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quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Sobre o Romantismo

 A Época Romântica da Era Moderna

 Romance do Século XVIII

            O gênero narrativo (p. 334-6)

A prosa de ficção afirma-se como um dos gêneros literários mais cultivados e lidos somente a partir da segunda metade do século XVIII. Enquanto antes o romance era considerado uma forma de literatura amena, feita para o entretenimento e a diversão de uma camada da sociedade não-educada na severidade dos estudos clássicos, com o advento do Romantismo a narrativa em prosa passa a exercer a função da antiga poesia épica, que tinha a finalidade de representar a totalidade da vida, quer explorando os conflitos existenciais, quer analisando comportamentos e paixões humanas.
            No Romantismo alemão, avulta a figura de Goethe (1749-1832), cujo romance Os sofrimentos do jovem Werther teve larga repercussão internacional. Seu protagonista tornou-se o protótipo do herói romântico, homem doente, inconformado, melancólico, que encontra no suicídio a solução do problema fundamental do homem romântico: a impossibilidade de adequar as aspirações ao absoluto do “eu” com as limitações da vida cotidiana.
            Também a narrativa romântica de língua inglesa apresenta vários autores e obras de extrema relevância. O escocês Walter Scott (1771-1832), com seu Ivanhoé, cria o romance “histórico”, de larga imitação na literatura ocidental. Ambientado na Idade Média da época das cruzadas, expressa bem o gosto romântico de reviver o mundo gótico dos castelos, das damas, do amor cavaleiresco e das aventuras mirabolantes.

            Na França, as idéias geniais de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), mais filósofo do que ficcionista, tiveram o mérito de preparar os adventos do Romantismo e do Socialismo. Suas obras mais importantes são: Emílio, em que apresenta seu pensamento pedagógico: a tese da bondade natural do homem (o mito do “bom selvagem”) e da maldade como conseqüência das exigências da civilização leva Rousseau a propor um tipo de educação segundo a natureza de cada um, de forma que a criança possa desenvolver suas aptidões espirituais; Contrato social, tratado de teoria política em que ele sonha com o surgimento de uma sociedade onde os indivíduos, sem deixar de serem livres, vivam em função do bem comum; A nova Heloísa, romance epistolar que exalta o amor idealizado. Pela insistência sobre o conceito de liberdade e de fraternidade, por exaltar as forças da natureza e, sobretudo, por considerar o sentimento como a faculdade mais sublime do homem e a fonte de todo o verdadeiro conhecimento, Rousseau é considerado o grande precursor do movimento romântico na Europa.
            O idealismo romântico foi introduzido na França por madame De Stäel (1766-1817), filha de um banqueiro protestante de Genebra. Através de sua obra De l’Allemagne e das convenções culturais e políticas que mantinha no seu salão de Paris, ela conseguiu quebrar o monolitismo da civilização clássica francesa, mostrando a beleza das paisagens, dos costumes e da cultura do centro e do norte da Europa que, nos albores do Romantismo, estava em franco desenvolvimento. Suas obras de ficção, os romances Delphine e Corine são exemplos de narrativas sentimentais, bem ao gosto da época.
            Mas o verdadeiro iniciador do Romantismo francês foi Chateaubriand (1768-1848), herdeiro do pré-romântico Rousseau. Suas obras de ficção mais importantes são os dois romances René e Atala, em que, num estilo retórico, quase jornalístico, descreve a beleza das paisagens exóticas e as relações sentimentais que envolvem os personagens romanescos. Ao exemplo de Rousseau (Confissões), ele também cultiva a autobiografia ficcional: Memórias de um além-túmulo.
            Alexandre Dumas (1802-1870), chamado de “pai” para distingui-lo do seu filho natural homônimo, também romancista e teatrólogo, teve enorme sucesso com suas narrativas de “capa e espada”. Suas obras principais, Os três mosqueteiros e O conde de Monte Cristo, se tornaram uma verdadeira literatura de massa, sendo exploradas, mais tarde, pela cinematográfica. Stendhal (1783-1842), pseudônimo de Marie-Henri Beyle, introduziu na França o romance “psicológico”, com nítida tendência para o estilo realístico de descrição da vida. O tema da ambição do jovem pobre que quer ascender socialmente através do amor com damas de nobre prosápia predomina em sua prosa ficcional. Julien Sorel, protagonista de O vermelho e o negro, e Fabrício, protagonista de A cartuxa de Parma, tornaram-se personagens-tipo do jovem aventureiro, ambicioso e apaixonado.
            O maior expoente do Romantismo francês é, porém, Victor-Marie Hugo (1802-1885). Fazendo referência apenas à sua prosa de ficção, assinalamos as seguintes obras: Han de Islândia (1823), obra juvenil, que seguia a moda do romance “negro”; Bug-Jargal (1826), romance de aventura no estilo de Walter Scott; prefácio ao drama Cromwell (1827), considerado como o manifesto do movimento romântico na Europa; Notre-Dame de Paris (1831), romance de personagem e de espaço; Os miseráveis (1862), a obra-prima da ficção romântica em prosa; Os trabalhadores do mar (1866); O homem que ri (1869).


