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sábado, 22 de setembro de 2012

O Anticristo - parte 12


Todo tipo de fé é em si mesma a expressão de uma despersonalização, de um alheamento de si... Após se ponderar sobre quão necessários à maioria são os regulamentos restringentes; sobre quão necessária é a opressão, ou, em um sentido mais elevado, a escravidão, para possibilitar o bem-estar ao homem de vontade fraca, e especialmente à mulher, então finalmente se compreende o significado da convicção e da “fé”. Para o homem de convicção a fé representa sua espinha dorsal. Deixar de ver muitas coisas, não possuir imparcialidade alguma, ser sempre de um partido, estimar todos os valores com uma ótica severa e infalível – essas são as condições necessárias à existência desse tipo de homem. Mas isso faz deles antagonistas do homem veraz – da verdade... O crente não é livre pra responder à questão do “verdadeiro” e do “falso”; segundo os ditames de sua consciência: a integridade, neste ponto, seria sua própria ruína. A limitação patológica de sua ótica faz do homem convicto um fanático – Savonarola, Lutero, Rousseau, Robespierre, Saint-Simon – o tipo desses encontra-se em oposição ao espírito forte, emancipado. Mas as grandiosas atitudes desses intelectos doentes, desses epiléticos das ideias, exercem influência sobre as grandes massas – os fanáticos são pitorescos, e a humanidade prefere observar poses a ouvir razões...
LV
– Um passo adiante na psicologia da convicção, da “fé”. Agora já faz bastante tempo desde que propus a questão de talvez as convicções serem inimigas mais perigosas à verdade que as mentiras (“Humano, Demasiado Humano”, Aforismo 483(1)). Desta vez pretendo colocar a questão definitiva: existe, de modo geral, alguma diferença entre uma mentira e uma convicção? – Todo o mundo acredita que sim; mas no que esse mundo não acredita! – Toda convicção tem sua história, suas formas primitivas, seus estágios de tentativa e erro: somente se transforma em convicção após não ter sido, por um longo tempo, uma convicção, e, depois disso, por um tempo ainda mais longo, sofrivelmente uma convicção. Não poderia também haver a falsidade nessas formas embrionárias de convicção? – Às vezes apenas é necessária uma
mudança de pessoas: o que era uma mentira para o pai torna-se uma convicção para o filho. – Chamo de mentira o recusar-se a ver uma coisa que se vê, recusar-se a ver algo como de fato é: se a mentira foi proferida perante testemunhas ou não, isso não possui relevância. A espécie mais comum de mentira é aquela com a qual nos enganamos a nós mesmos: mentir aos outros é algo relativamente raro. – Agora, este não querer ver o que se vê, este não querer ver como de fato é, praticamente constitui o primeiro requisito para todos que pertencem a alguma espécie de partido: o homem de partido inevitavelmente torna-se um mentiroso. Por exemplo, os historiadores alemães estão convictos de que Roma era sinônimo de despotismo e que os povos germânicos trouxeram o espírito da liberdade ao mundo: qual a diferença entre essa convicção e uma mentira? Pode alguém ainda se admirar de que todos os partidos, incluindo os historiadores alemães, instintivamente se sirvam de frases morais – que a moral quase deva sua sobrevivência ao fato de toda espécie de homem de partido necessitar dela a cada instante? – “Esta é nossa convicção: proclamamo-la perante todo o mundo; vivemos e morremos por ela – que sejam respeitados todos aqueles que possuem convicções!” – De fato, ouvi isso da boca dos antissemitas. Pelo contrário, senhores! Mentir por princípio certamente não torna um antissemita mais respeitável... Os padres, que possuem mais sutileza em tais questões, e que compreendem bem a objeção existente contra a ideia de convicção, ou seja, de uma mentira que se transforma em princípio porque serve a um propósito, tomaram emprestado dos judeus o artifício de introduzir nesses casos os conceitos “Deus”, “vontade de Deus” e “revelação Divina”. Kant, com seu imperativo categórico, também estava no mesmo caminho: isso era sua razão prática(2). Há questões relativas à verdade e à inverdade que o homem não pode decidir; todas as questões capitais, todos problemas