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quinta-feira, 20 de setembro de 2012

O Anticristo - (parte 11)


LI
Que em certas circunstâncias a fé promove a bem-aventurança, que a bem-aventurança não faz de uma idee fixe(1) uma ideia verdadeira, que a fé na realidade não move montanhas, mas as constrói onde antes não existiam: tudo isso fica bastante evidente após uma breve visita a um hospício. Mas não, é claro, para um padre: pois seus instintos o induzem a dizer que a doença não é doença e que hospícios não são hospícios. O cristianismo necessita da doença, assim como o espírito grego necessitava de uma saúde superabundante – o verdadeiro objetivo de todo o sistema de salvação da Igreja é tornar as pessoas enfermas. E a própria Igreja – não considera ela um manicômio católico como o ideal último? – Toda a Terra, um manicômio? – O tipo de homem religioso que a Igreja deseja é o típico decadente; a época em que uma crise religiosa se apodera de um povo é sempre marcada por epidemias de desordem nervosa; o “mundo interior” de um homem religioso assemelha-se tanto ao “mundo interior” de um homem sobreexcitado e exausto que é difícil distinguir entre os dois; os estados mais “elevados”, que o cristianismo colocou sobre a humanidade como valores supremos, são formas epileptoides – a Igreja concedeu nomes sagrados apenas para lunáticos ou grandes impostores in majorem Dei honorem(2)... Uma vez me aventurei a considerar todo o sistema cristão de training em penitência e salvação (atualmente melhor estudado na Inglaterra) como um método para produzir uma folie circulaire(3) sobre um solo já preparado, ou seja, um solo absolutamente insalubre. Nem todos podem ser cristãos: não se é “convertido” ao cristianismo – antes é necessário estar suficientemente doente... Nós outros, nós que temos coragem para a saúde e para o desprezo – temos o direito de desprezar uma religião que prega a incompreensão do corpo! Que se recusa a dispensar a superstição da alma! Que da insuficiência alimentar faz “virtude”! Que combate a saúde como alguma espécie de inimigo, de demônio, de tentação! Que se convenceu de que é possível trazer uma “alma perfeita” em um corpo cadavérico, e que, para isso, inventou um novo conceito de “perfeição”, um estado existencial pálido, doentio, fanático até a estupidez, a chamada “santidade” – uma santidade que não passa de uma série de sintomas de um corpo empobrecido, enervado e incuravelmente corrompido!... O movimento cristão, enquanto movimento Europeu, desde o começo não foi mais que uma sublevação de toda espécie de elementos desterrados e refugados (– que agora, sob a máscara do cristianismo, aspiram ao poder). – Não representa a degeneração de uma raça; representa, pelo contrário, uma conglomeração de produtos da decadência vindos de todas as direções, amontoando-se e buscando-se reciprocamente. Não foi, como se pensa, a corrupção da Antiguidade, da Antiguidade nobre, que tornou o cristianismo possível; nunca será possível combater com violência suficiente a imbecilidade erudita que atualmente sustém tal teoria. Quando as enfermas e podres classes chandala de todo o imperium foram cristianizadas, o tipo oposto, a nobreza, alcançou seu estágio de desenvolvimento mais belo e amadurecido. A maioria subiu ao poder; a democracia, com seus instintos cristãos, triunfou... O cristianismo não era “nacional”, não estava baseado em raça – apelou a todas as variedades de homens deserdados pela vida, tinha aliados em toda parte. O cristianismo possui em seu âmago o rancor dos doentes – o instinto contra os sãos, contra a saúde. Tudo que é bem constituído, orgulhoso, galante e, acima de tudo, belo é uma ofensa aos seus olhos e ouvidos. Novamente recordo as inestimáveis palavras de Paulo: “Deus escolheu as coisas fracas deste mundo, as coisas loucas deste mundo, as coisas ignóbeis e as desprezadas”(4): essa era a fórmula; in hoc signo(5) a décadence triunfou. – Deus na cruz – o homem nunca compreenderá o assustador significado que esse símbolo encerra? – Tudo que sofre, tudo que está crucificado é divino... Nós todos estamos suspensos na cruz, consequentemente somos divinos... Apenas nós somos divinos!... Neste sentido o cristianismo foi uma vitória: uma mentalidade mais nobre pereceu por ele – o cristianismo continua sendo a maior desgraça da humanidade.
