XXXII
Repito que me oponho a todos os esforços para introduzir o fanatismo na figura do Salvador: a própria palavra imperieux(1), usada por Renan, sozinha é suficiente para anular o tipo. A “boa-nova” nos diz simplesmente que não existem mais contradições; o reino de Deus pertence às crianças; a fé anunciada aqui não é mais conquistada por lutas – está ao alcance das mãos, existiu desde o princípio, é um tipo de infantilidade que se refugiou no espiritual. Tal puberdade retardada e incompleta dos organismos é familiar aos fisiologistas como sintoma da degeneração. A fé desse tipo não é furiosa, não denuncia, não se defende: não empunha “espada” – não entende como poderia um dia colocar homem contra homem. Não se manifesta através de milagres, recompensas, promessas ou “escrituras”: é, do principio ao fim, seu próprio milagre, sua própria recompensa, sua própria promessa, seu próprio “reino de Deus”. Essa fé não se formula – simplesmente vive, e assim guarda-se contra fórmulas. Com certeza, a casualidade do
ambiente, da formação educacional dá proeminência aos conceitos de certa espécie: no cristianismo primitivo encontramos apenas noções de caráter judaico-semítico (– a de comer e beber em comunhão pertence a esta categoria – uma ideia que, como tudo que é judaico, foi severamente fustigada pela Igreja). Cuidemo-nos para não ver nisso tudo mais que uma linguagem simbólica, uma semântica(2), uma oportunidade para falar em parábolas. A teoria de que nenhuma palavra deve ser tomada ao pé da letra era um pressuposto para que este antirrealista pudesse discursar. Colocado entre hindus teria usado os conceitos de Shanhya(3), e entre chineses os de Lao-Tsé(4) – e em ambos os casos isso não faria qualquer diferença a ele. – Tomando uma pequena liberdade no uso das palavras, alguém poderia de fato chamar Jesus de “espírito livre(5)” – não lhe importa o que está estabelecido: a palavra mata(6), tudo aquilo que é estabelecido mata. A noção de “vida” como uma experiência, como apenas ele a concebe, a seu ver encontra-se em oposição a todo tipo de palavra, fórmula, lei, crença e dogma. Fala apenas de coisas interiores: “vida”, ou “verdade”, ou “luz”, são suas palavras para o mundo interior – a seu ver todo o resto, toda a realidade, toda natureza, mesmo a linguagem, tem valor apenas como um sinal, uma alegoria. – Aqui é de suprema importância não se deixar conduzir ao erro pelas tentações existentes nos preconceitos cristãos, ou melhor, eclesiásticos: este simbolismo par excellence encontra-se alheio a toda religião, todas noções de adoração, toda história, toda ciência natural, toda experiência mundana, todo conhecimento, toda política, toda psicologia, todos livros, toda arte – sua “sabedoria” é precisamente a ignorância pura(7) em relação a todas essas coisas. Nunca ouviu falar de cultura; não a combate – nem mesmo a nega... O mesmo pode ser dito do Estado, de toda a ordem social burguesa, do trabalho, da guerra – não tem motivos para negar o “mundo”, nem sequer tem conhecimento do conceito eclesiástico de “mundo”. .. Precisamente a negação lhe era impossível. – De modo idêntico carece de capacidade argumentativa, não acredita que um artigo de fé, que uma “verdade” possa ser estabelecida através de provas (– suas provas são “iluminações” interiores, sensações subjetivas de felicidade e autoafirmação, simples “provas de força” –). Tal doutrina não pode contradizer: não sabe que outras doutrinas existem ou podem existir, é inteiramente incapaz de imaginar um juízo oposto... E se, porventura, o encontra, lamenta por tal “cegueira” com uma sincera compaixão – pois somente ela vê a “luz” – no entanto não fará quaisquer objeções...
1 – Imperioso.
