O “primeiro cristão” – e também, receio, o “último cristão”, que eu talvez viva tempo suficiente para ver – é um rebelde por profundo instinto contra tudo que é privilégio – vive e guerreia sempre pela “igualdade de direitos”... Estritamente falando, ele não tem escolha. Quando alguém pretende representar, ele próprio, o “eleito de Deus” – ou “templo de Deus”, ou “juiz dos anjos” –, então qualquer outro critério de eleição, quer seja baseado na honestidade, no intelecto, na virilidade e no orgulho, ou na beleza e liberdade de coração, torna-se simplesmente “mundano” – o mal em si... Moral: toda palavra pronunciada por um “primeiro cristão” é uma mentira, todos seus atos são instintivamente desonestos – todos seus valores, todos seus fins são nocivos, mas todos que odeia, tudo que odeia, tem valor verdadeiro... O cristão, e particularmente o padre cristão, é um critério de valores.
– Preciso acrescentar que, em todo o Novo Testamento, não aparece senão uma única figura merecedora de honra: Pilatos, o governador romano. Levar assuntos judaicos a sério – ele estava muito acima disso. Um judeu a mais ou a menos – que isso importa?... A nobre ironia do romano ante o qual a palavra “verdade” foi cinicamente abusada enriqueceu o Novo Testamento com a única passagem que tem qualquer valor – que é sua crítica e sua destruição: “Que é a verdade?”...
– Preciso acrescentar que, em todo o Novo Testamento, não aparece senão uma única figura merecedora de honra: Pilatos, o governador romano. Levar assuntos judaicos a sério – ele estava muito acima disso. Um judeu a mais ou a menos – que isso importa?... A nobre ironia do romano ante o qual a palavra “verdade” foi cinicamente abusada enriqueceu o Novo Testamento com a única passagem que tem qualquer valor – que é sua crítica e sua destruição: “Que é a verdade?”...
XLVII
– O que nos distingue não é nossa incapacidade de encontrar Deus, nem na história, nem na natureza, nem por detrás da natureza – mas que consideramos tudo que foi honrado como sendo Deus, não como algo “divino”, mas lastimável, absurdo, nocivo; não como um simples erro, mas como um crime contra a vida... Negamos que esse Deus seja Deus... E se alguém nos mostrasse esse Deus cristão, ficaríamos ainda menos inclinamos a crer nele. – Numa fórmula: Deus, qualem Paulus creavit, Dei negatio.(1) – Uma religião como o cristianismo, que não possui um único ponto de contato com a realidade, que se esfacela no momento em que a realidade impõe seus direitos, inevitavelmente será a inimiga mortal da “sabedoria deste mundo”, ou seja, da ciência – nomeará bom tudo que serve para envenenar, caluniar e depreciar toda disciplina intelectual, toda lucidez e retidão em matéria de consciência intelectual, toda frieza nobre e liberdade de espírito. A “fé”, como um imperativo, veta a ciência – in praxi(2), mentir a todo custo... Paulo compreendeu muito bem que a mentira – que a “fé” – era necessária; e posteriormente a Igreja compreendeu Paulo. – O Deus que Paulo inventou, um Deus que “reduz ao absurdo” a “sabedoria deste mundo” (especialmente as duas grandes inimigas da superstição, a filologia e a medicina), é em verdade uma indicação da firme determinação de Paulo para realizar isto: dar o nome de Deus à sua própria vontade, thora(3) – isso é essencialmente judaico. Paulo quer desvalorizar a “sabedoria deste mundo”: seus inimigos são os bons filólogos e médicos da escola alexandrina – a guerra é feita contra eles. De fato, nenhum homem pode ser filólogo e médico sem ao mesmo tempo ser anticristo. O filólogo vê por detrás dos “livros sagrados”, o médico vê por detrás da degeneração fisiológica do cristão típico. O médico diz “incurável”; o filólogo diz “fraude”...
1 – Deus, tal como Paulo o criou, é a negação de Deus.
2 – Na prática.
3 – Lei.
