Transformaram, de acordo com suas necessidades, os heróis poderosos e absolutamente livres da história de Israel ou em fanáticos miseráveis e hipócritas, ou em homens totalmente “ímpios”. Reduziram todos grandes acontecimentos à estúpida fórmula: “obedientes ou desobedientes a Deus”. – E foram mais adiante: a “vontade de Deus” (em outras palavras, as condições necessárias para a preservação do poder dos padres) tinha de ser determinada – e para tal fim necessitavam de uma “revelação”. Dizendo de modo mais claro, uma enorme fraude literária teve de ser perpetrada, “sagradas escrituras” tiveram de ser forjadas – e então, com grandiosa pompa hierática e dias penitência e muita lamentação pelos longos dias de “pecado” agora terminados, foram devidamente publicadas. A “vontade de Deus”, ao que parece, há muito já havia sido estabelecida; o problema foi que a humanidade negligenciou as “sagradas escrituras”... Mas a “vontade de Deus” já havia sido revelada a Moisés... O que ocorreu? Simplesmente isto: os padres tinham formulado, de uma vez por todas e com a mais estrita meticulosidade, que tributos deveriam ser-lhe pagos, desde o maior até o menor (– não se esquecendo dos mais apetitosos cortes de carne, pois o padre é um grande consumidor de bifes); em suma, ele disse o que desejava ter, qual era a “vontade de Deus”... Desse tempo em diante as coisas se organizam de tal modo que o padre tornou-se indispensável em todos os lugares; em todos os importantes eventos naturais da vida, no nascimento, no casamento, na enfermidade, na morte, para não falar no “sacrifício” (ou seja, na ceia), o sacro-parasita se apresenta para os desnaturalizar – na sua linguagem, para os “santificar”... Pois é necessário salientar
isto: que todo hábito natural, toda instituição natural (o Estado, a administração da Justiça, o casamento, os cuidados prestados aos doentes e pobres), tudo que é exigido pelo instinto vital, em suma, tudo que tem valor em si mesmo é reduzido a algo absolutamente imprestável e até transformado no oposto ao que é valoroso pelo o parasitismo dos padres (ou, se alguém preferir, pela “ordem moral do mundo”). O fato precisa de uma sanção – um poder para criarvalores faz-se necessário, e tal poder só pode valorar através da negação da natureza... O padre deprecia e profana a natureza: esse é o preço para que possa existir. – A desobediência a Deus, ou seja, a desobediência ao padre, à lei, agora porta o nome de “pecado”; os meios prescritos para a “reconciliação com Deus” são, é claro, precisamente os que induzem mais eficientemente um indivíduo a sujeitar-se ao padre; apenas ele “salva”. Considerados psicologicamente, os “pecados” são indispensáveis em toda sociedade organizada sobre fundamentos eclesiásticos; são os únicos instrumentos confiáveis de poder; o padre vive do pecado; tem necessidade de que existam “pecadores”... Axioma Supremo: “Deus perdoa a todo aquele que faz penitência” – ou, em outras palavras, a todo aquele que se submete ao padre.
1 – Nas questões históricas.
isto: que todo hábito natural, toda instituição natural (o Estado, a administração da Justiça, o casamento, os cuidados prestados aos doentes e pobres), tudo que é exigido pelo instinto vital, em suma, tudo que tem valor em si mesmo é reduzido a algo absolutamente imprestável e até transformado no oposto ao que é valoroso pelo o parasitismo dos padres (ou, se alguém preferir, pela “ordem moral do mundo”). O fato precisa de uma sanção – um poder para criarvalores faz-se necessário, e tal poder só pode valorar através da negação da natureza... O padre deprecia e profana a natureza: esse é o preço para que possa existir. – A desobediência a Deus, ou seja, a desobediência ao padre, à lei, agora porta o nome de “pecado”; os meios prescritos para a “reconciliação com Deus” são, é claro, precisamente os que induzem mais eficientemente um indivíduo a sujeitar-se ao padre; apenas ele “salva”. Considerados psicologicamente, os “pecados” são indispensáveis em toda sociedade organizada sobre fundamentos eclesiásticos; são os únicos instrumentos confiáveis de poder; o padre vive do pecado; tem necessidade de que existam “pecadores”... Axioma Supremo: “Deus perdoa a todo aquele que faz penitência” – ou, em outras palavras, a todo aquele que se submete ao padre.