Realismo, Naturalismo, Parnasianismo


Romance do Século XIX

A ficção realista em prosa (384-9)

            Muito embora a narrativa de ficção conquistasse um lugar de destaque na história da literatura ocidental na época romântica, é com o movimento realista que ela se afirma como o gênero literário mais cultivado, substituindo a poesia épica na expressão da totalidade da vida. Segundo a tese de R. Jakobson, o Romantismo esta vinculado mais diretamente ao plano metafórico da linguagem em que o eixo da similaridade predomina sobre o da contigüidade, enquanto a literatura realista se relaciona melhor com a figura retórica da metonímia, mais indicada para expressar as conexões complexas de tempo, espaço, ações e personagens, que povoam o mundo da ficção em prosa.
            A narrativa realista inicia-se com Honoré de Balzac (1799-1850), considerado o pai do romance moderno. Ele retrata a sociedade da época numa obra cíclica, que denomina Comédia Humana, em oposição à Divina comédia, de Dante Alighieri. O conjunto de romances encontra-se dividido em três partes. Na primeira parte, Balzac apresenta a descrição artística dos costumes da sociedade burguesa (A mulher dos trinta anos, O pai Goriot, Eugênia Grandet, entre outros romances); as obras da segunda parte expressam seu pensamento reflexivo sobre a vida (Luís Lambert, Pele de Onagre, etc.); na terceira parte, de que publica apenas Fisiologia do casamento, analisa o comportamento humano face as instituições sociais. Pelo seu aspecto de participação, a narrativa balzaquiana está impregnada de "Realismo crítico", termo mais tarde utilizado por vários teóricos do romance.
            A narrativa francesa da época realista, além de Balzac, apresenta mais três escritores de primeira linha: Alphonse Daudet (1840-1897), famoso pelo romance Tartarin de Tarascon e pelos Contos da segunda-feira; Guy de Maupassant (1850-1893), escritor que Se definiu "objetivista" deixando-nos uma rica coletânea de romances, contos e novelas; Gustave Flaubert (1821-1880) tornou-se imortal pelo romance Madame Bovary, a obra-prima do Realismo francês. Nesta, como em outras obras do autor, sentimos a preocupação em descrever a vida com a imparcialidade do método das ciências naturais, burilando a linguagem e livrando-a das adiposidades retóricas e metafóricas, de forma a apresentar um estilo verdadeiramente ''natural''.
            O pai do chamado "Naturalismo", movimento cultural e artístico que levou as extremas conseqüências os princípios do Realismo, foi Émile Zola (1840-1902), inventor do romance "experimental". Imitando Balzac, ele produziu uma obra cíclica com a intenção de retratar a totalidade da sociedade francesa de sua época, mediante o uso de um estilo direto e incisivo, que se aproxima do método científico de análise dos fenômenos naturais e humanos. A série "Rougon-Macquart" contém romances em que se nota a preocupação do autor de concretizar na arte literária a tese sustentada pelos pensadores positivistas e deterministas de que o comportamento humano e a resultante de duas forças: os caracteres hereditários e o ambiente social. As melhores narrativas ficcionais de Zola exploram temas extraídos da realidade da época: Nana (alta prostituição), Germinal (a luta dos mineiros), A besta humana (miséria dos ferroviários), A taberna (L'assommoir).
            Na Inglaterra, a narrativa de tipo realista preexistiu à escola do realismo francês. E isso porque, devido a Revolução Industrial, a classe burguesa se desenvolveu primeiro naquele país. A história de Tom Jones, um enjeitado, de Fielding, publicado em 1749 e considerado o primeiro grande romance da literatura inglesa, já é uma narrativa realista pela paródia do sentimentalismo romântico e pela crítica à hipocrisia puritana. Mas o grande romancista do realismo inglês e Charles Dickens (1812-1870). Em sua obra mais famosa, David Copperfield, espécie de autobiografia ficcional, descreve a vida cotidiana dos pobres da Inglaterra, criticando as instituições sociais por não promoverem o bem da coletividade.