– O que nos distingue não é nossa incapacidade de encontrar Deus, nem na história, nem na natureza, nem por detrás da natureza – mas que consideramos tudo que foi honrado como sendo Deus, não como algo “divino”, mas lastimável, absurdo, nocivo; não como um simples erro, mas como um crime contra a vida... Negamos que esse Deus seja Deus... E se alguém nos mostrasse esse Deus cristão, ficaríamos ainda menos inclinamos a crer nele. – Numa fórmula: Deus, qualem Paulus creavit, Dei negatio.(1) – Uma religião como o cristianismo, que não possui um único ponto de contato com a realidade, que se esfacela no momento em que a realidade impõe seus direitos, inevitavelmente será a inimiga mortal da “sabedoria deste mundo”, ou seja, da ciência – nomeará bom tudo que serve para envenenar, caluniar e depreciar toda disciplina intelectual, toda lucidez e retidão em matéria de consciência intelectual, toda frieza nobre e liberdade de espírito. A “fé”, como um imperativo, veta a ciência – in praxi(2), mentir a todo custo... Paulo compreendeu muito bem que a mentira – que a “fé” – era necessária; e posteriormente a Igreja compreendeu Paulo. – O Deus que Paulo inventou, um Deus que “reduz ao absurdo” a “sabedoria deste mundo” (especialmente as duas grandes inimigas da superstição, a filologia e a medicina), é em verdade uma indicação da firme determinação de Paulo para realizar isto: dar o nome de Deus à sua própria vontade, thora(3) – isso é essencialmente judaico. Paulo quer desvalorizar a “sabedoria deste mundo”: seus inimigos são os bons filólogos e médicos da escola alexandrina – a guerra é feita contra eles. De fato, nenhum homem pode ser filólogo e médico sem ao mesmo tempo ser anticristo. O filólogo vê por detrás dos “livros sagrados”, o médico vê por detrás da degeneração fisiológica do cristão típico. O médico diz “incurável”; o filólogo diz “fraude”...
1 – Deus, tal como Paulo o criou, é a negação de Deus.
2 – Na prática.
3 – Lei.
XLVIII
– Será que alguém já compreendeu claramente a célebre história que se encontra no início da Bíblia – a do pavor mortal de Deus ante a ciência? Ninguém, de fato, a compreendeu. Este livro de padres par excellence começa, como convém, com a grande dificuldade interior do padre: ele enfrenta um único grande perigo, ergo, “Deus” enfrenta um único grande perigo. –
– Será que alguém já compreendeu claramente a célebre história que se encontra no início da Bíblia – a do pavor mortal de Deus ante a ciência? Ninguém, de fato, a compreendeu. Este livro de padres par excellence começa, como convém, com a grande dificuldade interior do padre: ele enfrenta um único grande perigo, ergo, “Deus” enfrenta um único grande perigo. –
O velho Deus, todo “espírito”, todo grão-padre, todo perfeição, passeia pelo seu jardim: está entediado e tentando matar tempo. Contra o enfado até os Deuses lutam em vão(1). O que ele faz? Cria o homem – o homem é divertido... Mas então percebe que o homem também está entediado. A piedade de Deus para a única forma da aflição presente em todos os paraísos desconhece limites: então em seguida criou outros animais. Primeiro erro de Deus: para o homem esses animais não representavam diversão – ele buscava dominá-los; não queria ser um “animal”. – Então Deus criou a mulher. Com isso erradicou enfado – e muitas outras coisas também! A mulher foi o segundo erro de Deus. – “A mulher, por natureza, é uma serpente: Eva” – todo padre sabe disso; “da mulher vem todo o mal do mundo” – todo padre sabe disso também. Logo, igualmente cabe a ela a culpa pela ciência... Foi devido à mulher que o homem provou da árvore do conhecimento. – Que sucedeu? O velho Deus foi acometido por um pavor mortal. O próprio homem havia sido seu maior erro; criou para si um rival; a ciência torna os homens divinos – tudo se arruína para padres e deuses quando o homem torna-se científico! – Moral: a ciência é proibida per se; somente ela é proibida. A ciência é o primeiro dos pecados, o germe de todos os pecados, o pecado original. Toda a moral é apenas isto: “Tu não conhecerás” – o resto é deduz-se disso. – O pavor de Deus, entretanto, não o impediu de ser astuto. Como se proteger contra a ciência? Por longo tempo esse foi o problema capital. Resposta: expulsando o homem do paraíso! A felicidade e a ociosidade evocam o pensar – e todos pensamentos são maus pensamentos! – O homem não deve pensar. – Então o “padre” inventa a angústia, a morte, os perigos mortais do parto, toda a espécie de misérias, a decrepitude e, acima de tudo, a enfermidade – nada senão armas para alimentar a guerra contra a ciência! Os problemas não permitem que o homem pense... Apesar disso – que terrível! – o edifício do conhecimento começa a elevar-se, invadindo os céus, obscurecendo os Deuses – que fazer? – O velho Deus inventa a guerra; separa os povos; faz com que se destruam uns aos outros (– os padres sempre necessitaram de guerras...). Guerra – entre outras coisas, um grande estorvo à ciência! – Inacreditável! O conhecimento, a emancipação do domínio sacerdotal prosperam apesar da guerra! – Então o velho Deus chega à sua resolução final: “O homem tornou-se científico – não existe outra solução: ele precisa ser afogado”...