1 – Ideia fixa.
2 – Para maior honra de Deus.
3 – Loucura circular.
4 – I Coríntios 1:27-28.
5 – Com este sinal.
LII
O cristianismo também se encontra em oposição a toda boa constituição intelectual – somente a razão enferma pode ser usada como razão cristã; toma o partido de tudo que é idiota; lança sua maldição contra o “intelecto”, contra a soberba do intelecto são. Visto que a doença é inerente ao cristianismo, segue-se disso que o estado típico do cristão, “a fé”, também é necessariamente uma forma de doença; todos os caminhos retos, legítimos e científicos devem ser banidos pela Igreja como sendo caminhos proibidos. A própria dúvida é um pecado... A completa ausência de limpeza psicológica no padre – identificada por um simples olhar – é um fenômeno resultante da decadência – observando-se mulheres histéricas e crianças raquíticas notar-se-á regularmente que a falsificação dos instintos, o prazer de mentir por mentir e a incapacidade de olhar e caminhar direito são sintomas da decadência. “Fé” significa não querer saber o que é a verdade. O padre, o devoto de ambos os sexos, é uma fraude porque é doente: seus instintos exigem que a verdade jamais tenha direito em qualquer ponto. “Tudo que torna doente é bom; tudo que surge da plenitude, da superabundância, do poder, é mau”: assim pensa o crente. Uma compulsão para
mentir – é através disso que reconheço todo teólogo predestinado. – Outra característica do teólogo é sua incapacidade filológica. O que quero dizer com filologia é, de modo geral, a arte de ler bem – a capacidade de absorver fatos sem interpretá-los falsamente, sem perder, na ânsia de compreendê-los, a cautela, a paciência e a sutileza. Filologia como ephexis(1) na interpretação: trate-se de livros, de notícias de jornal, dos mais funestos eventos ou de estatísticas meteorológicas – para não mencionar a “salvação da alma”... A maneira como um teólogo, seja de Berlim ou Roma, explica, digamos, uma “passagem bíblica”, ou um acontecimento, por exemplo, a vitória do exército nacional, sob a sublime luz dos Salmos de Davi, é sempre tão ousada que faz um filólogo subir pelas paredes. E o que dizer quando devotos e outras vacas da Suábia(2) usam o “dedo de Deus” para converter sua miserável existência cotidiana e sedentária em um milagre da “graça”, da “providência”, em uma “experiência divina”? O mais modesto exercício de intelecto, para não dizer de decência, deveria de certo ser suficiente para convencer esses intérpretes da perfeita infantilidade e indignidade de tal abuso da destreza digital de Deus. Apesar de sermos poucos compassivos, caso encontrássemos um Deus que curasse oportunamente um constipado, ou que nos colocasse em uma carruagem no instante em que começasse a chover, ele nos pareceria um Deus tão absurdo que, mesmo existindo, teríamos de aboli-lo. Deus como empregado doméstico, como carteiro, como mensageiro – no fundo, Deus é simplesmente um nome dado para a mais imbecil espécie de acaso... A “Divina Providência”, na qual terça parte da “Alemanha culta” ainda acredita, é um argumento tão forte contra Deus que em vão se procuraria por um melhor. E em todo caso é um argumento contra os alemães!...
1 – Ceticismo.