1 – Nas questões históricas.
XXVII
O cristianismo se desenvolveu a partir de um solo tão corrupto que nele todo o natural, todo valor natural, toda realidade se opunha aos instintos mais profundos da classe dominante – surgiu como uma espécie de guerra de morte contra a realidade, e como tal nunca foi superada. O “povo eleito” que para todas as coisas adotou valores sacerdotais e nomes sacerdotais, e que, com aterrorizante lógica, rejeitou tudo que era terrestre como “profano”, “mundano”, “pecaminoso” – esse povo colocou seus instintos em uma fórmula final que era conseqüente até o ponto da auto-aniquilação: como cristianismo, de fato negou mesmo a última forma da realidade, o “povo sagrado”, o “povo eleito”, a própria realidade judaica. O fenômeno tem importância de primeira ordem: o pequeno movimento insurrecional que levou o nome de Jesus de Nazaré é simplesmente o instinto judaico redivivus(1) – em outras palavras, é o instinto sacerdotal que não consegue mais suportar sua própria realidade; é a descoberta de um estado existencial ainda mais abstrato, de uma visão da vida ainda mais irreal que a necessária para uma organização eclesiástica. O cristianismo de fato nega a igreja...
Não sou capaz de determinar qual foi o alvo da insurreição da qual Jesus foi considerado – seja isso verdade ou não – o promotor, caso não seja a Igreja judaica – a palavra “igreja” sendo usada aqui exatamente no mesmo sentido que possui hoje. Era uma insurreição contra “os bons e os justos”, contra os “Santos de Israel”, contra toda a hierarquia da sociedade – não contra a corrupção, mas contra as castas, o privilégio, a ordem, o formalismo. Era uma descrença no “homem superior”, um Não arremessado contra tudo que padres e teólogos defendiam. Mas a hierarquia que foi posta em causa por esse movimento, ainda que por apenas um instante, era uma jangada que, acima de tudo, era necessária à segurança do povo judaico em meio às “águas” – representava sua última possibilidade de sobrevivência; era o último residuum(2) de sua existência política independente; um ataque contra isso era um ataque contra o mais profundo instinto nacional, contra a mais tenaz vontade de viver de um povo que jamais existiu sobre a Terra. Esse santo anarquista incitou o povo de baixeza abissal, os réprobos e “pecadores”, os chandala do judaísmo a emergirem em revolta contra a ordem estabelecida das coisas – e com uma linguagem que, se os Evangelhos merecem crédito, hoje o conduziria à Sibéria –, esse homem certamente era um criminoso político, ao menos tanto quanto era possível o ser em uma comunidade tão absurdamente apolítica. Foi isso que o levou à cruz: a prova consiste na inscrição colocada sobre ela. Morreu pelos seus pecados – não há qualquer razão para se acreditar, não importa quanto isso seja afirmado, que tenha morrido pelo pecado dos outros. –
1 – Que retornou à vida; ressuscitado.
2 – Resíduo.
O cristianismo se desenvolveu a partir de um solo tão corrupto que nele todo o natural, todo valor natural, toda realidade se opunha aos instintos mais profundos da classe dominante – surgiu como uma espécie de guerra de morte contra a realidade, e como tal nunca foi superada. O “povo eleito” que para todas as coisas adotou valores sacerdotais e nomes sacerdotais, e que, com aterrorizante lógica, rejeitou tudo que era terrestre como “profano”, “mundano”, “pecaminoso” – esse povo colocou seus instintos em uma fórmula final que era conseqüente até o ponto da auto-aniquilação: como cristianismo, de fato negou mesmo a última forma da realidade, o “povo sagrado”, o “povo eleito”, a própria realidade judaica. O fenômeno tem importância de primeira ordem: o pequeno movimento insurrecional que levou o nome de Jesus de Nazaré é simplesmente o instinto judaico redivivus(1) – em outras palavras, é o instinto sacerdotal que não consegue mais suportar sua própria realidade; é a descoberta de um estado existencial ainda mais abstrato, de uma visão da vida ainda mais irreal que a necessária para uma organização eclesiástica. O cristianismo de fato nega a igreja...