Repito que me oponho a todos os esforços para introduzir o fanatismo na figura do Salvador: a própria palavra imperieux(1), usada por Renan, sozinha é suficiente para anular o tipo. A “boa-nova” nos diz simplesmente que não existem mais contradições; o reino de Deus pertence às crianças; a fé anunciada aqui não é mais conquistada por lutas – está ao alcance das mãos, existiu desde o princípio, é um tipo de infantilidade que se refugiou no espiritual. Tal puberdade retardada e incompleta dos organismos é familiar aos fisiologistas como sintoma da degeneração. A fé desse tipo não é furiosa, não denuncia, não se defende: não empunha “espada” – não entende como poderia um dia colocar homem contra homem. Não se manifesta através de milagres, recompensas, promessas ou “escrituras”: é, do principio ao fim, seu próprio milagre, sua própria recompensa, sua própria promessa, seu próprio “reino de Deus”. Essa fé não se formula – simplesmente vive, e assim guarda-se contra fórmulas. Com certeza, a casualidade do
ambiente, da formação educacional dá proeminência aos conceitos de certa espécie: no cristianismo primitivo encontramos apenas noções de caráter judaico-semítico (– a de comer e beber em comunhão pertence a esta categoria – uma ideia que, como tudo que é judaico, foi severamente fustigada pela Igreja). Cuidemo-nos para não ver nisso tudo mais que uma linguagem simbólica, uma semântica(2), uma oportunidade para falar em parábolas. A teoria de que nenhuma palavra deve ser tomada ao pé da letra era um pressuposto para que este antirrealista pudesse discursar. Colocado entre hindus teria usado os conceitos de Shanhya(3), e entre chineses os de Lao-Tsé(4) – e em ambos os casos isso não faria qualquer diferença a ele. – Tomando uma pequena liberdade no uso das palavras, alguém poderia de fato chamar Jesus de “espírito livre(5)” – não lhe importa o que está estabelecido: a palavra mata(6), tudo aquilo que é estabelecido mata. A noção de “vida” como uma experiência, como apenas ele a concebe, a seu ver encontra-se em oposição a todo tipo de palavra, fórmula, lei, crença e dogma. Fala apenas de coisas interiores: “vida”, ou “verdade”, ou “luz”, são suas palavras para o mundo interior – a seu ver todo o resto, toda a realidade, toda natureza, mesmo a linguagem, tem valor apenas como um sinal, uma alegoria. – Aqui é de suprema importância não se deixar conduzir ao erro pelas tentações existentes nos preconceitos cristãos, ou melhor, eclesiásticos: este simbolismo par excellence encontra-se alheio a toda religião, todas noções de adoração, toda história, toda ciência natural, toda experiência mundana, todo conhecimento, toda política, toda psicologia, todos livros, toda arte – sua “sabedoria” é precisamente a ignorância pura(7) em relação a todas essas coisas. Nunca ouviu falar de cultura; não a combate – nem mesmo a nega... O mesmo pode ser dito do Estado, de toda a ordem social burguesa, do trabalho, da guerra – não tem motivos para negar o “mundo”, nem sequer tem conhecimento do conceito eclesiástico de “mundo”. .. Precisamente a negação lhe era impossível. – De modo idêntico carece de capacidade argumentativa, não acredita que um artigo de fé, que uma “verdade” possa ser estabelecida através de provas (– suas provas são “iluminações” interiores, sensações subjetivas de felicidade e autoafirmação, simples “provas de força” –). Tal doutrina não pode contradizer: não sabe que outras doutrinas existem ou podem existir, é inteiramente incapaz de imaginar um juízo oposto... E se, porventura, o encontra, lamenta por tal “cegueira” com uma sincera compaixão – pois somente ela vê a “luz” – no entanto não fará quaisquer objeções...
1 – Imperioso.
2 – A palavra semiótica está no texto, mas é provável que semântica seja a palavra que Nietzsche tinha em mente. (H. L. Mencken)
3 – Um dos seis grandes sistemas da filosofia hindu. (H. L. Mencken)
3 – Um dos seis grandes sistemas da filosofia hindu. (H. L. Mencken)
4 – Considerado o fundador do taoísmo. (H. L. Mencken)
5 – O nome que Nietzsche da aos que aceitam sua
filosofia. (H. L. Mencken)
6 – Isto é, a rigorosa palavra da lei – o objetivo mais importante nas primeiras pregações de Jesus. (H. L. Mencken)
7 – Referência à “ignorância pura” (reine Thorheit) do Parsifal de Richard Wagner.(H. L. Mencken)
XXXIII
Em toda a psicologia dos Evangelhos os conceitos de culpa e punição estão ausentes, e o mesmo vale para o de recompensa. O “pecado”, que significa tudo aquilo que distancia o homem de Deus, é abolido – essa é precisamente a “boa-nova”. A felicidade eterna não está meramente prometida, nem vinculada a condições: é concebida como a única realidade – todo o restante não são mais que sinais úteis para falar dela.