2 – Uma referência à Universidade de Tübingen e sua famosa escola de crítica Bíblica. O líder da escola era F. C. Baur, e um dos homens que ele mais fortemente influenciou era uma abominação de Nietzsche, David F. Strauss, ele próprio, um suábio. (H. L. Mencken)
LIII
– É tão pouco verdadeiro que mártires oferecem qualquer verossimilhança a uma causa que me sinto inclinado a negar que qualquer mártir já teve alguma coisa a ver com a verdade. No tom com que um mártir lança sua convicção à cara do mundo revela-se um grau tão baixo de probidade intelectual, tamanha insensibilidade ao problema da “verdade”, que nunca chega a ser necessário refutá-lo. A verdade não é algo que alguns homens têm e outros não: na melhor das hipóteses, só há camponeses e apóstolos de camponeses, da classe de Lutero, que possam pensar assim da verdade. Pode-se ter certeza de que, quanto maior for o grau de consciência intelectual de um homem, maior será sua modéstia, sua discrição neste ponto. Ser competente em cinco ou seis coisas e se recusar, com delicadeza, a saber algo mais... O entendimento que todos profetas, sectários, livres-pensadores, socialistas e homens de igreja têm da
palavra “verdade” é simplesmente uma prova cabal de que nem sequer foi dado o primeiro passo em direção à disciplina intelectual e ao autocontrole necessários à descoberta da menor das verdades. – Os mártires, diga-se de passagem, foram uma grande desgraça na história: seduziram... A conclusão a que todos idiotas, mulheres e plebeus chegam é que deve haver algum valor em uma causa pela qual alguém afronta a morte (ou que, como o cristianismo primitivo, engendra uma epidemia de gente à procura da morte) – essa conclusão impede o exame os fatos, tolhe por inteiro o espírito investigativo e circunspeto. Os mártires danificaram a verdade... Mesmo hoje, basta uma certa dose de crueldade na perseguição para proporcionar uma honrável reputação ao mais vazio tipo de sectarismo. – Como? O valor de uma causa é alterado pelo fato alguém ter se sacrificado por ela? – Um erro que se torna honroso é simplesmente um erro que possui um encanto sedutor: julgais, senhores teólogos, que vos daremos a chance de serdes martirizados por vossas mentiras? – Melhor se refuta uma causa colocando-a, respeitosamente, no gelo – esse também é o melhor meio para refutar os teólogos... Foi precisamente esta a estupidez histórico-mundial de todos os perseguidores: deram uma aparência honrosa à causa a que se opuseram – deram-lhe de presente a fascinação do martírio... Mulheres ainda se ajoelham ante um erro porque lhes disseram que um indivíduo morreu na cruz por ele. A cruz, então, é um argumento? – Mas sobre todas essas coisas um, e somente um, disse aquilo de que há milhares de anos se tinha necessidade – Zaratustra:
Traçaram sinais de sangue pelo caminho que percorreram, e sua loucura ensinava que a verdade se prova através do sangue.
Mas o sangue é, de todas, a pior testemunha da verdade; sangue envenena até a doutrina mais pura e a converte em insânia e ódio do coração.
E quando alguém atravessa o fogo por sua doutrina – que isso prova? Mais vale, em verdade, que do nosso próprio incêndio venha a nossa doutrina!(1)
1 – “Assim falou Zaratustra”, parte II, “Dos Sacerdotes”.
LIV
Não nos enganemos: grandes intelectos são céticos. Zaratustra é um cético. A força e a liberdade que surgem do vigor e da plenitude intelectual se manifestam através do ceticismo. Homens de convicção estática não são levados em consideração quando se pretende determinar o que é fundamental em matéria de valor e desvalor. Homens de convicção são prisioneiros. Não veem longe o bastante, não veem abaixo de si: para um homem poder falar de valor e desvalor é necessário que veja quinhentas convicções abaixo de si – atrás de si... Uma mente que aspira a algo grande, e que também deseja os meios para isso, é
necessariamente cética. A liberdade de qualquer tipo de convicção constitui parte da força, da capacidade de possuir um ponto de vista independente... A grande paixão do cético, o fundamento e a potência do seu ser, é mais esclarecida e mais despótica que ele próprio, coloca toda sua inteligência a seu serviço; lhe torna inescrupuloso; lhe concede a coragem para empregar até meios ímpios; sob certas circunstâncias, lhe permite convicções. A convicção enquanto um meio: muito só pode ser alcançado por meio de uma convicção. A grande paixão usa, consome convicções, mas não se submete a elas – sabe-se a soberana. – Pelo contrário, a necessidade de fé, de uma coisa não subordinada ao sim e não, de carlylismo, se me permitem a expressão, é a necessidade da fraqueza. O homem de fé, o “crente” de toda espécie, é necessariamente dependente – tal homem é incapaz de colocar-se a si mesmo como objetivo, e tampouco é capaz determinar ele próprio seus objetivos. O “crente” não se pertence; apenas pode ser o meio para um fim; precisa ser consumido; precisa de alguém que o consuma. Seus instintos atribuem suprema honra à moral da despersonalização; tudo o persuade a abraçar essa moral: sua prudência, sua experiência, sua vaidade.

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