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quarta-feira, 31 de outubro de 2012

A Política - Aristóteles - [parte 24]

Exame de Algumas Constituições
que Tiveram seu Reinado ou que
Foram Apenas Projetadas
pelos Filósofos

Sendo nossa intenção examinar qual seja a melhor das sociedades políticas
para os que podem levar o gênero de vida que melhor lhes convém, devemos
considerar rapidamente as Constituições dos Estados que passaram por ter
boas leis, assim como os projetos de alguns filósofos que se ocuparam deste
assunto. Veremos o que se pode aproveitar disso. Deve ser-nos permitido
também procurar algo de melhor, não para ostentar uma vã erudição, mas para
indicar o que pode haver para corrigir em cada um.
Exame das Duas Repúblicas de Platão
Comecemos pelo exame da questão que se apresenta em primeiro lugar
nesta discussão, a saber, se tudo deve ser comum entre os cidadãos ou se não
deve haver nada de comum, ou se algumas coisas devem sê-lo e não outras.
Nada haver em comum é impossível. O próprio Estado não é senão uma
espécie de comunidade, a que é necessário, em primeiro lugar, um local
comum. É esta unidade de lugar que faz com que todos pertençam igualmente a
uma mesma Cidade e os associa quanto ao território.
Num Estado bem constituído, porém, tudo o que for suscetível de
comunidade deve permanecer em comum, ou a comunidade deve restringir-se a
certas coisas, sendo o restante próprio de cada um?
Em sua República, Platão propõe que as mulheres, as crianças e os bens
sejam comuns aos cidadãos. De fato, neste Diálogo, Sócrates preconiza a
comunidade total. Qual é melhor, este sistema ou nosso costume?
A comunidade de mulheres oferece grandes dificuldades, e se fosse
preciso estabelecê-la não seria pela razão apresentada por Sócrates. O próprio
fim suposto por ele para a associação política torna impossível este
estabelecimento, e assim ele nada diz de preciso sobre este assunto.
Seu princípio é que o maior bem que possa acontecer para um Estado
qualquer é a perfeita unidade; digo o mesmo, mas se levarem muito longe essa
unidade, ela não será mais uma sociedade política que consiste essencialmente
numa multidão de pessoas. De uma Cidade podem fazer uma família, e, de uma
família, uma só pessoa. Com efeito, há mais unidade numa família do que num
Estado, e numa só pessoa do que numa família. Ora, se fosse possível
estabelecer esta perfeita unidade entre os membros de um Estado, seria
preciso evitá-lo: isso seria destruir a sociedade política, que, por essência, é
constituída de pessoas, não apenas em grande número, mas também
dessemelhantes e de espécies diferentes. 
Há muita diferença entre um Estado e uma liga. A liga compõe-se de
gente da mesma espécie, unida pelo pacto de se auxiliar mutuamente em caso
de guerra. Quanto maior número de homens contar, mais será forte, semelhante
assim aos pesos, cuja força aumenta na razão de sua quantidade.
Os bandos também diferem dos povos, por não se dividirem em cidades
e aldeias, mas se dispersarem por cabanas, como os árcades.
Para que a unidade social seja vantajosa, é preciso que os membros
unidos difiram em espécie. O que conserva o Estado é, como dissemos em
nossa Ética, a reciprocidade dos serviços.
Esta reciprocidade deve existir entre pessoas livres e iguais. Nem todos
podem comandar ao mesmo tempo, mas cada qual por sua vez, por ano ou
alguma outra divisão e ordem de tempo. Desta maneira, todos participam da
autoridade: é como se os sapateiros e os serralheiros, ao invés de
permanecerem toda a vida no trabalho que escolheram, revezassem de
profissão. E já que é vantajoso que a sociedade política seja organizada desta
maneira, é evidente que seria preferível que todos pudessem mandar, se fosse
possível; mas como a igualdade natural torna o governo comum impossível
quanto a certas coisas, e como é justo que cada qual participe da autoridade,
quer a julguemos um bem, quer a consideremos um fardo, é necessário, quanto
ao que não pode ser ordenado por todos, que se faça alternar o poder, de modo
que homens que são iguais entre si mandem e obedeçam alternadamente,
como se se tivessem tornado outros homens.
Observo, também, que aqueles que são investidos de autoridade exercem
poderes diferentes.
É, portanto, claro que a unidade, como alguris a apresentam, não
pertence à essência de um Estado, e o que chamam de seu maior bem é a sua
ruína. O que é realmente bom conserva.
Outro raciocínio também prova que a unidade perfeita demais não