Não sou capaz de determinar qual foi o alvo da insurreição da qual Jesus foi considerado – seja isso verdade ou não – o promotor, caso não seja a Igreja judaica – a palavra “igreja” sendo usada aqui exatamente no mesmo sentido que possui hoje. Era uma insurreição contra “os bons e os justos”, contra os “Santos de Israel”, contra toda a hierarquia da sociedade – não contra a corrupção, mas contra as castas, o privilégio, a ordem, o formalismo. Era uma descrença no “homem superior”, um Não arremessado contra tudo que padres e teólogos defendiam. Mas a hierarquia que foi posta em causa por esse movimento, ainda que por apenas um instante, era uma jangada que, acima de tudo, era necessária à segurança do povo judaico em meio às “águas” – representava sua última possibilidade de sobrevivência; era o último residuum(2) de sua existência política independente; um ataque contra isso era um ataque contra o mais profundo instinto nacional, contra a mais tenaz vontade de viver de um povo que jamais existiu sobre a Terra. Esse santo anarquista incitou o povo de baixeza abissal, os réprobos e “pecadores”, os chandala do judaísmo a emergirem em revolta contra a ordem estabelecida das coisas – e com uma linguagem que, se os Evangelhos merecem crédito, hoje o conduziria à Sibéria –, esse homem certamente era um criminoso político, ao menos tanto quanto era possível o ser em uma comunidade tão absurdamente apolítica. Foi isso que o levou à cruz: a prova consiste na inscrição colocada sobre ela. Morreu pelos seus pecados – não há qualquer razão para se acreditar, não importa quanto isso seja afirmado, que tenha morrido pelo pecado dos outros. –
1 – Que retornou à vida; ressuscitado.
2 – Resíduo.
XXVIII
Se ele próprio era consciente dessa contradição – ou se, de fato, essa era a única da qual tinha conhecimento – essa é uma questão totalmente distinta. Aqui, pela primeira vez, toco o problema da psicologia do Salvador. – Para começar, confesso que muitos poucos livros, para mim, são mais difíceis de ler que os Evangelhos. Minhas dificuldades são bastante diferentes daquelas que possibilitaram à curiosidade letrada da mente alemã perpetrar um de seus triunfos mais inesquecíveis. Faz um longo tempo desde que eu, como qualquer outro jovem erudito, desfrutava da incomparável obra de Strauss(1) com toda a sapiente laboriosidade de um meticuloso filólogo. Naquele tempo possuía vinte anos: agora sou sério demais para esse tipo de coisa. Que me importam as contradições da “tradição”? Como alguém pode chamar lendas de santos de “tradição”? As histórias de santos são a mais dúbia variedade de literatura existente; examiná-las à luz do método científico na ausência total de documentos corroborativos a mim parece condenar toda a investigação desde suas origens – isso seria simplesmente uma divagação erudita...