            Na Alemanha, onde a Revolução Industrial e, conseqüentemente, a escola realista com sua crítica ao comodismo conservador da classe burguesa chegaram decênios mais tarde, avulta a grande figura de Thomas Mann (1875-1955). Dele recordamos as obras mais famosas: Os Buddenbrooks: decadência de uma família, romance que lhe proporcionou o Prêmio Nobel de Literatura no ano de 1929, e a representação do declínio de uma família burguesa obcecada pela caça aos valores materiais; Morte em Veneza, onde Mann trata do tema da solidão do artista, narrativa convertida em filme por Luchino Visconti; A montanha mágica: num sanatório, intelectuais burgueses discutem sobre arte, religião, filosofia, costumes, refletindo nas personagens a podridão social; Doutor Fausto, de inspiração goethiana e já dentro das técnicas estéticas do Modernismo.
            A arte literária da Rússia se abriu ao conhecimento da Europa ocidental a partir da época do Realismo. Uma série de ficcionistas famosos (Gógol, Turgueniev, Tolstoi, Dostoievski, Gorki etc.), embora de tendências diversas, encontraram seu ponto de convergência na crítica a sociedade de seu tempo. O maior expoente do Realismo crítico russo e o conde Leon Tolstoi (1828-1910). Suas mais importantes obras são Guerra e paz e Ana Karenina. O primeiro romance e um vasto painel histórico da União Soviética e da Europa da época de Napoleão. O núcleo central do volumoso trabalho de ficção e a invasão da Rússia pelos exércitos franceses e a heróica resistência do povo russo. Pela nobreza da ação fabular (salvação da pátria invadida pelo estrangeiro), pela condição social dos protagonistas (aristocratas da época) e pelo estilo elevado, a obra e considerada a epopéia da Rússia. Mas, ao lado das características do modo épico, encontramos a descrição de uma longa galeria de tipos humanos variados (camponeses, soldados, pequenos burgueses, estrangeiros, religiosos etc.), que fazem com que a visão realista da vida se sobreponha a função idealizadora da epopéia. O outro romance citado tem por tema o amor adúltero e a exploração artística dos conflitos que o adúltero causa no espírito da personagem-título, levando-a ao suicídio.
            Outro grande escritor russo, talvez o maior romancista da literatura ocidental, considerado o pai da narrativa "psicológica", é Fiodor Dostoievski (1821-1881). A crítica costuma dividir sua vastíssima obra de ficção em três partes:
1)  Novelas da juventude (Pobre gente, Coração frágil, Noites brancas etc.), que constitui a fase mais ''romântica" de Dostoievski, onde predomina a descrição do fundo humano das criaturas, com sua ternura e espírito de abnegação. Nestas obras, todavia, já vislumbramos alguns dos traços mais característicos da ficção dostoievskiana posterior: traços auto biográficos (recordações da infância, idealismo da adolescência, descrição da vida do estudante pobre, caráter introspectivo, timidez, complexo de Édipo); seu pensamento sobre moral e religião (crença no destino, compaixão pelo pecador, a humildade e o sofrimento como catarse, acusação da injustiça social, crítica às modas estrangeiras e apego à natureza); elementos de sua estética (crítica à literatura retórica e divorciada da vida real, introspecção analítica, extravasamento da vida na arte, predominância do uso do narrador em primeira pessoa, preferência pelos cenários noturnos e tempestuosos); construção dos personagens (esboços de vários tipos humanos que encontrarão seu acabamento perfeito nas obras da maturidade).
2)  Obras de transição: Os quatro anos (1850-1854) passados na Sibéria, condenado aos trabalhos forçados por integrar o grupo revolucionário de Pietrachevski, que pretendia depor o czar Nicolau I, constituem um divisor de águas na produção literária de Dostoievski. Na prisão, o nobre e intelectual Fiodor entra em contato direto com a camada do povo russo mais miserável e começa seu amadurecimento espiritual, que se completara com as viagens ao exterior, as aventuras amorosas, as experiências desastrosas no jogo, o sofrimento físico causado pela epilepsia e a dor moral provocada pela penúria econômica. Entre as obras da fase juvenil e o primeiro grande romance da época da maturidade (Crime e castigo, publicado em 1866) medeiam uma meia dúzia de trabalhos literários que atestam a gradativa passagem da primeira para a segunda fase. Lembramos os romances Humilhados e ofendidos, Memórias da casa dos mortos e Memórias do subterrâneo.
