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segunda-feira, 17 de setembro de 2012

O Anticristo - Friedrich Nietzsche (parte 8)

XXXIX
– Farei uma pequena regressão para explicar a autêntica história do cristianismo. – A própria palavra “cristianismo” é um mal-entendido – no fundo só existiu um cristão, e ele morreu na cruz. O “Evangelho” morreu na cruz. O que, desse momento em diante, chamou-se de “Evangelho” era exatamente o oposto do que ele viveu: “más novas”, um Dysangelium(1). É um erro elevado à estupidez ver na “fé”, e particularmente na fé na salvação através de Cristo, o sinal distintivo do cristão: apenas a prática cristã, a vida vivida por aquele que morreu na cruz, é cristã... Hoje tal vida ainda é possível, e para certos homens até necessária: o cristianismo primitivo, genuíno, continuará sendo possível em quaisquer épocas... Não fé, mas atos; acima de tudo, um evitar atos, um modo diferente de ser... Os estados de consciência, uma fé qualquer, por exemplo, a aceitação de alguma coisa como verdade – como todo psicólogo sabe, o valor dessas coisas é perfeitamente indiferente e de quinta ordem se comparado ao dos instintos: estritamente falando, todo o conceito de causalidade intelectual é falso. Reduzir o ato ser cristão, o estado de cristianismo, a uma aceitação da verdade, a um mero fenômeno de consciência, equivale a formular uma negação do cristianismo. De fato, não existem cristãos. O “cristão” – aquele que por dois mil anos passou-se por cristão – é simplesmente uma auto-ilusão psicológica. Examinado de perto, parece que, apesar de toda sua “fé”, foi apenas governado por seus instintos – e que instintos! – Em todas as épocas – por exemplo, no caso de Lutero – “fé” nunca foi mais que uma capa, um pretexto, uma cortina por detrás da qual os instintos faziam seu jogo – uma engenhosa cegueira à dominação de certos instintos... Eu já denominei a “fé” uma habilidade especialmente cristã – sempre se fala de “fé”, mas, se age de acordo com os instintos... No mundo de ideias do cristão não há qualquer coisa que sequer toque a realidade: ao contrário, reconhece-se um ódio instintivo contra a realidade como força motivadora, como único poder de motivação no fundo do cristianismo. Que se segue disso? Que mesmo aqui, in psychologicis, há um erro radical, isto é, determinante da essência, ou seja, da substância. Retire-se uma ideia e coloque-se uma realidade genuína em seu lugar – e todo o
cristianismo reduz-se a um nada! – Visto calmamente, este fenômeno é dos mais estranhos, uma religião não apenas dependente de erros, mas inventiva e engenhosa apenas em criar erros nocivos, venenosos à vida e ao coração – constitui um verdadeiro espetáculo para os Deuses – para aquelas divindades que também são filósofas, as quais encontrei, por exemplo, nos célebres diálogos de Naxos. No momento em que a repugnância as deixar (– e também a nós!) ficarão agradecidas pelo espetáculo proporcionado pelos cristãos: talvez por causa desta curiosa exibição somente o miserável e minúsculo planeta chamado Terra mereça olhar divino, uma demonstração de interesse divino... Portanto, não subestimemos os cristãos: o cristão, falso até a inocência, está muito acima do macaco – uma teoria das origens bastante conhecida(2), quando aplicada aos cristãos, torna-se simplesmente uma delicadeza...
1 – Um dos muitos neologismos de Nietzsche. Ele compõe este vocábulo angelium (cuja origem vem do grego e que significa “nova”, “notícia”) fazendo oposição com os prefixos dys (mau, infeliz – “notícia má”) e eu (bom, feliz – “boa nova”, “boa notícia”).
