cães uns dos outros, ou dos víveres, se for preciso, como
quando se está em campanha e se carece do necessário. E muito conveniente,
pois, que as posses sejam particulares, mas que sejam comuns para o uso. 
Como podem tornar-se assim? Cabe ao legislador resolvê-lo.
O encanto da propriedade é inexprimível. Não é em vão que cada um ama
a si mesmo; tal amor é inato; só é repreensível o excesso chamado
amor-próprio, que consiste em se amar mais do que convém. Tampouco é
proibido amar o dinheiro, nem outra coisa da mesma natureza: todos o fazem.
Mas é uma grande satisfação poder servir a um vizinho, a um estrangeiro, como
é possível quando se é proprietário, fonte desconhecida de prazer no sistema
que, para melhor unir os cidadãos, dá tudo à sociedade política.
Esse sistema, aliás, fecha as portas para duas virtudes eminentes: primeiro,
à continência de fato, é um nobre esforço abster-se da mulher de outro), e
depois, à liberalidade, pois como ser liberal se não se tem nada à disposição?
O aspecto sedutor da comunidade de todos os bens vem de que ela
parece, à primeira vista, convidar todos os homens a se amarem; também
contribui o preconceito existente de que os vícios que grassam em certos
regimes procedem da propriedade, como esses eternos processos que
sempre renascem entre os cidadãos por ocasião dos contratos, a corrupção de
testemunhas e a adulação a que as pessoas se rebaixam diante dos ricos. Mas
não é da propriedade dos bens que derivam esses males, mas da improbidade
dos homens. Observamos estas disputas, e outras ainda maiores, entre
aqueles que têm os bens em comum; elas são até mais comuns e mais
renitentes entre eles, embora sejam poucos, do que entre os proprietários, que
são muito mais numerosos.
Ademais, não bastaria indicar os males que a comunidade de bens
remediaria; seria justo falar também das vantagens de que nos priva: ela até
parece tornar a existência absolutamente impossível.
O que enganou a Sócrates foi que ele partiu de um princípio que não é
exatamente verdadeiro. Sem dúvida, tanto na sociedade política como na
sociedade doméstica, é necessária alguma unidade, mas não a unidade em
tudo. De tanto reduzi-Ia à unidade, faz-se com que não seja mais uma
sociedade. Seus vícios aumentam na medida de sua redução, mais ou menos
como se se reduzisse um concerto a uma voz, ou um verso a um pé.
já que a sociedade civil supõe, como já ficou dito, uma grande multidão
de homens, é preciso torná-la una pelos princípios e pela instrução comum.

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