1 – David Friedrich Strauss (1808-74), autor de “Das Leben Jesu” (1835-6), uma obra muito famosa em sua época. Nietzsche se refere a ela. (H. L. Mencken)
Se ele próprio era consciente dessa contradição – ou se, de fato, essa era a única da qual tinha conhecimento – essa é uma questão totalmente distinta. Aqui, pela primeira vez, toco o problema da psicologia do Salvador. – Para começar, confesso que muitos poucos livros, para mim, são mais difíceis de ler que os Evangelhos. Minhas dificuldades são bastante diferentes daquelas que possibilitaram à curiosidade letrada da mente alemã perpetrar um de seus triunfos mais inesquecíveis. Faz um longo tempo desde que eu, como qualquer outro jovem erudito, desfrutava da incomparável obra de Strauss(1) com toda a sapiente laboriosidade de um meticuloso filólogo. Naquele tempo possuía vinte anos: agora sou sério demais para esse tipo de coisa. Que me importam as contradições da “tradição”? Como alguém pode chamar lendas de santos de “tradição”? As histórias de santos são a mais dúbia variedade de literatura existente; examiná-las à luz do método científico na ausência total de documentos corroborativos a mim parece condenar toda a investigação desde suas origens – isso seria simplesmente uma divagação erudita...
1 – David Friedrich Strauss (1808-74), autor de “Das Leben Jesu” (1835-6), uma obra muito famosa em sua época. Nietzsche se refere a ela. (H. L. Mencken)
XXIX
O que me importa é o tipo psicológico do Salvador. Esse tipo talvez seja descrito nos evangelhos, apesar de que em uma forma mutilada e saturada de caracteres estrangeiros – isto é, a despeito dos Evangelhos; assim como a figura de Francisco de Assis se apresenta em suas lendas a despeito de suas lendas. A questão não é a veracidade das evidências sobre seus feitos, seus ditos ou sobre como foi sua morte; a questão é se seu tipo ainda pode ser compreendido, se foi conservado. – Todas as tentativas de que tenho conhecimento de se ler a história da “alma” nos Evangelhos revelam para mim apenas uma lamentável leviandade psicológica. O Senhor Renan, esse arrivista in psychologicis(1), contribuiu às duas noções mais inadequadas concernentes à explicação do tipo de Jesus: a noção de gênio e a de herói (“heros”). Mas se existe alguma coisa essencialmente antievangélica, certamente é a noção de herói. O que os Evangelhos tornam instintivo é precisamente o oposto de todo o esforço heróico, de todo o gosto pelo conflito: a incapacidade de resistência converte-se aqui em algo moral: (“não resistas ao mal” – a mais profunda sentença dos Evangelhos, talvez a verdadeira chave para eles) a saber, na bem-aventurança da paz, da bondade, na incapacidade para a inimizade. Qual o significado da “boa-nova”? – Que verdadeira vida, a vida eterna foi encontrada – não foi meramente prometida, está aqui, está em você; é a vida que se encontra no amor livre de todos os retraimentos e exclusões, livre de todas as distâncias. Todos são filhos Deus, Jesus não reivindica nada apenas para si; como filhos de Deus, todos os homens são iguais... Imagine fazer de Jesus um herói! – E que tremenda incompreensão escorre da palavra “gênio”! Toda nossa concepção do “espiritual”, toda concepção de nossa civilização não possui qualquer sentido no mundo em que Jesus viveu. Falando com o rigor de um fisiologista, uma palavra bastante diferente deveria ser usada aqui... Todos sabemos que há uma sensibilidade mórbida dos nervos táteis que faz com que os sofredores evitem todo o tocar, se retraiam ante a necessidade de agarrar um objeto sólido. Infere-se disso que, em última instância, tal habitatus(2) fisiológico transforma-se em um ódio instintivo contra toda a realidade, em uma fuga ao “intangível”, ao “incompreensível”; uma repugnância por toda fórmula, por todas noções de tempo e espaço, por todo o estabelecido – costumes, instituições, Igreja –; a sensação de estar em casa em um mundo sem contado com a realidade, um mundo exclusivamente “interior”, um mundo “verdadeiro”, um mundo “eterno”... “O reino de Deus está dentro de vós”...
1 – Em assuntos psicológicos.
2 – Comportamento.
