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sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

1 - Amor Passado Presente

A literatura tem sido através dos tempos uma importante ferramenta de análise, de compreensão do homem e das suas relações com o mundo. Intensa na sua escritura, Clarice Lispector apresenta temas voltados para as questões existenciais e projeta na palavra a compreensão de que o homem é um vir a ser e que viver é administrar emoções e sentimentos. A palavra ficcionalizada ecoa na solidão humana e é um mergulho nas questões existenciais. Questões essas que perpassam a obra de Clarice, na qual os personagens buscam um sentimento para a vida e gradualmente se conscientizam de si mesmos. O que se vê são os ecos do social refletidos na literatura sob o crivo meticuloso da autora.

Também intenso é o amor romântico, que projetado pela palavra, reflete um amor idealizado, no qual as paixões corroem a alma.  Essa idealização tem raiz no Romantismo, que expressa pela palavra na evasão do tempo e na busca por épocas remotas, mostrando a essência do ser humano, pautada por sua necessidade de se rebelar com as experiências vividas sob a ótica da beleza, das grandiosidades, dos encantos que o presente é incapaz de oferecer ( AGUIAR & SILVA, 1973).


Os meandros que caracterizam os fluxo de consciência de um personagem, suas lamentações, intensidade e as fronteiras construídas para regular o tempo e as relações permanentes potencializam uma conjuntura na qual a ficcionalidade muitas vezes quebra as barreiras, ultrapassa limites e infringe regras deslocando-se do ficcional para o real, projetando questionamentos e significações que se sobressaem e implicam o choque de transpor para o real o que o ficcional criou.


Contudo, em leitura mais recente, Huyssen (2000) aponta o fato de que a temporalidade aguçada a nos empurrar para o futuro não é inspiradora de confiança e, por isso, o desejo desacelerar e nos voltarmos para a busca do conforto. Para a busca dos amores idealizados, projetados no Romantismo, para uma realidade misteriosa e invisível; capaz de revelar suas verdades humanas, dantes desconhecidas. E, a literatura, cumprindo seu papel de catarse, exprime em signos a melancolia, as tristezas e desmazelos, traçando pelos desígnios do autor, modos para compreender o mundo, o homem, a vida e suas verdades. 


Quiçá fosse o amor tão compreendido como é intenso, como é intertextual. Assim como cada pessoa procura por seu par, são descritas histórias, compostas canções, narradas as mais variadas versões de tantos amores em livros, músicas, canções, textos dramáticos, poéticos, imagens.  Muito embora, de um modo geral, esse mito tenha se incorporado na cultura ocidental, ele não representa uma verdade absoluta, pois ao se buscar pelos pares recorre-se muitas vezes ao erro. Mas, e, se o amor recupera o mito "felizes para sempre" condicionado a um primeiro e único casamento. A busca tenderá a continuar estimulando as trocas, validando experiências ou ainda, cimentando e cosendo a infelicidade para sempre, como um refúgio para o presente nostálgico em que se encontra. 



Huyssen (2000) afirma que: [...] uma das lamentações permanentes da modernidade se refere à perda de um passado melhor, da memória de viver em um lugar seguramente circunscrito, com um senso de fronteiras estáveis e numa cultura construída localmente com o seu fluxo regular de tempo e um núcleo de relações permanentes.


Em seu texto, Huyssen (2000) enfatiza que passado e presente caminham lado a lado e, desenvolve sua problemática partindo do pressuposto de que emergência  de memória encontra-se no desejo de um futuro, e ainda, que esse seja um fator cultural nas sociedades ocidentais. 


O autor explica que espaço e tempo são categorias enraizadas na percepção histórica e interligadas de diferentes maneiras, possibilitando para o teórico (p.30) um novo entendimento dos processos de globalização. E, interroga-se quanto ao aumento de busca pela memória, se é ou não acompanhado do aumento de esquecimento, pois isso seria um ponto de ancoragem a oferecer segurança em tempos passados. E, portanto, uma vez na ausência do passado, cultuam-se os mitos como forma de frear a aceleração do tempo que se encolhe cada vez mais frente às ameaças de perdas e inseguranças.


O mito "felizes para sempre", propagado pelos românticos, como mal do século, "o tédio, o sentimento de abandono e de solidão, a angústia de um destino frustrado constituem outros tantos motivos que abrem a porta da evasão" (AGUIAR e SILVA 1972); transformam a literatura em ferramenta de compreensão do homem e suas relações com o mundo, fazendo voltas ao passado pela catarse literária para suprir as desilusões e derrocadas da vida adulta evocando as promessas e mitos deixados em um passado distante; projeções essas, encontradas em larga escala na literatura romântica.