3)  Romances da maturidade: é o conjunto das sete narrativas (Crime e castigo, O jogador, O idiota, O eterno marido, Os demônios, O adolescente e Os irmãos Karamazov) em que Dostoievski atinge a plenitude de sua técnica formal e consegue expressar sua mundividência pela temática existencial e pela construção de personagens que se tornaram imortais.
            Quanto ao aspecto formal, assinalamos a técnica da “transposição”, própria da estrutura artística da narrativa dostoievskiana. No seu intuito de explorar os subterrâneos da alma humana, o grande escritor russo não cria suas histórias e não constrói seus personagens de um modo linear e acabado, mas reparte fatos e características psicológicas de forma a poderem ser vistos de vários ângulos. O intertexto dostoievskiano acusa a existência de homólogos, de duplos, de desdobramentos de personalidade, de embriões, de imagens especulares, de prismas que refrangem a plurifacetação do ser humano. Assim, numa mesma obra e de uma obra para outra, as personagens de Dostoievski “transpõem” seus caracteres, complementando-se e diferenciando-se.
            Quanto à temática, o motivo mais explorado pelo romancista o sentimento de culpa que aflige o homem na sua tentativa de reparar as injustiças individuais e sociais através de um meio moralmente condenado, o crime. o fundamento psíquico da intenção ou do ato criminoso e o complexo de Édipo, que o leva a odiar qualquer forma de tirania, consubstanciada na figura do pai que submeteu a esposa e os filhos a uma autoridade brutal. Mas a temática de seus romances, evidentemente, não se limita apenas ao tratamento deste motivo, abrangendo quase todas as contradições da época em que viveu: forças do instinto versus misticismo religioso; imperialismo czarista vs. tendências socialistas; violência vs. sentido de humanidade; interdições sócio-morais vs. livre-arbítrio; consciência da culpa vs. compaixão para com os fracos e os degradados.
            A literatura italiana da segunda metade do século XIX não fugiu à moda européia de reação ao Romantismo, abandonando o tom lírico, sentimental, extravagante e egocêntrico, em prol de um tipo de arte mais aderente ao real e ao social. Na prosa de ficção, entre outros escritores, aflora Giovanni Verga (1840-1922), romancista e contista siciliano. Após a fase romântica, caracterizada por narrativas de inspiração patriótica (Os carbonários da montanha), influenciado pelo Naturalismo francês, cria o romance “verista”, com o intuito de adequar a arte literária a verdade da vida. Em suas obras mais conhecidas, Os Malavoglia e Mestre e D. Gesualdo, descreve a miséria dos camponeses e pescadores sicilianos em sua luta do dia-a-dia pela sobrevivência, exaltando o amor ingênuo e persistente ao trabalho e ao lar.
            Em Portugal, emerge a figura grandiosa de Eça de Queirós (1845-1900), o maior escritor português da escola realista. Suas melhores obras de ficção são: O crime do padre Amaro, em que retrata a lascívia, a hipocrisia e a insensibilidade humana do clero de sua época; O primo Basílio, onde ataca o falso moralismo da sociedade burguesa, focalizando particularmente as causas psíquicas e ambientais que induzem a protagonista Luísa ao adúltero; Os Maias, parte de um projeto inacabado de descrição da totalidade social através de romances seriados (o nome do programa era Cenas da vida portuguesa), seguindo o exemplo de Balzac. Além de romancista, Eça foi também um ótimo escritor de contos. Um deles, Singularidades de uma rapariga loura, nos servirá como exemplo de análise da narrativa realista.