O que me importa é o tipo psicológico do Salvador. Esse tipo talvez seja descrito nos evangelhos, apesar de que em uma forma mutilada e saturada de caracteres estrangeiros – isto é, a despeito dos Evangelhos; assim como a figura de Francisco de Assis se apresenta em suas lendas a despeito de suas lendas. A questão não é a veracidade das evidências sobre seus feitos, seus ditos ou sobre como foi sua morte; a questão é se seu tipo ainda pode ser compreendido, se foi conservado. – Todas as tentativas de que tenho conhecimento de se ler a história da “alma” nos Evangelhos revelam para mim apenas uma lamentável leviandade psicológica. O Senhor Renan, esse arrivista in psychologicis(1), contribuiu às duas noções mais inadequadas concernentes à explicação do tipo de Jesus: a noção de gênio e a de herói (“heros”). Mas se existe alguma coisa essencialmente antievangélica, certamente é a noção de herói. O que os Evangelhos tornam instintivo é precisamente o oposto de todo o esforço heróico, de todo o gosto pelo conflito: a incapacidade de resistência converte-se aqui em algo moral: (“não resistas ao mal” – a mais profunda sentença dos Evangelhos, talvez a verdadeira chave para eles) a saber, na bem-aventurança da paz, da bondade, na incapacidade para a inimizade. Qual o significado da “boa-nova”? – Que verdadeira vida, a vida eterna foi encontrada – não foi meramente prometida, está aqui, está em você; é a vida que se encontra no amor livre de todos os retraimentos e exclusões, livre de todas as distâncias. Todos são filhos Deus, Jesus não reivindica nada apenas para si; como filhos de Deus, todos os homens são iguais... Imagine fazer de Jesus um herói! – E que tremenda incompreensão escorre da palavra “gênio”! Toda nossa concepção do “espiritual”, toda concepção de nossa civilização não possui qualquer sentido no mundo em que Jesus viveu. Falando com o rigor de um fisiologista, uma palavra bastante diferente deveria ser usada aqui... Todos sabemos que há uma sensibilidade mórbida dos nervos táteis que faz com que os sofredores evitem todo o tocar, se retraiam ante a necessidade de agarrar um objeto sólido. Infere-se disso que, em última instância, tal habitatus(2) fisiológico transforma-se em um ódio instintivo contra toda a realidade, em uma fuga ao “intangível”, ao “incompreensível”; uma repugnância por toda fórmula, por todas noções de tempo e espaço, por todo o estabelecido – costumes, instituições, Igreja –; a sensação de estar em casa em um mundo sem contado com a realidade, um mundo exclusivamente “interior”, um mundo “verdadeiro”, um mundo “eterno”... “O reino de Deus está dentro de vós”...
1 – Em assuntos psicológicos.
2 – Comportamento.
XXX
O ódio instintivo contra a realidade: a conseqüência de uma extremada suscetibilidade à dor e irritação – tão intensa que meramente ser “tocado” torna-se insuportável, pois cada sensação manifesta-se muito profundamente.
A exclusão instintiva de toda aversão, toda hostilidade, todas as fronteiras e distâncias no sentimento: a conseqüência de uma extremada suscetibilidade à dor e irritação – tão grande que sente toda a resistência, toda a compulsão à resistência como uma angústia insuportável (– em outros termos, como nocivo, como proibido pelo instinto de autopreservação), e considera a bem-aventurança (alegria) como algo possível apenas após não ser mais necessário oferecer resistência a nada nem a ninguém, nem mesmo ao mal e ao perigoso – amor como única, como a última possibilidade de vida...
Essas são as duas realidades fisiológicas a partir das quais e por causa das quais a doutrina da salvação se desenvolveu. Denomino-as um sublime hedonismo superdesenvolvido assentado sobre um solo completamente insalubre. O que fica mais próximo delas, apesar de misturado com uma grande dose de vitalidade grega e força nervosa, é o epicurismo, a teoria da salvação do paganismo. Epicuro era um típico decadente: fui o primeiro a reconhecê-lo. – O medo da dor, mesmo da dor infinitamente pequena – o resultado disso não pode ser qualquer coisa exceto uma religião do amor...
O ódio instintivo contra a realidade: a conseqüência de uma extremada suscetibilidade à dor e irritação – tão intensa que meramente ser “tocado” torna-se insuportável, pois cada sensação manifesta-se muito profundamente.