Os resultados de tal ponto de vista projetam-se em um novo estilo de vida, um estilo de vida especialmente evangélico. Não é a “fé” que o distingue do cristão; a distinção se estabelece através da maneira de agir; ele age diferentemente. Não oferece resistência, nem em palavras, nem em seu coração, àqueles que lhe são opositores. Não vê diferença entre estrangeiros e conterrâneos, judeus e pagãos (“próximo”, é claro, significa correligionário, judeu). Não se irrita com ninguém, não despreza ninguém. Não apela às cortes de justiça nem se submete às suas decisões (“não prestar juramento”(1)). Nunca, quaisquer sejam as circunstâncias, se divorcia de sua esposa, mesmo que possua provas de sua infidelidade. – No fundo, tudo isso é um princípio; tudo surge de um instinto. –
A vida do salvador foi simplesmente professar essa prática – e também em sua morte... Não precisava mais de qualquer formula ou ritual em suas relações com Deus – nem sequer da oração. Rejeitou toda a doutrina judaica do arrependimento e recompensa; sabia que apenas através da vivência, de um estilo de vida alguém poderia se sentir “divino”, “bem-aventurado”, “evangélico”, “filho de Deus”. Não é o “arrependimento”, não são a “oração e o perdão” o caminho para Deus: apenas o modo de viver evangélico conduz a Deus – isso é justamente o próprio o “Deus”! – O que os Evangelhos aboliram foi o judaísmo presente nas ideias de “pecado”, “remissão dos pecados”, “salvação através da fé” – toda a dogmática eclesiástica dos judeus foi negada pela “boa-nova”.
O profundo instinto que leva o cristão a viver de modo que se sinta “no céu” e “imortal”, apesar das muitas razões para sentir que não está “no céu”: essa é a única realidade psicológica na “salvação”. – Uma nova vida, não uma nova fé.
1 – Mateus 5:34.
6 – Isto é, a rigorosa palavra da lei – o objetivo mais importante nas primeiras pregações de Jesus. (H. L. Mencken)
7 – Referência à “ignorância pura” (reine Thorheit) do Parsifal de Richard Wagner.(H. L. Mencken)
XXXIII
Em toda a psicologia dos Evangelhos os conceitos de culpa e punição estão ausentes, e o mesmo vale para o de recompensa. O “pecado”, que significa tudo aquilo que distancia o homem de Deus, é abolido – essa é precisamente a “boa-nova”. A felicidade eterna não está meramente prometida, nem vinculada a condições: é concebida como a única realidade – todo o restante não são mais que sinais úteis para falar dela.
Os resultados de tal ponto de vista projetam-se em um novo estilo de vida, um estilo de vida especialmente evangélico. Não é a “fé” que o distingue do cristão; a distinção se estabelece através da maneira de agir; ele age diferentemente. Não oferece resistência, nem em palavras, nem em seu coração, àqueles que lhe são opositores. Não vê diferença entre estrangeiros e conterrâneos, judeus e pagãos (“próximo”, é claro, significa correligionário, judeu). Não se irrita com ninguém, não despreza ninguém. Não apela às cortes de justiça nem se submete às suas decisões (“não prestar juramento”(1)). Nunca, quaisquer sejam as circunstâncias, se divorcia de sua esposa, mesmo que possua provas de sua infidelidade. – No fundo, tudo isso é um princípio; tudo surge de um instinto. –
A vida do salvador foi simplesmente professar essa prática – e também em sua morte... Não precisava mais de qualquer formula ou ritual em suas relações com Deus – nem sequer da oração. Rejeitou toda a doutrina judaica do arrependimento e recompensa; sabia que apenas através da vivência, de um estilo de vida alguém poderia se sentir “divino”, “bem-aventurado”, “evangélico”, “filho de Deus”. Não é o “arrependimento”, não são a “oração e o perdão” o caminho para Deus: apenas o modo de viver evangélico conduz a Deus – isso é justamente o próprio o “Deus”! – O que os Evangelhos aboliram foi o judaísmo presente nas ideias de “pecado”, “remissão dos pecados”, “salvação através da fé” – toda a dogmática eclesiástica dos judeus foi negada pela “boa-nova”.