convém ao Estado: uma família basta-se mais a si mesma do que um indivíduo,
e um Estado, mais do que uma família. Até mesmo não há verdadeiro Estado
senão quando a sociedade tem todos os bens de que precisa para satisfazer às
suas necessidades. Portanto, se esta suficiência é preferível a tudo, menos
unidade é mais desejável do que unidade demais.
Se supuséssemos que o maior bem de um Estado é ser reduzido à
unidade, esta não seria demonstrada pela hipótese de que todos os cidadãos
concordassem em dizer: "Isto é e não é meu", linguagem que Sócrates
considera sinal de sua perfeita unidade. 
A palavra "todos" tem dois significados. Se a tomarmos
distributivamente, haverá alguma verdade nas palavras de Sócrates, podendo
cada um, de fato, dizer de sua mulher e de seu filho que são seus, e o mesmo
sobre seus bens e sobre o que lhe diz respeito pessoalmente; mas os que
tivessem mulheres e crianças em comum não poderiam dizer o mesmo. A
palavra "todos" não tem a idéia de cada um deles em particular; empregá-la,
neste caso, é um paralogismo.
Encontra-se a mesma ambigüidade em um "casal", que significa ora os
dois indivíduos, ora o seu conjunto; conseqüentemente, um número par no
primeiro sentido e ímpar no segundo, o que pode ocasionar grandes equívocos.
Sem dúvida, é permitido a todos e a cada um falar da mesma forma, pois
isto é bom em si; mas a coisa é impossível e inútil para a uniformidade de
sentimentos.
Há outro inconveniente na comunidade socrática: preocupamo-nos pouco
com o que é comum a muitos e só damos valor ao que nos pertence; ou, se nos
preocupamos com o que nos é comum, é unicamente pela parte que podemos
ter. De resto, descansamos uns sobre os outros, e normalmente acontece o que
se observa no serviço doméstico, onde quanto mais empregados houver, menos
o trabalho é bem feito. Da mesma forma, achando-se cada cidadão de posse
de milhares de filhos que não são mais dele do que dos outros, todos
desdenharão de igual modo o seu trato e a sua educação.
Além disso, cada qual vai querer ter como filhos os que prosperarem, e
rejeitará os outros. Como entre os milhares ou mais de crianças não se terá
certeza sobre a paternidade e nem a quem se deve a sua conservação, não
haverá preocupação de saber quem é quem e se dirá ao acaso: "Este é meu;
este é dele." Ora, pergunto, o que é preferível para uma criança entre duas ou
dez mil outras, que cada qual a chame seu filho ou ter, como entre nós, um pai
conhecido, ser chamado por um de filho, por outro de irmão, por um terceiro de
sobrinho, e ser designado pelos diversos graus de consangüinidade, de
parentesco ou de afinidade, pelos laços de cúria e de tribo? Haveria alguma
dúvida em preferir a mera qualidade de primo em nosso costume à de filho no
de Sócrates?
Será até mesmo impossível apagar perfeitamente os indícios da
verdadeira origem e impedir que se reconheçam seus pais, seus irmãos e seus
filhos. A semelhança de uns com os outros trairá sua consangüinidade, como em
algumas regiões da Alta Líbia, onde, de acordo com os relatos dos viajantes,
apesar da comunidade de mulheres, se distinguem as crianças pela
semelhança de traços. Entre os outros animais existem também fêmeas, como
as jumentas e as vacas, que imprimem em suas crias a figura dos que as
geraram, como fazia a jumenta de Farsala, chamada ajusta. 
Há outros inconvenientes ainda mais graves e igualmente inevitáveis
nessa comunidade proposta.
Em primeiro lugar, há rixas e assassínios, voluntários ou não, combates,
ultrajes, bem mais graves contra um pai ou outros parentes próximos do que
contra estranhos. Estes crimes serão bem mais comuns se se ignorar a filiação
do que se ela for conhecida. Cometidos por erro, não poderão ser expiados
através das cerimônias de costume, por não serem reconhecidos.
Outro absurdo da comunidade de crianças é só se ter proibido o comércio
amoroso dos dois sexos, e não o amor e suas intimidades de pai para filho, de
irmão para irmão, que são o cúmulo da indecência e da torpeza. Ora, não é
estranho proibir as relações entre os dois sexos, em razão dos perigos da
volúpia excessiva, e ser indiferente sobre essas familiaridades entre pai e filho,
irmão e irmão?
A comunidade das mulheres e das crianças pareceria mais útil aos
agricultores do que aos guerreiros. Há menos apego recíproco nessa
comunidade, e esta é uma sábia precaução para tornar os cidadãos mais
submissos e menos propensos às revoluções.

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