1 – Paráfrase de Schiller, “Contra a estupidez até os Deuses lutam em vão.” (H. L. Mencken)
XLIX
– Fui compreendido. No início da Bíblia está toda a psicologia do padre. – O padre conhece apenas um grande perigo: a ciência – o conceito sadio de causa e efeito. Mas a ciência apenas floresce totalmente sob condições favoráveis – um homem precisa de tempo, precisa possuir um intelecto transbordante para poder “conhecer”... “Logo, é preciso tornar o homem infeliz” – essa foi, em todas as épocas, a lógica do padre. – É fácil ver o que, a partir dessa lógica, surgiu no mundo: – o “pecado”... O conceito de culpa e punição, toda a “ordem moral do mundo” foram direcionados contra a ciência – contra a emancipação do homem do jugo sacerdotal... O homem não deve olhar para seu exterior; deve olhar apenas para o interior.
Não deve olhar as coisas com acuidade e prudência, não deve aprender sobre elas; não deve olhar para nada; deve apenas sofrer... E sofrer tanto que sempre esteja precisando de um padre. – Fora os médicos! O necessário é um Salvador. – O conceito de culpa e punição, incluindo as doutrinas da “graça”, da “salvação”, do “perdão” – mentiras sem qualquer realidade psicológica – foram inventadas para destruir o senso de causalidade do homem: são um ataque contra o conceito de causa e efeito! – E não um ataque com punho, com faca, com honestidade no amor e no ódio! Longe disso, foi inspirado pelo mais covarde, mais velhaco, mais ignóbil dos instintos! Um ataque de padres! Um ataque de parasitas! O vampirismo de sanguessugas pálidas e subterrâneas!... Quando as conseqüências naturais de um ato já não são mais “naturais”, mas vistas como obras de fantasmas da superstição – “Deus”, “espíritos”, “almas” –, como consequências “morais”, recompensas, punições, sinais, lições, então torna-se estéril todo o solo para o conhecimento – e com isso perpetrou-se o maior dos crimes contra a humanidade. – Repito que o pecado, essa autoprofanação par excellence, foi inventado para tornar impossível ao homem a ciência, a cultura, toda a elevação e todo o enobrecimento; o padre reina graças à invenção do pecado. –
– Fui compreendido. No início da Bíblia está toda a psicologia do padre. – O padre conhece apenas um grande perigo: a ciência – o conceito sadio de causa e efeito. Mas a ciência apenas floresce totalmente sob condições favoráveis – um homem precisa de tempo, precisa possuir um intelecto transbordante para poder “conhecer”... “Logo, é preciso tornar o homem infeliz” – essa foi, em todas as épocas, a lógica do padre. – É fácil ver o que, a partir dessa lógica, surgiu no mundo: – o “pecado”... O conceito de culpa e punição, toda a “ordem moral do mundo” foram direcionados contra a ciência – contra a emancipação do homem do jugo sacerdotal... O homem não deve olhar para seu exterior; deve olhar apenas para o interior.