capitais de valoração estão acima da razão humana... Conhecer os limites da razão – somente isso é filosofia genuína. Que finalidade teve a revelação divina ao homem? Deus faria algo supérfluo? O homem não pode descobrir por si mesmo o que é bom e o é ruim, então Deus lhe ensinou sua vontade... Moral: o padre não mente – não existe a questão da “verdade” ou da “inverdade” entre as coisas de que falam os padres. É impossível mentir a respeito de tais coisas, pois para mentir primeiramente seria necessário saber o que é verdade. Mas isso está além do que o homem pode saber; logo, o padre é simplesmente um porta-voz de Deus. – Tal silogismo de padre não é de modo algum somente judaico e cristão; o direito à mentira e à astuciosa evasiva da “revelação” pertence ao tipo do padre em geral – tanto aos padres da decadência quanto aos padres dos tempos pagãos (– pagãos são todos aqueles que dizem sim à vida, e para os quais “Deus” é uma palavra que significa um sim a todas as coisas). – A “lei”, a “vontade de Deus”, o “livro sagrado”, a “inspiração” – são todas palavras que designam as condições sob as quais o padre adquire e mantém o poder – esses conceitos se encontram no fundo de todas organizações sacerdotais, de todos governos eclesiásticos ou filosófico eclesiásticos. A “santa mentira” – comum a Confúcio, ao código de Manu, a Maomé e à Igreja cristã – não falta em Platão. “A verdade está aqui”: essas palavras significam, onde quer que sejam pronunciadas, o padre mente...
1 – “Inimigos da verdade. – Convicções são inimigos da verdade mais perigosos que as mentiras.”
2 – Uma referência, é claro, à “Kritik der praktischen Vernunft” de Kant (Crítica da Razão Prática).(H. L. Mencken)
LVI
– Em última análise, chega-se a isto: qual a finalidade da mentira? O fato de que, no cristianismo, os fins “sagrados” não são visíveis é minha objeção aos seus meios. Só existem maus fins: o envenenamento, a calúnia, a negação da vida, o desprezo pelo corpo, a degradação e envilecimento do homem através do conceito de pecado – logo, seus meios também são maus. – Tenho o sentimento oposto quando leio o código de Manu, uma obra incomparavelmente mais intelectual e superior; seria um pecado contra a inteligência simplesmente nomeá-lo juntamente com a Bíblia. É fácil ver o porquê: há uma filosofia genuína por detrás dele, nele próprio, e não apenas uma mixórdia fétida de rabinismo judaico e superstição – oferece, mesmo aos psicólogos mais delicados, algo saboroso. E não nos esqueçamos do mais importante, ele difere fundamentalmente de toda espécie de Bíblia: através dele os nobres, os filósofos e guerreiros preservam o domínio sobre a maioria; está cheio de valores nobres, denota um sentimento de perfeição, de aceitação da vida, um ar triunfante em relação a si e à vida – o sol brilha sobre o livro todo. – Todas as coisas sobre as quais o cristianismo descarrega sua inexaurível vulgaridade – por exemplo, a procriação, as mulheres e o casamento – nele são tratadas seriamente, com respeito, amor e confiança. Como alguém pode colocar nas mãos de crianças e mulheres um livro contentor de palavras tão abjetas: “Para evitar a impudicícia, que cada homem tenha sua própria esposa e que cada mulher tenha seu próprio marido; ...pois é melhor casar-se que queimar-se(1)”? E será possível ser um cristão enquanto a origem do homem estiver cristianizada, isto é, maculada pela doutrina da immaculata conceptio?... Não conheço qualquer outro livro em que sejam ditas tantas coisas boas e ternas sobre a mulher quanto no código de Manu; aqueles velhos e santos possuíam um modo tão amável de ser com as mulheres que talvez seja impossível superá-los. “A boca de uma mulher”, diz um trecho, “o seio de uma donzela, a oração de uma criança e a fumaça de um sacrifício são sempre puros”. Noutro trecho: “Não há nada mais puro que a luz do sol, a sombra de uma vaca, o ar, a água, o fogo e a respiração de uma donzela”. Finalmente, esta última passagem – que talvez também seja uma mentira sagrada –: “todos orifícios do corpo acima do umbigo são puros, todos os abaixo são impuros. Apenas na donzela o corpo todo é puro”.
1 – I Coríntios 7:2 e 7:9.

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