O profundo instinto que leva o cristão a viver de modo que se sinta “no céu” e “imortal”, apesar das muitas razões para sentir que não está “no céu”: essa é a única realidade psicológica na “salvação”. – Uma nova vida, não uma nova fé.
1 – Mateus 5:34.
XXXIV
Se compreendo alguma coisa sobre esse grande simbolista, é isto: que considerava apenas realidades subjetivas como reais, como “verdades” – que viu todo o resto, todo o natural, temporal, espacial e histórico apenas como símbolos, como material para parábolas. O conceito de “Filho de Deus” não designa uma pessoa concreta na história, um indivíduo isolado e definido, mas um fato “eterno”, um símbolo psicológico desvinculado da noção de tempo. O mesmo é válido, no sentido mais elevado, para o Deus desse típico simbolista, para o “reino de Deus” e para a “filiação divina”. Nada poderia ser mais acristão que as cruas noções eclesiásticas de um Deus como pessoa, de um “reino de Deus” vindouro, de um “reino dos céus” no além e de um “filho de Deus” como segunda pessoa da Trindade. Isso tudo – perdoem-me a expressão – é como soco no olho (e que olho!) do Evangelho: um desrespeito aos símbolos elevado a um cinismo histórico-mundial... Todavia é suficientemente óbvio o significado dos símbolos “Pai” e “Filho” – não para todos, é claro –: a palavra “Filho” expressa a entrada em um sentimento de transformação de todas as coisas (beatitude); “Pai” expressa esse próprio sentimento – a sensação da eternidade e perfeição. – Envergonho-me de lembrar o que a Igreja fez com esse simbolismo: ela não colocou uma história de Anfitrião(1) no limiar da “fé” cristã? E um dogma da “imaculada conceição” ainda por cima?... – Com isso conseguiu apenas macular a concepção...
O “reino dos céus” é um estado de espírito – não algo que virá “além do mundo” ou “após a morte”. Toda a ideia de morte natural está ausente nos Evangelhos: a morte não é uma ponte, não é uma passagem; está ausente porque pertence a um mundo bastante diferente, um mundo apenas aparente, apenas útil enquanto símbolo. A “hora da morte” não é uma ideia cristã – “horas”, tempo, a vida física e suas crises são inexistentes para o mestre da “boa-nova”...
Se compreendo alguma coisa sobre esse grande simbolista, é isto: que considerava apenas realidades subjetivas como reais, como “verdades” – que viu todo o resto, todo o natural, temporal, espacial e histórico apenas como símbolos, como material para parábolas. O conceito de “Filho de Deus” não designa uma pessoa concreta na história, um indivíduo isolado e definido, mas um fato “eterno”, um símbolo psicológico desvinculado da noção de tempo. O mesmo é válido, no sentido mais elevado, para o Deus desse típico simbolista, para o “reino de Deus” e para a “filiação divina”. Nada poderia ser mais acristão que as cruas noções eclesiásticas de um Deus como pessoa, de um “reino de Deus” vindouro, de um “reino dos céus” no além e de um “filho de Deus” como segunda pessoa da Trindade. Isso tudo – perdoem-me a expressão – é como soco no olho (e que olho!) do Evangelho: um desrespeito aos símbolos elevado a um cinismo histórico-mundial... Todavia é suficientemente óbvio o significado dos símbolos “Pai” e “Filho” – não para todos, é claro –: a palavra “Filho” expressa a entrada em um sentimento de transformação de todas as coisas (beatitude); “Pai” expressa esse próprio sentimento – a sensação da eternidade e perfeição. – Envergonho-me de lembrar o que a Igreja fez com esse simbolismo: ela não colocou uma história de Anfitrião(1) no limiar da “fé” cristã? E um dogma da “imaculada conceição” ainda por cima?... – Com isso conseguiu apenas macular a concepção...
O “reino dos céus” é um estado de espírito – não algo que virá “além do mundo” ou “após a morte”. Toda a ideia de morte natural está ausente nos Evangelhos: a morte não é uma ponte, não é uma passagem; está ausente porque pertence a um mundo bastante diferente, um mundo apenas aparente, apenas útil enquanto símbolo. A “hora da morte” não é uma ideia cristã – “horas”, tempo, a vida física e suas crises são inexistentes para o mestre da “boa-nova”...