E o amor, tão intertextual quanto histórico, tem sua representação registrada pelos discursos conformes as práticas temporais de interação, que é o que propõe Bakhtin (1981) "cada época e cada grupo social, tem seu repertório de formas do discurso na comunicação socioideológica", o que por sua vez encontra eco subsequente em seu interlocutor. São vozes que se fazem entender por meio de enunciados indissolúveis dos elementos subjetivos entre os pares que as segmentam.


Mas a relação entre o amor e as formas discursivas pelas quais ele é representado não envolve apenas teoria, considerando a rica complexidade da popularização de determinados gêneros. É na prática que ela acontece, pela escrita espontânea, pelo derrame de sentimentos em cada linha, pelo que encanta na realidade e com o qual, muitos se identificam na literatura ou na música, desde os tempos mais remotos até a atualidade.

Para cada época uma prática discursiva diferente. Gêneros do discurso, sejam eles primários ou secundários, que tentam suprir as necessidades de seu tempo. Para Bakhtin (2000), os gêneros dialógicos são considerados primários, entretanto quando transpostos ao literário passam a ser secundários. A carta, expressando enunciados de maior ou menor grau de relevância e definida pelo teórico como gênero primário, acarreta dentro da literatura outras vozes, incorpora a visão de mundo do autor e reflete seu estilo, tornando-se uma relação funcional condicionada por uma relação primária. E, portanto, ao recorrer às camadas não literárias, recorre-se aos gêneros do discurso que atenderam determinadas épocas, mas que precisam fazer parte da atual. São as palavras dos outros introduzindo expressividade; a escolha ocorre em função de uma esfera da comunicação e das necessidades temáticas do autor, porque as grandes obras literárias são intensas e desconhecem as fronteiras do espaço-tempo. As palavras dos outros são, então assimiladas, reestruturadas, modificadas e servem para introduzir expressividade, valor e novo sentido a um gênero primário transformado em secundário. (BAKHTIN, 2000)

Assim como Clarice Lispector demonstra intensidade em sua escrita ao tratar dos dramas existenciais, Bakhtin ao demarcar a carta como gênero dialógico e representativo de épocas mostra-se também enfático, apresentando o gênero como recurso e contribuição para o entendimento sócio ideológico de um período. Deixando, portanto, a carta pessoal, de ser restrita em si mesma e passando a ser percebida e aceita como articulação de vozes que ressoam no texto marcas temporais, sociais e ideológicas.

As vozes que muitas vezes se fazem presentes nas cartas pessoais, gênero primário, também se percebem quando transpostas para outros gêneros como a literatura e a música. O processo de transposição de um gênero para outro, embora traduza os vieses pessoais, se adaptam às vozes e necessidades do autor, assim como um novo pedacinho de pano na montagem de uma colcha em patchwork, retomando a metáfora introdutória.
Mas os gênero de uma forma geral, presentes no dia-a-dia das pessoas, se constroem pelo uso cotidiano, bem como, necessidade e interações linguísticas. E, por isso a carta pessoal, de uso recorrente em décadas passadas e, atualmente relegadas a uma minoria, tornou-se um gênero expressivo, ativando por meio de sues usuários formas, estruturas e linguagens apropriadas e diversas.

Sobre gêneros Koch (2003) afirma que é a competência sociocomunicativa de seus usuários que produz a distinção entre eles e, consequentemente é a sua competência textual que lhes permitem saber o que predomina em cada um deles para assim classificá-los.
Já Marchuschi (2005), ao tratar do gênero textual diz: Usamos a expressão gênero textual como uma noção propositadamente vaga para referir os textos materializados que encontramos em nossa vida diária e que apresentam características sócio-comunicativas definidas por conteúdos, propriedades funcionais, estilo e composição característica.
Ambos os autores traçam um perfil dos gêneros a partir da sua funcionalidade e uso, cristalizando assim o cotidiano como aquele que oportuniza a formação de novas modalidades e suscitando um hibridismos de possibilidades; pois a potencialização ou derrocada de um ou outro gênero acontecerá mediante a maior ou a menor incidência de seu uso.


No capítulo subsequente, "De coração para coração", a carta será abordada como gênero secundário imbricado à música e à literatura, ecoando reflexo do social, visando estabelecer um paralelo entre os gêneros primário e secundário e os efeitos dos imbricamentos como representações híbridas.


Rosilda da Silva

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