Não deve olhar as coisas com acuidade e prudência, não deve aprender sobre elas; não deve olhar para nada; deve apenas sofrer... E sofrer tanto que sempre esteja precisando de um padre. – Fora os médicos! O necessário é um Salvador. – O conceito de culpa e punição, incluindo as doutrinas da “graça”, da “salvação”, do “perdão” – mentiras sem qualquer realidade psicológica – foram inventadas para destruir o senso de causalidade do homem: são um ataque contra o conceito de causa e efeito! – E não um ataque com punho, com faca, com honestidade no amor e no ódio! Longe disso, foi inspirado pelo mais covarde, mais velhaco, mais ignóbil dos instintos! Um ataque de padres! Um ataque de parasitas! O vampirismo de sanguessugas pálidas e subterrâneas!... Quando as conseqüências naturais de um ato já não são mais “naturais”, mas vistas como obras de fantasmas da superstição – “Deus”, “espíritos”, “almas” –, como consequências “morais”, recompensas, punições, sinais, lições, então torna-se estéril todo o solo para o conhecimento – e com isso perpetrou-se o maior dos crimes contra a humanidade. – Repito que o pecado, essa autoprofanação par excellence, foi inventado para tornar impossível ao homem a ciência, a cultura, toda a elevação e todo o enobrecimento; o padre reina graças à invenção do pecado. –
L
– Não posso, aqui, prescindir de uma psicologia da “fé”, do “crente”, em proveito, como é justo, dos próprios “crentes”. Se hoje há alguns que ainda não sabem quão indecente é ser “crente” – ou quanto isso indica decadência, falta de vontade de viver –, amanhã eles o saberão. Minha voz alcança até os surdos. – Parece-me que entre cristãos, se não compreendi mal, prevalece uma espécie de critério da verdade chamado “prova de força”. A fé beatifica: logo, é verdadeira”. – Poder-se-ia objetar que a beatitude não é demonstrada, mas apenas prometida: sustenta-se na “fé” enquanto condição – será beatificado porque crê... Mas e aquilo que o padre promete ao crente, aquele “além” transcendental – como isso pode ser demonstrado? – A “prova de força”, no fundo, não passa da crença de que os efeitos prometidos pela fé se realizarão. – Numa fórmula: “Creio que a fé beatifica – logo, ela é verdadeira”... Mas não podemos ir além disso. Esse “logo” já é o próprio absurdum transformado em critério da verdade. – Contudo, por cortesia, admitamos que a beatificação através da fé tenha sido demonstrada (– não meramente desejada, não meramente prometida pela suspeita boca de um padre): mesmo assim, poderia a beatitude – dito em forma técnica, o prazer – ser uma prova da verdade? Dista tanto de sê-lo que a influência das sensações de prazer sobre a resposta à questão “Que é a verdade?” praticamente constitui uma objeção à verdade, ou, em todo caso, é suficiente para torná-la altamente suspeita. A prova do “prazer” prova o “prazer” – nada mais; por que se deveria admitir que juízos verdadeiros geram mais prazer que os falsos e que, em conformidade a alguma harmonia preestabelecida, necessariamente trariam consigo sensações de prazer? – A experiência de todas as mentes profundas e disciplinadas ensina o contrário. O homem teve de lutar bravamente por cada migalha da verdade; teve de sacrificar quase tudo aquilo em que se agarra o coração humano, o amor humano, a confiança humana na vida. Para isso é necessário possuir grandeza de alma: o serviço da verdade é o mais duro dos serviços. – O que significa, então, a integridade intelectual?
– Não posso, aqui, prescindir de uma psicologia da “fé”, do “crente”, em proveito, como é justo, dos próprios “crentes”. Se hoje há alguns que ainda não sabem quão indecente é ser “crente” – ou quanto isso indica decadência, falta de vontade de viver –, amanhã eles o saberão. Minha voz alcança até os surdos. – Parece-me que entre cristãos, se não compreendi mal, prevalece uma espécie de critério da verdade chamado “prova de força”. A fé beatifica: logo, é verdadeira”. – Poder-se-ia objetar que a beatitude não é demonstrada, mas apenas prometida: sustenta-se na “fé” enquanto condição – será beatificado porque crê... Mas e aquilo que o padre promete ao crente, aquele “além” transcendental – como isso pode ser demonstrado? – A “prova de força”, no fundo, não passa da crença de que os efeitos prometidos pela fé se realizarão. – Numa fórmula: “Creio que a fé beatifica – logo, ela é verdadeira”... Mas não podemos ir além disso. Esse “logo” já é o próprio absurdum transformado em critério da verdade. – Contudo, por cortesia, admitamos que a beatificação através da fé tenha sido demonstrada (– não meramente desejada, não meramente prometida pela suspeita boca de um padre): mesmo assim, poderia a beatitude – dito em forma técnica, o prazer – ser uma prova da verdade? Dista tanto de sê-lo que a influência das sensações de prazer sobre a resposta à questão “Que é a verdade?” praticamente constitui uma objeção à verdade, ou, em todo caso, é suficiente para torná-la altamente suspeita. A prova do “prazer” prova o “prazer” – nada mais; por que se deveria admitir que juízos verdadeiros geram mais prazer que os falsos e que, em conformidade a alguma harmonia preestabelecida, necessariamente trariam consigo sensações de prazer? – A experiência de todas as mentes profundas e disciplinadas ensina o contrário. O homem teve de lutar bravamente por cada migalha da verdade; teve de sacrificar quase tudo aquilo em que se agarra o coração humano, o amor humano, a confiança humana na vida. Para isso é necessário possuir grandeza de alma: o serviço da verdade é o mais duro dos serviços. – O que significa, então, a integridade intelectual?
Significa ser severo com seu próprio coração, desprezar os “belos sentimentos” e fazer de cada Sim e de cada Não uma questão de consciência! – A fé beatifica: logo, ela mente...
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