O “reino de Deus” não é uma coisa pela qual os homens aguardam: não teve um ontem nem terá um amanhã, não virá em um “milênio” – é uma experiência do coração, está em toda parte e não está em parte alguma...
1 – Mitologia grega. Anfitrião era o filho de Alceu. Alcmena era sua esposa. Durante sua ausência ela foi visitada por Zeus e Heracles. (H. L. Mencken)
XXXV
O “portador da boa-nova” morreu assim como viveu e ensinou – não para “salvar a humanidade”, mas para demonstrar-lhe como viver. Seu legado ao homem foi um estilo de vida: sua atitude ante os juízes, ante os oficiais, ante seus acusadores – sua atitude perante a cruz. Não resiste; não defende seus direitos; não faz qualquer esforço para evitar a maior das penalidades – ainda mais, a convida... E roga, sofre e ama com aqueles, por aqueles que o maltratam. Não se defender, não se encolerizar, não culpar... Mas igualmente não resistir ao mal – amá-lo...
XXXVI
– Nós, espíritos livres – nós somos os primeiros a possuir os pré-requisitos para entender o que, por dezenove séculos, permaneceu incompreendido – temos aquele instinto e paixão pela integridade que declara uma guerra muito mais ferrenha contra a “sagrada mentira” que contra todas as outras mentiras... A humanidade estava indizivelmente distante de nossa benevolente e cautelosa neutralidade, de nossa disciplina de espírito que sozinha torna possível solucionar coisas tão estranhas e sutis: o que os homens sempre buscaram, com descarado egoísmo, foi sua própria vantagem; criaram a Igreja a partir da negação dos Evangelhos...
Todos que procurassem por sinais de uma divindade irônica que maneja os cordéis por detrás do grande drama da existência não encontrariam pequena evidência neste estupendo ponto de interrogação chamado cristianismo. A humanidade ajoelha-se exatamente perante a antítese do que era a origem, o significado e a lei dos Evangelhos – santificaram no conceito de “Igreja” justamente o que o “portador da boa-nova” considerava abaixo si, atrás de si – seria vão procurar por um melhor exemplo de ironia histórico-mundial –
XXXVII
– Nossa época orgulha-se de seu senso histórico: como, então, se permitiu acreditar que a grosseira fábula do fazedor de milagres e Salvador constitui as origens do cristianismo – e que tudo nele de espiritual e simbólico surgiu apenas posteriormente? Muito pelo contrário, toda a história do cristianismo – da morte na cruz em diante – é a história de uma incompreensão progressivamente grosseira de um
simbolismo original. Com toda a difusão do cristianismo entre massas mais vastas e incultas, até mesmo incapazes de compreender os princípios dos quais nasceu, surgiu a necessidade de torná-lo mais vulgar e bárbaro – absorveu os ensinamentos e rituais de todos cultos subterrâneos do imperium Romanum e as absurdidades engendradas por todo tipo de raciocínio doentio. Era o destino do cristianismo que sua fé se tornasse tão doentia, baixa e vulgar quanto as necessidades doentias, baixas e vulgares que tinha de administrar. O barbarismo mórbido finalmente ascende ao poder com a Igreja – a Igreja, esta encarnação da hostilidade mortal contra toda a honestidade, toda grandeza de alma, toda disciplina do espírito, toda humanidade espontânea e bondosa. – Valores cristãos – valores nobres: apenas nós, espíritos livres, restabelecemos a maior das antíteses em matéria de valores!...
– Nós, espíritos livres – nós somos os primeiros a possuir os pré-requisitos para entender o que, por dezenove séculos, permaneceu incompreendido – temos aquele instinto e paixão pela integridade que declara uma guerra muito mais ferrenha contra a “sagrada mentira” que contra todas as outras mentiras... A humanidade estava indizivelmente distante de nossa benevolente e cautelosa neutralidade, de nossa disciplina de espírito que sozinha torna possível solucionar coisas tão estranhas e sutis: o que os homens sempre buscaram, com descarado egoísmo, foi sua própria vantagem; criaram a Igreja a partir da negação dos Evangelhos...
