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sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Vó Neuza e as histórias do Vale Feliz - Aluna: Sarha Dias Hottes

Era um vale montanhoso, extenso, imponente, bonito, verde e principalmente frio onde
eu morava com minha família. Nossa casa era de pau a pique e havia apenas um único cômodo
de tijolo. Meu despertador? Você não vai acreditar! Era o galo, que rigorosamente
despertava às quatro horas da manhã: Co-co-ri-có... Já sabia que era hora de levantar,
olhava pela janela e via o céu alaranjado como uma abóbora, e de longe via os primeiros
raios de sol que rompiam a aurora dourando os montes. Com muita destreza corria para
ajudar minha mamãe nos afazeres domésticos. Preparávamos o café com os grãos que colhíamos
no sítio, moídos na hora, no antigo moinho preso na parede da cozinha. Ah, e o
coador era de flanela! O aroma de café ia rapidamente misturando com o da broa de milho
assando no fogão a lenha e se espalhava pela casa toda.
Papai e mamãe saíam para a lida, era chegado o tempo da colheita do café e o inverno
também batia à porta. No meio da lavoura, o frio era impiedoso e cortante como uma navalha,
o vento se encarregava de fazer o indescritível balé de folhas secas que rodopiavam
feito bailarinas. Eles retiravam os grãos madurinhos das varetas com toda a delicadeza,
todo o cuidado era pouco. Papai dizia que o café era nosso ouro.
A vida era difícil, porém tinha o seu lado bom. Brincava com o meu irmão, se bem me
lembro brincávamos de fazendinha e cozinha. Como éramos pobres, não tínhamos brinquedos,
mas na nossa imaginação podíamos tudo... Então fazíamos bois de chuchu, bonecas
de espiga de milho, peteca de palha e penas de galinha e até fogões com pedaços de tijolos.
Mal acabávamos de brincar, almoçávamos, e eu prontamente preparava nossa merenda.
Colocava arroz, feijão e lambaris fritos, que papai, como sempre, trazia, tampava as
marmitas, amarrava nossos pertences e partíamos.
Nesse ínterim vivíamos uma aventura. Passávamos por um curral onde pegávamos pedaços
de cana, usada para tratar o gado, e íamos chupando torrões de açúcar. Atravessávamos
um pasto muito grande, com muitas vacas bravas – na época não sabia, mas hoje sei que era por causa de seus instintos maternais. Recordo ainda da antiga “pinguela” – hoje é
uma ponte – que, em época de chuva, a água transbordava por cima e ela balançava de um
lado para outro. Era uma beleza ver aquilo, mas difícil passar por lá, não havia outro lugar
por onde pudéssemos passar, e não podíamos chegar tarde porque a professora era muito
brava, por qualquer motivo nos fazia chorar. Naquele tempo havia poucas normalistas...
Estudar naquela escola era um privilégio. Vó Vitalina contava orgulhosa que o governador
de Minas Gerais, Juscelino Kubitschek, havia inaugurado pessoalmente o Grupo Escolar
Interventor Júlio de Carvalho. Como ela sabia disso? Vovó esteve na inauguração. O que ela
não sabia é que ele se tornaria o mais ilustre presidente que o país tivera.
O sol começava a se pôr, anunciando que a noite se aproximava; então eu ouvia uma
voz doce que soava como notas musicais nos meus ouvidos: “Neuza, entra! Vem tomar banho”.
Era mamãe. Nosso banheiro era o cômodo de tijolos com telhado baixo, chão de
terra batida. Mamãe passava uma mistura de coco e água, não fedia, todo chão de nossa
casa era banhado por esse extrato, que, depois de seco, transformava-se num imenso tapete
verde. Essa antiga técnica mamãe aprendera com Vó Vitalina e, acredite, até hoje ainda é
utilizada. Tomávamos banho numa bacia grande de alumínio muito bem areada. Mamãe
sempre me apressava.
Todas as noites recebíamos os vizinhos para ouvir novela num radinho de pilha, nosso
único artigo de modernidade. Assim que terminava a novela nos despedíamos e nossos vizinhos
desapareciam na escuridão. Rezávamos juntos. Papai e mamãe nos abençoavam,
apagávamos as lamparinas, era hora de dormir...
“Conta mais, vó, conta!”
Ela não respondeu. Então percebi que ela havia adormecido, embalada pelas suas
recordações presas no tempo.

(Texto baseado na entrevista feita com a sra. Neusa Maria Dias Hottes, 58 anos.)
Professora: Argélia Peixoto
Escola: E. E. Interventor Júlio de Carvalho • Cidade: Espera Feliz – MG

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