Pietro Nasseti)
2 – Referência à teoria de Charles Darwin sobre as origens do homem. (Pietro Nasseti)
XL
– O destino do Evangelho foi decidido no momento de sua morte – foi pendurado na “cruz”... Somente a morte, essa inesperada e vergonhosa morte; somente a cruz, a qual geralmente era reservada apenas à canalha – somente este assombroso paradoxo colocou os discípulos face a face com o verdadeiro enigma: “Quem era este? Oque era este?” – O sentimento de desalento, de profunda afronta e injúria; a suspeita de que tal morte poderia constituir uma refutação de sua causa; a terrível questão “Por que aconteceu assim?” – esse estado mental é facilmente compreensível. Aqui tudo precisa ser considerado como necessário; tudo precisa ter um significado, uma razão, uma elevadíssima razão; o amor de um discípulo exclui todo o acaso. Apenas então da fenda da dúvida bocejou: “Quem o matou? Quem era seu inimigo natural?” – essa pergunta reluziu como um relâmpago. Resposta: o judaísmo dominante, a classe dirigente. A partir desse momento revoltaram-se contra a ordem estabelecida, começaram a compreender Jesus como um insurrecto contra a ordem estabelecida. Até então este elemento militante, negador estava ausente em sua imagem; ainda mais, isso representava seu próprio oposto. Decerto a pequena comunidade não havia compreendido o que era precisamente o mais importante: o exemplo oferecido pela sua morte, a liberdade, a superioridade sobre todo o ressentimento – uma plena indicação de quão pouco foi compreendido! Tudo que Jesus poderia desejar através de sua morte, em si mesma, era oferecer publicamente a maior prova possível, um exemplo de seus ensinamentos. Mas os discípulos estavam muito longe de perdoar sua morte – apesar de que fazê-lo seria consoante ao evangelho no mais alto grau; e também não estavam preparados para se oferecerem, com doce e suave tranquilidade de coração, a uma morte similar... Muito pelo contrário, foi precisamente o menos evangélico dos sentimentos, a vingança,
que os possuiu. Parecia-lhes impossível que a causa devesse perecer com sua morte: “recompensa” e “julgamento” tornaram-se necessários (– e o que poderia ser menos evangélico que “recompensa”, “punição” e “julgamento”!). – Uma vez mais a crença popular na vinda de um messias apareceu em primeiro plano; a atenção foi direcionada a um momento histórico: o “reino de Deus” virá para julgar seus inimigos... Mas nisso tudo há um mal-entendido gigantesco: conceber o “reino de Deus” como ato final, como uma simples promessa! O Evangelho havia sido, de fato, a própria encarnação, o cumprimento, a realização desse “reino de Deus”. Foi apenas então que todo o desprezo e acridez contra fariseus e teólogos começaram a aparecer no tipo do Mestre, que com isso foi transformado, ele próprio, em fariseu e teólogo! Por outro lado, a selvagem veneração dessas almas completamente desequilibradas não podia mais suportar a doutrina do Evangelho, ensinada por Jesus, sobre os direitos iguais entre todos os homens à filiação divina: sua vingança consistiu em elevar Jesus de modo extravagante, destarte separando-o deles: exatamente como, em tempos anteriores, os judeus, para vingarem-se de seus inimigos, se separaram de seu Deus e o elevaram às alturas. Este Deus único e este filho único de Deus: ambos foram produtos do ressentimento...
XLI
– E a partir desse momento surgiu um problema absurdo: “Como pôde Deus permiti-lo?” Para o qual a perturbada lógica da pequena comunidade formulou uma resposta assustadoramente absurda: Deus deu seu filho em sacrifício para a remissão dos pecados. De uma só vez acabaram com o Evangelho! O sacrifício pelos pecados, e em sua forma mais obnóxia e bárbara: o sacrifício do inocente pelo pecado dos culpados! Que paganismo apavorante! – O próprio Jesus havia suprimido o conceito de “culpa”, negava a existência de um abismo entre Deus e o homem; ele viveu essa unidade entre Deus e o homem, que era precisamente a sua “boa-nova”... E não como um privilégio! – Desde então o tipo do Salvador foi sendo corrompido, pouco a pouco, pela doutrina do julgamento e da segunda vinda, a doutrina da morte como sacrifício, a doutrina da ressurreição, através da qual toda a noção de “bem-aventurança”, a inteira e única realidade dos Evangelhos é escamoteada – em favor de um estado existencial pós-morte!... Paulo, com aquela insolência rabínica que permeia todos seus atos, deu um caráter lógico a essa concepção indecente deste modo: “Se Cristo não ressuscitou de entre os mortos, então é vã toda a nossa fé” – E de súbito converteu-se o Evangelho na mais desprezível e irrealizável das promessas, a petulante doutrina da imortalidade do indivíduo... E Paulo a pregava como uma recompensa!...