Todos que procurassem por sinais de uma divindade irônica que maneja os cordéis por detrás do grande drama da existência não encontrariam pequena evidência neste estupendo ponto de interrogação chamado cristianismo. A humanidade ajoelha-se exatamente perante a antítese do que era a origem, o significado e a lei dos Evangelhos – santificaram no conceito de “Igreja” justamente o que o “portador da boa-nova” considerava abaixo si, atrás de si – seria vão procurar por um melhor exemplo de ironia histórico-mundial –
XXXVII
– Nossa época orgulha-se de seu senso histórico: como, então, se permitiu acreditar que a grosseira fábula do fazedor de milagres e Salvador constitui as origens do cristianismo – e que tudo nele de espiritual e simbólico surgiu apenas posteriormente? Muito pelo contrário, toda a história do cristianismo – da morte na cruz em diante – é a história de uma incompreensão progressivamente grosseira de um
simbolismo original. Com toda a difusão do cristianismo entre massas mais vastas e incultas, até mesmo incapazes de compreender os princípios dos quais nasceu, surgiu a necessidade de torná-lo mais vulgar e bárbaro – absorveu os ensinamentos e rituais de todos cultos subterrâneos do imperium Romanum e as absurdidades engendradas por todo tipo de raciocínio doentio. Era o destino do cristianismo que sua fé se tornasse tão doentia, baixa e vulgar quanto as necessidades doentias, baixas e vulgares que tinha de administrar. O barbarismo mórbido finalmente ascende ao poder com a Igreja – a Igreja, esta encarnação da hostilidade mortal contra toda a honestidade, toda grandeza de alma, toda disciplina do espírito, toda humanidade espontânea e bondosa. – Valores cristãos – valores nobres: apenas nós, espíritos livres, restabelecemos a maior das antíteses em matéria de valores!...
XXXVIII
– Não posso, neste momento, evitar um suspiro. Há dias em que sou visitado por um sentimento mais negro que a mais negra melancolia – o desprezo pelos homens. Que não haja qualquer dúvida sobre o que desprezo, sobre quem desprezo: é o homem de hoje, do qual desgraçadamente sou contemporâneo. O homem de hoje – seu hálito podre me asfixia!... Em relação ao passado, como todos estudiosos, tenho muita tolerância, ou seja, um generoso autocontrole: com uma melancólica precaução atravesso milênios inteiros de mundo-manicômio, chamem isso de “cristianismo”, “fé cristã” ou “Igreja cristã”, como desejaram – tomo o cuidado de não responsabilizar a humanidade por sua demência. Mas um sentimento irrefreável irrompe no momento em que entro nos tempos modernos, nos nossos tempos. Nossa época é mais esclarecida... O que era antigamente apenas doentio agora se tornou indecente – é uma indecência ser cristão hoje em dia. E aqui começa minha repugnância. – Olho à minha volta: não resta sequer uma palavra do que outrora se chamava “verdade”; já não suportamos mais que um padre pronuncie tal palavra. Mesmo um homem com as mais modestas pretensões à integridade precisa saber que um teólogo, um padre, um papa de hoje não apenas se engana quando fala, mas na verdade mente – já não se isenta de sua culpa através da “inocência” ou da “ignorância”. O padre sabe, como todos sabem, que não há qualquer “Deus”, nem “pecado”, nem “salvador” – que o “livre arbítrio” e a “ordem moral do mundo” são mentiras –: a reflexão séria, a profunda autossuperação espiritual impedem que quaisquer homens finjam não saber disso... Todas as ideias da Igreja agora estão reconhecidas pelo que são – as piores falsificações existentes, inventadas para depreciar a natureza e todos os valores naturais; o padre é visto como realmente é – como a mais perigosa forma de parasita, como a peçonhenta aranha da criação... – Nós sabemos, nossa consciência agora sabe – exatamente qual era o verdadeiro valor de todas essas sinistras invenções do padre e da Igreja e para que fins serviram, com sua desvalorização da humanidade ao nível da autopoluição, cujo aspecto inspira náusea – os conceitos de “outro mundo”, de “juízo final”, de “imortalidade da alma”, da própria “alma”: não passam de instrumentos de tortura, sistemas de crueldade através dos quais o padre torna-se mestre e mantém-se mestre... Todos sabem disso, mas, mesmo assim, nada mudou. Para onde foi nosso último resquício decência, de autorrespeito se nossos homens de Estado, no geral uma classe de homens não convencionais e profundamente anticristãos em seus atos, agora se denominam cristãos e vão à mesa de comunhão?... Um príncipe à frente de seus regimentos, magnificente enquanto expressão do egoísmo e arrogância de seu povo – e mesmo assim declarando, sem qualquer vergonha, que é um cristão!...(1) Quem, então, o cristianismo nega? O que ele chama “o mundo”? Ser soldado, ser juiz, ser patriota; defender-se a si mesmo; zelar pela sua honra; desejar sua própria vantagem; ser orgulhoso... Toda prática trivial, todo instinto, toda valoração convertida em ato agora é anticristã: que monstro de falsidade o homem moderno precisa ser para se denominar um cristão sem envergonhar-se!