 Romance do Século XX

            Vertentes da narrativa moderna (p. 430)

No começo do nosso século, e mais propriamente com o início do Modernismo, a prosa de ficção adquire aspectos multiformes. No seu intuito de representar a vida, a literatura ficcional tenta colocar em forma de arte os vários problemas do homem moderno. O gênero narrativo sofre mudanças profundas, quer no tocante às formas estéticas, quer no que diz respeito aos conteúdos ideológicos. Devido à grande variedade de tendências e correntes, é muito difícil definir e classificar o romance do século XX. Tentaremos delinear apenas algumas vertentes que nos parecem principais, enquadrando nelas os vultos mais expressivos da moderna prosa de ficção.
            A nosso ver, três filões de narrativa ficcional podem ser detectados: a) as narrativas voltadas para os problemas sociais do mundo moderno, estritamente ligadas à corrente realista, com várias modalidades de descrição do social e sem o pretenso cientificismo do Naturalismo; a esta corrente Alfredo Bosi chama de romances “de tensão crítica”; b) as narrativas preocupadas com o mundo subjetivo do protagonista, influenciadas pelo romance psicológico de Dostoievski e pelas doutrinas psicanalíticas: são os romances de “tensão interiorizada”; c) as narrativas com tendência a renovar o gênero literário, experimentando novas fórmulas de estrutura e novos padrões lingüísticos: são os romances de “tensão transfigurada” que, antes de transpor a realidade social ou psíquica, tentam construir uma nova realidade, recorrendo a padrões míticos.
            Evidentemente, esta tripartição categorial do romance moderno e contemporâneo não tem um valor científico, mas apenas didático, visando a encontrar alguns elementos de semelhança no meio das diferenças específicas dos muitos autores e das inúmeras obras.


O romance de introspecção psicológica (p. 437-8)

            (...)

            Marcel Proust (1871-1922) é famoso pela sua obra cíclica Em busca do tempo perdido, composta de sete partes, publicadas separadamente, as últimas três póstumas: “No caminho de Swan”, “À sombra das raparigas em flor”, “O caminho de Guermantes”, “Sodoma e Gomorra”, “A prisioneira”, “A fugitiva” e “O tempo redescoberto”. Este monumental trabalho literário representa um painel da vida social da alta burguesia francesa da época de Proust,  analisada não do ponto de vista científico da moda naturalista, mas através da introspecção subjetiva do narrador, que geralmente é o personagem principal. A grande contribuição do autor para a narrativa literária é a descoberta do tempo psicológico, pelo qual ações e sentimentos não estão sujeitos ao plano da sucessividade, mas ao da simultaneidade. Pela técnica das associações em cadeia, o passado, que estava esquecido e, portanto, “perdido”, é recuperado pela consciência na sua integridade. A mente pensante, no momento em que recorda o passado, o torna presente, dando-lhe nova existência. A realidade não existe em si numa forma absoluta, mas numa forma relativa, enquanto refletida pelo espírito.
            (...)

Virgínia Woolf

            Virgínia Woolf (1882-1941) abriu sua residência num bairro nobre de Londres aos escritores e aos artistas, discutindo as teorias freudianas, as idéias socialistas, o pensamento bergsoniano, o teatro de Pirandello, os romancistas russos, as mudanças de costumes após o fim da moral vitoriana. Chegou a fundar uma editora para a impressão de obras literárias mais importantes de sua época. Este ambiente cultural e as crises depressivas de que sofria desde a infância marcaram a sua sensibilidade de mulher e de escritora. Sua obra literária está voltada para a exploração das regiões mais obscuras da alma, colhendo o conflito entre os desejos e a impossibilidade de sua satisfação. Em suas obras mais significativas (Mrs. Dalloway, Orlando, As ondas) ela enfrenta a temática da impossibilidade da felicidade matrimonial, devido à essencialidade andrógina e plurifacetada do ser humano, que lhe impede de se satisfazer com o papel único que a sociedade impõe ao indivíduo. Sua técnica narrativa peculiar está baseada no uso do monólogo interior, das associações de idéias e de sentimentos que envolvem não só a vida psíquica de um personagem, mas que se transferem de um personagem para outro.
            (...)