XLII
Agora se começa a ver justamente o que terminava com a morte na cruz: um esforço novo e totalmente original para fundar um movimento de pacifismo budístico, e assim estabelecer a felicidade na Terra – real, não meramente prometida. Pois esta é – como já demonstrei – a diferença essencial entre as duas religiões da decadência: o budismo não promete, mas de fato cumpre; o cristianismo promete tudo, mas não cumpre nada. – A “boa nova” foi seguida rente aos calcanhares pela “péssima nova”: a de Paulo. Paulo encarna exatamente o tipo oposto ao “portador da boa nova”; representa o gênio do ódio, a visão do ódio, a inexorável lógica do ódio. O que esse disangelista(1) não ofereceu em sacrifício ao ódio! Acima de tudo, o Salvador: ele pregou-o em sua própria cruz. A vida, o exemplo, o ensinamento, a morte de Cristo, o significado e a lei de todo o Evangelho – nada disso restou após esse falsário, com seu ódio, ter reduzido tudo ao que lhe tivesse utilidade. Certamente não a realidade, certamente não a verdade histórica!... E uma vez mais o instinto sacerdotal do judeu perpetrou o mesmo grande crime contra a História – simplesmente extirpou o ontem e o anteontem do cristianismo e inventou sua própria história das origens do cristianismo. Ainda mais, fez da história de Israel outra falsificação, para que assim se tornasse uma mera pré-história de seus feitos: todos os profetas falavam de seu “Salvador”... Mais adiante a Igreja falsificou até a história da humanidade para transformá-la em uma pré-história do cristianismo... A figura do Salvador, seus ensinamentos, seu estilo de vida, sua morte, o significado de sua morte, mesmo as consequências de sua morte – nada permaneceu intocado, nada permaneceu sequer semelhante à realidade. Paulo simplesmente deslocou o centro de gravidade daquela vida inteira para um local detrás desta existência – na mentira do Jesus “ressuscitado”. No fundo, a vida do salvador não lhe tinha qualquer utilidade – o que necessitava era de uma morte na cruz e de algo mais. Ver qualquer coisa honesta em Paulo, cuja casa estava no centro da ilustração estoica, quando converteu uma alucinação em uma prova da ressurreição do Salvador, ou mesmo acreditar na narrativa de que ele próprio sofreu essa alucinação – isso seria uma genuína niaiserie(2) da parte de um psicólogo. Paulo desejava o fim; logo, também desejava os meios. – Aquilo que ele próprio não acreditava foi prontamente engolido por suficientes idiotas entre os quais disseminou seu ensinamento. – Seu desejo era o poder; em Paulo o padre novamente quis chegar ao poder – só podia servir-se de conceitos, ensinamentos e símbolos que tiranizam as massas e formam rebanhos. Qual parte do cristianismo Maomé tomou emprestada mais tarde? A invenção de Paulo, sua técnica para estabelecer a tirania sacerdotal e organizar rebanhos: a crença na imortalidade da alma – isto é, a doutrina do “julgamento”.
1 – “Portador da má notícia”
2 – Parvoíce, tolice.
LXIII
Quando centro de gravidade da vida é colocado, não nela mesma, mas no “além” – no nada –, então se retirou da vida o seu centro de gravidade. A grande mentira da imortalidade pessoal destrói toda razão, todo instinto natural – tudo que há nos instintos que seja benéfico, vivificante, que assegure o futuro, agora é causa de desconfiança. Viver de modo que a vida não tenha sentido: agora esse é o “sentido” da vida... Para que o espírito público? Para que se orgulhar pela origem e antepassados? Para que cooperar, confiar, preocupar-se com o bem-estar geral e servir a ele?... Outras tantas “tentações”, outros tantos desvios do “bom caminho”. – “Somente uma coisa é necessária”... Que todo homem, por possuir uma “alma imortal”, tenha tanto valor quanto qualquer outro homem; que na totalidade dos seres a “salvação” de todo indivíduo um possa reivindicar uma importância eterna; que beatos insignificantes e desequilibrados possam imaginar que as leis da natureza são constantemente transgredidas em seu favor – não há como expressar desprezo suficiente por tamanha intensificação de toda espécie de egoísmos ad infinitum, até a insolência.

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