A exclusão instintiva de toda aversão, toda hostilidade, todas as fronteiras e distâncias no sentimento: a conseqüência de uma extremada suscetibilidade à dor e irritação – tão grande que sente toda a resistência, toda a compulsão à resistência como uma angústia insuportável (– em outros termos, como nocivo, como proibido pelo instinto de autopreservação), e considera a bem-aventurança (alegria) como algo possível apenas após não ser mais necessário oferecer resistência a nada nem a ninguém, nem mesmo ao mal e ao perigoso – amor como única, como a última possibilidade de vida...
Essas são as duas realidades fisiológicas a partir das quais e por causa das quais a doutrina da salvação se desenvolveu. Denomino-as um sublime hedonismo superdesenvolvido assentado sobre um solo completamente insalubre. O que fica mais próximo delas, apesar de misturado com uma grande dose de vitalidade grega e força nervosa, é o epicurismo, a teoria da salvação do paganismo. Epicuro era um típico decadente: fui o primeiro a reconhecê-lo. – O medo da dor, mesmo da dor infinitamente pequena – o resultado disso não pode ser qualquer coisa exceto uma religião do amor...
XXI
Antecipadamente dei minha resposta ao problema. Seu pré-requisito é a assunção de que o tipo do Salvador chegou até nós com sua forma altamente distorcida. Tal distorção é muito provável: há muitos motivos para que esse tipo não deva ser transmitido em sua forma pura, completa e livre de acréscimos. O ambiente no qual esta estranha figura se movia deve ter deixado vestígios nela, e ainda mais deve ter sido feito pela história, pelo destino das primeiras comunidades cristãs; a última, de fato, deve ter embelezado o tipo retrospectivamente com caracteres que apenas podem ser compreendidos enquanto finalidades de guerra e propaganda. Aquele mundo estranho e doentio ao qual os Evangelhos nos conduzem – um mundo aparentemente vindo de uma novela russa, no qual a escória da sociedade, as moléstias nervosas e a idiotice “pueril” se reúnem – deve, de qualquer modo, ter tornado o tipo grosseiro: os primeiros discípulos, em particular, devem ter sido forçados a traduzir, com sua crueza própria, um ser totalmente formado por símbolos e coisas ininteligíveis para poderem compreender alguma coisa – na visão deles o tipo apenas existiu após ter sido reformado em moldes mais familiares... O profeta, o messias, o futuro juiz, o professor de moral, o milagreiro, João Batista – todas simplesmente chances de desfigurá-lo... Finalmente, não subestimemos o proprium(1) de todas as grandes venerações, especialmente as sectárias: tendem a apagar dos objetos venerados todas as características originais e idiossincrasias, não raro dolorosamente estranhas – nem mesmo os vê. Deve-se lamentar muito que nenhum Dostoievski tenha vivido nas vizinhanças do mais interessante dos décadents – ou seja, alguém que teria sentido o comovente encanto de tal mistura do sublime, do mórbido e do infantil. Em última análise, o tipo, enquanto tipo da decadência, talvez possa realmente ter sido peculiarmente complexo e contraditório: não se deve excluir essa possibilidade. Contudo, as probabilidades parecem estar em seu desfavor, pois neste caso a tradição teria sido particularmente precisa e objetiva, enquanto temos razões para admitir o contrário. Entretanto, existe uma contradição entre o pacífico pregador das montanhas, dos lagos e dos campos, que parece como um novo Buda em um solo muito pouco indiano, e o fanático agressivo, o inimigo mortal dos teólogos e dos eclesiásticos, que é glorificado pela malícia de Renan como “lê grand maitre em ironie(2)”. Pessoalmente não tenho qualquer dúvida de que a maior parte desse veneno (e não menos de esprito (3)) haja penetrado no tipo do Mestre apenas como um resultado da agitada natureza da propaganda cristã: todos conhecemos a inescrupulosidade dos sectários quando decidem fazer de seu líder uma apologia para si mesmos. Quando os primeiros cristãos precisaram de um teólogo hábil, contencioso, pugnaz e maliciosamente sutil para enfrentar outros teólogos, criaram um “Deus” para satisfazer tal necessidade, exatamente como também, sem hesitação, colocaram em sua boca certas idéias que eram necessárias a eles, mas totalmente divergentes dos Evangelhos – “a volta de Cristo”, “o juízo final”, todos os tipos de expectativas e promessas temporais. –
1 – Propriedade, qualidade.