O romance de experimentalismo formal (p.439)

            (...)
James Joyce (1882-1941) é considerado o pai da ficção moderna, pois de sua obra beberam todos os romancistas que tentaram afastar-se da narrativa tradicional, adulterando a linguagem e inovando as técnicas formais da prosa de ficção, na tentativa de representar a fragmentação espiritual do mundo em que vivemos. Sua obra mais famosa, Ulisses, é uma espécie de epopéia do homem moderno, colocando perante nossos olhos todas as áreas do conhecimento humano: reflexões filosóficas, perplexidades religiosas oscilantes entre o helenismo e o hebraísmo, consciência moral, ciências naturais e médicas, psicologia do subconsciente, política, sociologia, economia, jornalismo, publicidade, literatura e artes plásticas. O volumoso romance, de dimensões míticas, está calcado sobre a Odisséia, de que toma o nome, e descreve o que acontece a Leopold Bloom num dia comum (16 de junho de 1904), na cidade de Dublin, capital da Irlanda do Sul. O Ulisses está dividido em três partes, separadas por algarismos romanos:
I – Corresponde à “Telemaquia” de A odisséia, onde se descreve a viagem de Telêmaco a Pilos e a Esparta, procurando saber notícias sobre o retorno do pai. O protagonista desta primeira parte é Stephen Dedalus, um professor de história que, inconscientemente, busca um pai de verdade, visto que seu progenitor natural vive bêbado, tendo abandonado a família na miséria.
II – É a parte mais longa do romance e tem como paralelo mítico as viagens do herói homérico Ulisses. Seu protagonista é Leopold Bloom, agente publicitário casado com Molly, atriz de cabaré. Às oito da manhã, Leopold se levanta da cama e, após realizar as ações corriqueiras (toma café, vai ao banheiro etc.), sai de casa para enfrentar a vida agitada da metrópole. As cenas que se sucedem têm correspondências com episódios de A odisséia: o enterro do amigo Dignam (descida de Ulisses ao Hades), o almoço (episódio dos Lestrigões, povo antropófago), visita o bordel (episódio de Circe) etc.
III – Corresponde ao retorno de Ulisses a Ítaca e o reencontro com sua esposa Penélope. Pelas três da madrugada, Leopold, junto com Stephen (símbolo do encontro entre o pai e o filho), volta para sua casa e encontra sua mulher dormindo. A protagonista desta última parte é Molly que, acordando, remói toda sua vida passada num longo monólogo interior.
            Este brevíssimo resumo da fábula do Ulisses nos fornece apenas uma pálida idéia da estrutura da obra, que é extremamente complexa. Os fatos não são apresentados de forma linear, numa ordem cronológica, mas misturados com as lembranças, os desejos, as frustrações, as obsessões dos personagens, através da técnica corrente do pensamento e das associações de sensações. Por exemplo, toda última parte é composta de um único período, sem nenhuma pontuação e com inúmeras extravagâncias morfológicas e sintáticas, apto a expressar o fluxo ininterrupto da consciência da protagonista, que nos releva o encavalgamento, no seu espírito, de idéias, sentimentos e sensações passadas, presentes e futuras.
            Na obra de Joyce devemos ressaltar duas tendências que, embora opostas, se combinam: a atmosfera naturalista, criada pela descrição das minúcias da vida cotidiana, e o simbolismo épico, que universaliza e eterniza ações e sentimentos. Desta concordantia oppositorum surge o aspecto irônico da obra, que reduz seus personagens ao absurdo do heróico-burlesco. Assim, a protagonista Molly, que deveria ser a correspondente fiel por antonomásia, é descrita como uma mulher lasciva, sensível aos chamamentos do sexo, pronta a se entregar ao primeiro amante que aparecer. A narrativa de Joyce, portanto, apresenta a mistura do mundo mítico, com seus arquétipos ideológicos, e do mundo da realidade cotidiana, em que o homem é solicitado pelas baixas exigências do viver individual e social.
            O romance Ulisses, quando publicado em Paris, em 1922, pelo mecenatismo de uma amiga do escritor, encontrou sérias resistências nos ambientes puritanos da época, que o consideraram uma obra obscura e obscena. Mas anos depois, pela crítica elogiosa de Stuart Gilbert, T. S. Eliot e Edwin Muir, o romance teve o merecido sucesso e foi traduzido para as principais línguas da Europa. Joyce, então, passou a ser considerado o grande inovador da prosa de ficção e sua técnica narrativa passou a fazer escola. Em verdade, não há ficcionista da Vanguarda que não acuse influências joycianas, quer inove a linguagem romanesca, quer reestruture fábulas e personagens.