1 – Nietzsche refere-se ao Kaiser Guilherme II, que subira ao trono da Alemanha em 15 de abril de 1888, cinco meses antes da redação de O Anticristo. (Pietro Nasseti)
– Não posso, neste momento, evitar um suspiro. Há dias em que sou visitado por um sentimento mais negro que a mais negra melancolia – o desprezo pelos homens. Que não haja qualquer dúvida sobre o que desprezo, sobre quem desprezo: é o homem de hoje, do qual desgraçadamente sou contemporâneo. O homem de hoje – seu hálito podre me asfixia!... Em relação ao passado, como todos estudiosos, tenho muita tolerância, ou seja, um generoso autocontrole: com uma melancólica precaução atravesso milênios inteiros de mundo-manicômio, chamem isso de “cristianismo”, “fé cristã” ou “Igreja cristã”, como desejaram – tomo o cuidado de não responsabilizar a humanidade por sua demência. Mas um sentimento irrefreável irrompe no momento em que entro nos tempos modernos, nos nossos tempos. Nossa época é mais esclarecida... O que era antigamente apenas doentio agora se tornou indecente – é uma indecência ser cristão hoje em dia. E aqui começa minha repugnância. – Olho à minha volta: não resta sequer uma palavra do que outrora se chamava “verdade”; já não suportamos mais que um padre pronuncie tal palavra. Mesmo um homem com as mais modestas pretensões à integridade precisa saber que um teólogo, um padre, um papa de hoje não apenas se engana quando fala, mas na verdade mente – já não se isenta de sua culpa através da “inocência” ou da “ignorância”. O padre sabe, como todos sabem, que não há qualquer “Deus”, nem “pecado”, nem “salvador” – que o “livre arbítrio” e a “ordem moral do mundo” são mentiras –: a reflexão séria, a profunda autossuperação espiritual impedem que quaisquer homens finjam não saber disso... Todas as ideias da Igreja agora estão reconhecidas pelo que são – as piores falsificações existentes, inventadas para depreciar a natureza e todos os valores naturais; o padre é visto como realmente é – como a mais perigosa forma de parasita, como a peçonhenta aranha da criação... – Nós sabemos, nossa consciência agora sabe – exatamente qual era o verdadeiro valor de todas essas sinistras invenções do padre e da Igreja e para que fins serviram, com sua desvalorização da humanidade ao nível da autopoluição, cujo aspecto inspira náusea – os conceitos de “outro mundo”, de “juízo final”, de “imortalidade da alma”, da própria “alma”: não passam de instrumentos de tortura, sistemas de crueldade através dos quais o padre torna-se mestre e mantém-se mestre... Todos sabem disso, mas, mesmo assim, nada mudou. Para onde foi nosso último resquício decência, de autorrespeito se nossos homens de Estado, no geral uma classe de homens não convencionais e profundamente anticristãos em seus atos, agora se denominam cristãos e vão à mesa de comunhão?... Um príncipe à frente de seus regimentos, magnificente enquanto expressão do egoísmo e arrogância de seu povo – e mesmo assim declarando, sem qualquer vergonha, que é um cristão!...(1) Quem, então, o cristianismo nega? O que ele chama “o mundo”? Ser soldado, ser juiz, ser patriota; defender-se a si mesmo; zelar pela sua honra; desejar sua própria vantagem; ser orgulhoso... Toda prática trivial, todo instinto, toda valoração convertida em ato agora é anticristã: que monstro de falsidade o homem moderno precisa ser para se denominar um cristão sem envergonhar-se!
1 – Nietzsche refere-se ao Kaiser Guilherme II, que subira ao trono da Alemanha em 15 de abril de 1888, cinco meses antes da redação de O Anticristo. (Pietro Nasseti)
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