2 – O grande mestre em ironia.
3 – Espírito, ironia.
Antecipadamente dei minha resposta ao problema. Seu pré-requisito é a assunção de que o tipo do Salvador chegou até nós com sua forma altamente distorcida. Tal distorção é muito provável: há muitos motivos para que esse tipo não deva ser transmitido em sua forma pura, completa e livre de acréscimos. O ambiente no qual esta estranha figura se movia deve ter deixado vestígios nela, e ainda mais deve ter sido feito pela história, pelo destino das primeiras comunidades cristãs; a última, de fato, deve ter embelezado o tipo retrospectivamente com caracteres que apenas podem ser compreendidos enquanto finalidades de guerra e propaganda. Aquele mundo estranho e doentio ao qual os Evangelhos nos conduzem – um mundo aparentemente vindo de uma novela russa, no qual a escória da sociedade, as moléstias nervosas e a idiotice “pueril” se reúnem – deve, de qualquer modo, ter tornado o tipo grosseiro: os primeiros discípulos, em particular, devem ter sido forçados a traduzir, com sua crueza própria, um ser totalmente formado por símbolos e coisas ininteligíveis para poderem compreender alguma coisa – na visão deles o tipo apenas existiu após ter sido reformado em moldes mais familiares... O profeta, o messias, o futuro juiz, o professor de moral, o milagreiro, João Batista – todas simplesmente chances de desfigurá-lo... Finalmente, não subestimemos o proprium(1) de todas as grandes venerações, especialmente as sectárias: tendem a apagar dos objetos venerados todas as características originais e idiossincrasias, não raro dolorosamente estranhas – nem mesmo os vê. Deve-se lamentar muito que nenhum Dostoievski tenha vivido nas vizinhanças do mais interessante dos décadents – ou seja, alguém que teria sentido o comovente encanto de tal mistura do sublime, do mórbido e do infantil. Em última análise, o tipo, enquanto tipo da decadência, talvez possa realmente ter sido peculiarmente complexo e contraditório: não se deve excluir essa possibilidade. Contudo, as probabilidades parecem estar em seu desfavor, pois neste caso a tradição teria sido particularmente precisa e objetiva, enquanto temos razões para admitir o contrário. Entretanto, existe uma contradição entre o pacífico pregador das montanhas, dos lagos e dos campos, que parece como um novo Buda em um solo muito pouco indiano, e o fanático agressivo, o inimigo mortal dos teólogos e dos eclesiásticos, que é glorificado pela malícia de Renan como “lê grand maitre em ironie(2)”. Pessoalmente não tenho qualquer dúvida de que a maior parte desse veneno (e não menos de esprito (3)) haja penetrado no tipo do Mestre apenas como um resultado da agitada natureza da propaganda cristã: todos conhecemos a inescrupulosidade dos sectários quando decidem fazer de seu líder uma apologia para si mesmos. Quando os primeiros cristãos precisaram de um teólogo hábil, contencioso, pugnaz e maliciosamente sutil para enfrentar outros teólogos, criaram um “Deus” para satisfazer tal necessidade, exatamente como também, sem hesitação, colocaram em sua boca certas idéias que eram necessárias a eles, mas totalmente divergentes dos Evangelhos – “a volta de Cristo”, “o juízo final”, todos os tipos de expectativas e promessas temporais. –
1 – Propriedade, qualidade.
2 – O grande mestre em ironia.
3 – Espírito, ironia.
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