A narrativa do absurdo: O Processo, de Kafka (p. 442-3)

            Traços biográficos do autor
Franz Kafka nasceu em Praga em 1883, filho de um judeu alemão, comerciante abastado, austero e autoritário. Sua formação humana e intelectual deve-se relacionar com a encruzilhada de três culturas diferentes e conflitantes: a cultura judaica, que herdou do ambiente familiar, à qual se opõe a cultura cristã da Tchecoslováquia em que viveu; a cultura alemã de uma minoria dos habitantes de Praga, que apoiavam os interesses do império austro-húngaro, de que a cidade dependia politicamente; a cultura tcheca da maioria no meio no qual Kafka viveu. Enfim, o jovem Kafka sentia-se estrangeiro na sua própria cidade natal, malvisto pela minoria alemã por ser judeu e malvisto pela maioria dos praguenses quer por ser alemão, quer por ser judeu.
            Mas Kafka sempre manteve-se alheio à vida política e social, refugiando-se no mundo fantástico da literatura. Suas atividades profissionais serviram-lhe como experiência preciosa para coletar o material necessário à sua ficção: o ano de estágio nos Tribunais de Praga (1906), complemento obrigatório de sua formatura em Direito, colocou Kafka em contato com os meandros da prática forense, referente do romance O Processo; o emprego em duas companhias de seguros pôs nosso autor em relação com a máquina burocrática, descrita artisticamente em O Castelo.
            Além da Bíblia, suas leituras preferidas foram as obras de Goethe, Dostoievski, Balzac, Dickens, Flaubert e Thomas Mann. Desde a primeira juventude, começou a dedicar-se à prática literária, compondo pequenas peças teatrais, encenadas com a ajuda de suas irmãs. Na Universidade Alemã de Praga, onde estudou química, por poucos dias, e direito, sem nenhuma paixão, fez poucas mas profundas amizades: Oscar Pollak, que morreu jovem, e Max Brod, que o acompanhou ao longo de sua vida, sendo seu biógrafo, testamentário e editor. Entre as numerosas obras ficcionais de Franz Kafka, publicadas postumamente e contra sua vontade, assinalamos, além de O Processo, O Castelo e A Metamorfose, suas obras-primas, A construção da Muralha da China, Um artista da fome, A condenação, As investigações de um cão, América, Um médico rural e Na colônia penal.

            O grande problema humano de Kafka foi o sentimento de solidão espiritual, provocado por uma série de fatores: a rígida educação familiar, a fraca constituição física, a tuberculose que o acompanhou da primeira hemoptise (1917) até a morte (1924), um íntimo sentimento de culpa, o ambiente de conflitos raciais, religiosos e políticos em que vivera. Para lutar contra este sentimento de solidão, ele encontrou dois aliados: a literatura e o relacionamento sexual. O mundo fantástico da criação literária e a paixão amorosa nutrida por várias mulheres ao longo de sua vida, ora superficial ora profundamente, foram os dois refúgios que atenuaram seu sofrimento físico e espiritual. A grandeza da obra literária de Kafka reside, a nosso ver, em ter conferido dimensões universais ao seu sofrimento de angústia, provocado pelo absurdo do viver social.

Fonte - D’ONOFRIO, Salvatore. Literatura Ocidental: autores e obras fundamentais. São Paulo: Ática, 1990.

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